Cafeína e metabolismo

Cafeínas

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A relação entre cafeína e queima de gordura sempre despertou muito interesse. De um lado, os praticantes de atividade física que buscam melhorar a desempenho ou acelerar a perda de peso. Do outro, cientistas tentando compreender os efeitos reais da substância no metabolismo. Em meio a tantos estudos, surgem perguntas que ainda permanecem na boca de quem bebe um café forte pela manhã: a cafeína aumenta realmente a queima de gordura? Ela funciona melhor em repouso ou durante o exercício? Existe uma dose ideal? E o efeito é igual para todo mundo?

Durante muitos anos, acreditou-se que a cafeína aumentava a oxidação de gordura, principalmente durante o exercício. A ideia era que, ao consumir cafeína antes de uma atividade física, o corpo utilizaria mais gordura como fonte de energia, poupando os estoques de carboidrato e retardando a fadiga. Essa visão fez parte da formação de milhares de profissionais da área da saúde. Mas, com o passar do tempo, os dados passaram a contar uma história mais complexa. Alguns estudos sugeriram que a cafeína, na verdade, poderia aumentar o uso de carboidratos durante o exercício. Outros mostraram aumento na concentração de ácidos graxos no sangue em repouso. E assim a discussão ganhou nuances.

Um ponto importante é que nem todos os estudos avaliaram da mesma forma o metabolismo de gordura. Alguns mediram a razão entre o oxigênio consumido e o gás carbônico produzido durante o esforço físico. Outros analisaram amostras de sangue em busca de marcadores como glicerol e ácidos graxos livres. Esses dois caminhos oferecem retratos diferentes do que está acontecendo dentro do corpo. Em muitos casos, um estudo mostrava que a oxidação de gordura não aumentava, mas os marcadores sanguíneos indicavam uma ativação da lipólise. Ou seja, a gordura estava sendo liberada dos tecidos, mesmo que não estivesse sendo queimada imediatamente.

Ao reunir quase cem estudos com mais de novecentos participantes, um levantamento recente tentou trazer respostas mais precisas. O que se observou foi que a cafeína, de fato, aumenta o metabolismo da gordura. O efeito é pequeno, mas estatisticamente consistente. E aparece tanto em repouso quanto durante o exercício. A diferença é que, em repouso, esse efeito parece ser um pouco mais forte.

Essa diferença entre repouso e atividade física tem uma explicação fisiológica simples. Quando o corpo está em repouso ou em um nível leve de atividade, ele tende a usar gordura como principal fonte de energia. Nesse cenário, a cafeína entra como um estímulo adicional para liberar mais gordura dos tecidos, ampliando sua disponibilidade para ser utilizada. Já em atividades mais intensas, o organismo passa a depender mais dos carboidratos. A gordura fica em segundo plano porque o corpo precisa de energia mais rápida. Mesmo assim, a cafeína ainda consegue atuar, mas com menor protagonismo.

Quando se compara os métodos de medição, os dados obtidos por meio de exames de sangue mostram efeitos mais claros. A análise de gases respiratórios muitas vezes subestima o quanto de gordura está sendo mobilizada. Isso acontece porque a liberação de ácidos graxos nem sempre se traduz imediatamente em queima. Pode haver um intervalo entre a mobilização da gordura e sua oxidação. Essa diferença de timing é um detalhe importante que influencia bastante a interpretação dos resultados.

A dose utilizada também chamou atenção. Em geral, doses entre 3 e 6 miligramas por quilo de peso corporal são as mais comuns em estudos. Mas já há evidências de que até mesmo quantidades menores, como 1 mg/kg, podem ter efeito. A resposta não aumenta proporcionalmente com a dose. Não é porque se consome mais cafeína que o corpo automaticamente queima mais gordura. Existe um teto. A partir de certo ponto, aumentar a quantidade pode trazer mais efeitos colaterais do que benefícios. Taquicardia, irritação, desconforto intestinal e insônia são apenas alguns deles. Para a maioria das pessoas, uma dose média, tomada em jejum antes de uma caminhada, já é suficiente para sentir os efeitos.

Outro aspecto relevante é o estado nutricional do indivíduo. Em jejum, o corpo naturalmente mobiliza mais gordura. Quando a cafeína é consumida nesse contexto, esse processo se intensifica. O jejum cria um ambiente propício para a lipólise, e a cafeína atua como um acelerador. Isso não significa que a substância não funcione quando ingerida após uma refeição, mas os efeitos podem ser menos evidentes. Essa diferença reforça a ideia de que o contexto de uso é fundamental. Não se trata apenas da substância em si, mas de como e quando ela é utilizada.

E quanto às diferenças entre indivíduos? Curiosamente, o efeito da cafeína sobre o metabolismo da gordura não mostrou variações relevantes entre homens e mulheres, nem entre pessoas treinadas e sedentárias. Isso indica que a resposta metabólica à cafeína é relativamente uniforme, pelo menos no que se refere à oxidação de gordura. Cada organismo tem suas particularidades, claro, mas os dados sugerem que, nesse aspecto, o comportamento tende a seguir um padrão semelhante.

A presença ou não de hábito com cafeína também foi analisada. Houve efeito tanto em pessoas que já consumiam cafeína regularmente quanto naquelas que não estavam acostumadas. Isso desmonta o argumento de que apenas quem não tem tolerância se beneficia. Ainda que a sensibilidade varie, a resposta metabólica se manifesta em ambos os grupos.

Quando se considera o uso da cafeína com foco em emagrecimento ou otimização metabólica, a estratégia mais promissora parece ser o uso moderado e frequente, em uma rotina equilibrada. Sozinha, a cafeína não tem o poder de transformar o metabolismo de forma significativa. Mas, como parte de um conjunto de hábitos saudáveis, pode contribuir para um cenário mais favorável à queima de gordura. Pequenas diferenças, acumuladas ao longo do tempo, fazem grande diferença.

Há ainda o aspecto comportamental. Consumir uma bebida quente, como o café, antes de se exercitar, cria um ritual que prepara o corpo e a mente para a atividade. Isso também influencia na percepção de esforço, na disposição e na regularidade dos treinos. Não se trata apenas de metabolismo. Há um componente motivacional envolvido, que pode ser decisivo para a adesão a um estilo de vida mais ativo.

No campo do desempenho, atletas também exploram a cafeína com objetivos específicos. Ela é reconhecida por melhorar o tempo de reação, aumentar o estado de alerta, reduzir a percepção de esforço e retardar o início da fadiga. Todos esses fatores se somam ao efeito metabólico. Ainda que a contribuição da cafeína para a queima de gordura não seja enorme, sua influência sobre o desempenho geral compensa.

O mais interessante é perceber como uma substância tão comum, presente em algo tão cotidiano como uma xícara de café, pode ter um impacto real sobre processos fisiológicos tão complexos. Claro que não se deve romantizar. Não é a solução definitiva para nenhum problema metabólico. Mas entender sua atuação ajuda a tomar decisões mais inteligentes.

Muitas vezes, o que falta é justamente esse tipo de conhecimento. Sabe-se que a cafeína tem efeito termogênico, que pode contribuir para um gasto calórico ligeiramente maior ao longo do dia. Sabe-se que ela pode modular o apetite em algumas pessoas. E sabe-se, agora com mais confiança, que também pode aumentar a oxidação de gordura. Ao reunir essas peças, surge um quadro mais claro.

Ainda há muito o que descobrir. A ciência continua investigando como diferentes tipos de cafeína, como a presente no chá-verde ou no guaraná, atuam no organismo. Estuda-se também a interação entre cafeína e outros nutrientes, como polifenóis, e como essas combinações podem potencializar os efeitos. Também há interesse em compreender como a genética influencia na resposta à cafeína, já que algumas pessoas metabolizam mais rápido do que outras.

Em um cenário de crescente busca por autonomia sobre o próprio corpo, esse tipo de informação se torna ainda mais relevante. Saber que um hábito simples como tomar café pode ter implicações reais sobre o metabolismo muda a relação com o que é cotidiano. Passa-se a olhar para o próprio comportamento com mais curiosidade e senso de experimentação.

E se, ao invés de seguir modismos ou soluções milagrosas, as pessoas começassem a testar o que funciona melhor para si mesmas, baseadas em conhecimento sólido e em experiência própria? O uso da cafeína, nesse contexto, deixa de ser uma recomendação genérica e passa a ser uma ferramenta personalizada.

Talvez o segredo esteja justamente nisso: usar o conhecimento científico não para ditar regras, mas para ampliar horizontes. E a cafeína, longe de ser uma solução mágica, pode ser uma dessas chaves discretas que, quando bem utilizadas, ajudam a abrir portas para um metabolismo mais eficiente.

Talvez tudo comece por aquela xícara fumegante na primeira hora do dia, não só pelo prazer ou pelo hábito, mas por entender que ali, naquele momento simples, existe uma interação sofisticada entre substância, organismo e contexto. Uma interação que, no fim das contas, mostra como o cotidiano pode ser uma ponte silenciosa para uma vida mais equilibrada.


Referências:

 

Metabolic effects of caffeine in humans: Lipid oxidation or futile cycling – Estudo que investigou se a cafeína aumenta a oxidação de gordura ou apenas ativa processos metabólicos ineficazes: https://doi.org/10.1093/ajcn/79.1.40

Optimizing fat oxidation through exercise and diet – Revisão sobre como melhorar a queima de gordura com estratégias alimentares e de exercício: https://doi.org/10.1016/j.nut.2004.04.005

The effect of caffeine on free fatty acids – Estudo clássico que mostrou o aumento de ácidos graxos livres após consumo de cafeína: https://doi.org/10.1001/archinte.1965.03870050104015

Response of free fatty acids to coffee and caffeine – Investigação sobre como café e cafeína afetam a lipólise no sangue: https://doi.org/10.1016/0026-0495(68)90054-1

Analysis of sex-based differences in energy substrate utilization during moderate-intensity aerobic exercise – Análise de como homens e mulheres usam gorduras durante exercício moderado: https://doi.org/10.1007/s00421-021-04802-5

Failure of caffeine to affect substrate utilization during prolonged running – Estudo que não encontrou alteração no uso de gordura com cafeína durante corrida longa: https://doi.org/10.1249/00005768-198502000-00029

Does caffeine added to carbohydrate provide additional ergogenic benefit for endurance? – Avaliação se cafeína somada a carboidratos melhora a resistência física: https://doi.org/10.1123/ijsnem.21.1.71

Effects of caffeine ingestion on exercise testing: A meta-analysis – Análise de vários estudos sobre o efeito da cafeína no desempenho físico: https://doi.org/10.1123/ijsnem.14.6.626

Effects of caffeine ingestion on rating of perceived exertion during and after exercise: A meta-analysis – Mostra que a cafeína reduz a percepção de esforço durante exercícios: https://doi.org/10.1111/j.1600-0838.2005.00445.x

Normal caffeine consumption: Influence on thermogenesis and daily energy expenditure in lean and postobese human volunteers – Cafeína aumenta o gasto calórico diário, mesmo em doses normais: https://doi.org/10.1093/ajcn/49.1.44

Caffeine and physiological responses to submaximal exercise: A meta-analysis – Mostra efeitos fisiológicos da cafeína em exercícios moderados: https://doi.org/10.1123/ijspp.2017-0312

Caffeine and exercise: Metabolism, endurance and performance – Revisão ampla sobre os efeitos da cafeína na performance e no metabolismo: https://doi.org/10.2165/00007256-200131110-00002

Does caffeine alter muscle carbohydrate and fat metabolism during exercise? – Estudo que questiona a ideia de que a cafeína muda o metabolismo muscular: https://doi.org/10.1139/H08-129

Caffeine ingestion enhances Wingate performance: A meta-analysis – Meta-análise sobre o efeito da cafeína em exercícios anaeróbicos intensos: https://doi.org/10.1080/17461391.2017.1394371

Fat burners: Nutrition supplements that increase fat metabolism – Revisão sobre suplementos que aumentam o metabolismo da gordura, incluindo a cafeína: https://doi.org/10.1111/j.1467-789X.2011.00908.x

Regulation of endogenous fat and carbohydrate metabolism in relation to exercise intensity and duration – Estudo clássico que define como o corpo alterna entre gordura e carboidrato: https://doi.org/10.1152/ajpendo.1993.265.3.E380

A teoria que matou o senso comum

Física e relatividade

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 A física sempre teve essa mania de querer organizar o mundo com regras claras, fórmulas elegantes e uma certa confiança de que a realidade poderia ser capturada por boas ideias. Durante muito tempo, a noção de gravidade seguiu essa linha. Bastava olhar para uma maçã caindo, levantar a cabeça para a Lua, fazer algumas contas com papel e pena, e pronto: surgia uma teoria que parecia fechar tudo com um laço.

Acontece que o tempo mostrou que o mundo não gosta de ser tão bem-comportado assim. A gravidade, que por dois séculos parecia uma força simples e universal, acabou revelando um lado bem mais estranho. O que parecia senso comum virou ilusão. E o motivo disso tudo foi um redesenho completo daquilo que chamamos de espaço e tempo.

No começo do século XX, uma nova ideia começou a tomar forma. Em vez de pensar o universo como um palco fixo onde tudo acontece, a proposta era que o próprio palco poderia se deformar. O que se acreditava ser o pano de fundo imutável, o espaço e o tempo, agora ganhava elasticidade. E essa elasticidade era justamente o que chamávamos de gravidade.

Para chegar até aí, primeiro foi preciso derrubar o velho apego à ideia de um tempo universal. Aquela noção de que todos os relógios do cosmos poderiam bater o mesmo tique-taque, não importando onde estivessem ou como se movessem, perdeu completamente o sentido. O tempo deixou de ser absoluto e passou a depender do caminho percorrido. Um segundo em um canto do universo podia não equivaler a um segundo em outro.

Isso não era apenas teoria de quadro-negro. Com o tempo, os experimentos começaram a provar que esse tal tempo relativo era real. Um dos exemplos mais citados envolve relógios atômicos levados em aviões. Enquanto voavam ao redor da Terra, esses relógios marcavam o tempo de maneira ligeiramente diferente dos que ficaram em solo. Aquilo que parecia loucura matemática se tornou fato físico.

No meio disso tudo, havia um detalhe que desafiava qualquer tentativa de explicação intuitiva. A velocidade da luz, aquela coisa que sai de uma lanterna ou chega do Sol, parecia ser a mesma para qualquer observador, independentemente da sua velocidade. Se alguém estivesse correndo atrás de um raio de luz, ele ainda veria a luz se afastando com a mesma rapidez que alguém parado. Isso soava completamente absurdo dentro da lógica do cotidiano. Mas era exatamente esse absurdo que fazia as peças se encaixarem de outro modo.

A realidade foi deixando de ser uma questão de forças invisíveis empurrando objetos à distância. O que passou a valer era a curvatura do espaço-tempo. Em outras palavras, onde antes se imaginava uma maçã sendo puxada pela Terra, agora se dizia que ela seguia uma linha natural por um espaço que estava deformado pela presença da Terra. Não havia mais uma corda invisível puxando corpos, e sim uma geometria diferente moldando os caminhos.

Esse novo jeito de olhar para o mundo fez com que velhos problemas fossem resolvidos de forma inesperada. Um exemplo clássico é o comportamento da órbita de Mercúrio. A teoria antiga previa um certo caminho, mas o planeta parecia desobedecer ligeiramente, girando seu ponto mais próximo do Sol com o tempo. O novo modelo explicava esse desvio com perfeição, como se tivesse encontrado a última peça de um quebra-cabeça esquecido.

Essa mudança de paradigma não foi simples nem rápida. Levar essa ideia adiante exigiu cálculos complexos, enfrentamento de resistências e um mergulho profundo em uma matemática que antes era vista como frescura de quem gostava de enfeitar o raciocínio. O caminho foi duro, mas a recompensa foi imensa: um novo entendimento da realidade.

O interessante é que, mesmo com todas essas evidências e aplicações modernas, como o uso de sistemas de navegação via satélite que dependem dessas correções relativísticas para funcionar direito, a ideia de espaço e tempo como entidades maleáveis ainda soa estranha para muita gente. A cabeça quer resistir. Afinal, crescemos em um mundo onde tudo parece acontecer num tempo único e de um espaço estático.

Mesmo assim, o universo segue nos mostrando que o senso comum não é guia confiável. A física, quando se propõe a ir além do que os olhos veem, acaba revelando que o real é mais esquisito do que qualquer ficção. A gravidade deixou de ser uma força no sentido tradicional. Passou a ser uma consequência da geometria do universo. E isso muda tudo.

Hoje em dia, vivemos em um mundo onde os satélites corrigem suas medidas de tempo para não errarem a localização dos celulares, justamente porque o tempo no espaço corre de forma diferente do tempo na superfície da Terra. Parece detalhe, mas sem essa correção, qualquer mapa no telefone indicaria um lugar errado. É a teoria que parecia maluca salvando a praticidade do dia a dia.

Mas essa revolução na forma de entender a realidade não resolveu tudo. Quando olhamos para as menores escalas, lá onde vivem as partículas que formam os átomos, surge outro universo de regras esquisitas. A física quântica entra em cena e joga outro balde de estranheza em cima da lógica. Ela também desafia a intuição, também derruba certezas. E aí vem o desafio ainda maior: tentar juntar esses dois mundos tão diferentes em uma única teoria.

Até agora, ninguém conseguiu fazer isso de forma plena. E talvez, quando isso acontecer, o resultado seja ainda mais desconcertante para o bom senso. Talvez essa nova física venha não para acalmar a cabeça, mas para bagunçar ainda mais os conceitos. O que parece claro é que, quanto mais fundo se cava na realidade, mais ela se recusa a caber nas caixinhas da lógica comum.

Essa é a beleza do conhecimento: ele nos obriga a abandonar certezas confortáveis. O espaço deixou de ser um palco e virou personagem. O tempo perdeu seu terno de gala e revelou-se cheio de rugas. A gravidade, que parecia uma força bruta, virou uma dança de geometrias invisíveis. Tudo isso aconteceu não por intuição, mas por insistência no que os números mostravam. O que parecia impossível de aceitar acabou se tornando indispensável para entender o mundo onde vivemos.

A física matou o senso comum, mas em troca nos deu um universo muito mais fascinante.

 

O cérebro pensa melhor quando sente fome

Cérebro e Cetonas

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Durante muito tempo eu associei o estado de jejum e a queima de gordura apenas à estética e à perda de peso. Acredito que a maioria de nós também já associou. Em muitos casos, existia uma fama em que jejum era para "perda de peso", um entendimento errôneo. Mas, ao mergulhar mais fundo na ciência do metabolismo, descobri que há muito mais acontecendo por trás da mobilização de ácidos graxos. Existe um mundo inteiro de comunicação bioquímica entre órgãos que trabalha silenciosamente em prol do cérebro. E tudo começa quando o corpo entra num estado que os cientistas chamam de cetose fisiológica.

O corpo tem um plano B quando a glicose some da jogada. Ele recorre à gordura. Mais especificamente, converte ácidos graxos em corpos cetônicos, que se tornam um combustível alternativo para o cérebro. Mas esses corpos cetônicos não são apenas fonte de energia. Eles funcionam como sinalizadores que informam ao organismo que é hora de ajustar diversos processos. E um dos mais fascinantes ajustes é o que ocorre dentro do cérebro.

Quem pratica jejum intermitente, exercícios intensos ou segue uma dieta cetogênica já está familiarizado com os efeitos na disposição e no foco mental. Mas o que talvez ainda passe despercebido é que essas intervenções fisiológicas provocam respostas integradas entre o fígado, o intestino, o músculo esquelético e o sistema nervoso central. Cada órgão cumpre um papel nessa rede coordenada que culmina na produção e transporte dos corpos cetônicos até o cérebro.

A maioria dos corpos cetônicos é produzida pelo fígado. Isso acontece quando os estoques de glicogênio caem e os ácidos graxos são liberados do tecido adiposo. Mas o intestino também contribui, especialmente durante o jejum, o que amplia a produção total de cetonas no sangue. Esse processo não é aleatório. Ele segue uma lógica evolutiva de sobrevivência, onde o corpo se adapta rapidamente à escassez para preservar as funções cognitivas.

Há uma engrenagem molecular por trás dessa adaptação, e um dos componentes mais importantes é o receptor nuclear chamado de Receptor Ativado por Proliferador de Peroxissoma-β / δ ou simplesmente de PPARδ. Essa molécula age como um sensor de nutrientes. Quando os ácidos graxos aumentam, PPARδ entra em cena e começa a regular genes que favorecem a oxidação de gordura e a produção de corpos cetônicos. Mas o que mais me chamou atenção é que esse mesmo receptor está presente também no cérebro.

Dentro do sistema nervoso, PPARδ participa de mudanças que afetam como os neurônios utilizam energia e se comunicam. Ele ajuda a facilitar a entrada dos corpos cetônicos no cérebro ao estimular a expressão de transportadores específicos na barreira hematoencefálica. Ou seja, o corpo prepara o caminho para que esse novo combustível tenha acesso garantido ao sistema nervoso central.

Chegando lá, os corpos cetônicos assumem o papel de protagonistas. O beta-hidroxibutirato, por exemplo, tem uma função dupla: serve de energia e atua como um modulador epigenético. Ele inibe enzimas que normalmente reprimem a expressão de certos genes, o que resulta numa ativação de rotas que favorecem a plasticidade neuronal. E é aí que entra uma das moléculas mais queridas da neurociência moderna: o Fator neurotrófico derivado do cérebro, também chamado de BDNF.

O BDNF é essencial para o crescimento e fortalecimento das conexões sinápticas. Quando o beta-hidroxibutirato aumenta no cérebro, a produção de BDNF também sobe. Isso significa mais sinapses, mais adaptação neural, mais memória, mais foco. Essa relação não é meramente teórica. Já foi observada em animais submetidos a jejum e também em pessoas que praticam exercícios físicos regulares.

Outro ponto que merece atenção é o papel do músculo esquelético nessa história. Durante o exercício físico, o músculo consome ácidos graxos e também se adapta para usar corpos cetônicos como energia. Mas ele não é apenas um consumidor. Ele se transforma num emissor de sinais. Quando estimulado por corpos cetônicos e pela própria atividade física, o músculo começa a liberar proteínas chamadas de miocinas, como a irisina e a catepsina B. Essas proteínas têm ação direta no cérebro e estimulam a produção de BDNF.

É curioso perceber como o músculo, geralmente associado apenas à força e mobilidade, atua também como uma glândula com influência sobre a mente. A musculatura ativa não serve apenas para nos manter em pé ou nos levar de um lugar para outro. Ela fala com o cérebro. Ela envia sinais que influenciam memória, aprendizagem e saúde emocional.

Durante jejum prolongado, as cetonas chegam a fornecer até dois terços da energia usada pelo cérebro. Isso me faz refletir sobre como nossos ancestrais enfrentavam períodos de escassez com estratégias metabólicas que não apenas preservavam a sobrevivência, mas também aprimoravam a capacidade de resolver problemas, caçar, fugir e adaptar-se.

Há ainda uma camada mais profunda nessa história. Os corpos cetônicos não apenas energizam. Eles mudam o jogo dentro das células. Ativam proteínas como a SIRT1, envolvida na regulação do envelhecimento e na proteção contra o estresse oxidativo. Atuam sobre processos inflamatórios, reduzem a degradação muscular e promovem um estado metabólico mais eficiente.

E não se trata apenas de cetose por meio da dieta. Exercício físico, jejum intermitente, restrição calórica... cada uma dessas estratégias provoca efeitos que convergem na produção de cetonas e no aumento do BDNF. Mas há diferenças sutis entre elas. Enquanto a dieta cetogênica eleva também os níveis de ácidos graxos poli-insaturados com ação protetora para o cérebro, o jejum ativa o intestino como órgão produtor de cetonas. Cada abordagem tem seus méritos e nuances.

Isso nos leva a questionar a lógica atual da alimentação moderna. Estamos cada vez mais distantes de períodos naturais de escassez. Comemos em excesso, com intervalos curtos entre as refeições, e raramente permitimos que o corpo acione esses mecanismos ancestrais. Vivemos em constante disponibilidade de glicose, o que pode silenciar essas rotas metabólicas vitais para a saúde cerebral.

O excesso de açúcar, a ausência de pausa alimentar e a inatividade física criam um terreno propício para a disfunção mitocondrial e o declínio cognitivo. Não é coincidência haver uma associação crescente entre dietas ocidentais e o aumento de casos de Alzheimer, Parkinson e outras doenças neurodegenerativas. O cérebro moderno está subalimentado em termos de diversidade metabólica.

Ao explorar esses caminhos alternativos, redescobrimos uma linguagem bioquímica que conecta intestino, fígado, músculo e cérebro. Percebemos que o cérebro precisa de desafios metabólicos. Precisa de momentos de escassez, de esforço físico, de mudanças na fonte de energia. Não só para manter sua função, mas também para expandir suas capacidades.

O mais interessante é que esse raciocínio não está limitado ao campo da medicina ou da ciência básica. Ele pode ser incorporado no cotidiano com escolhas simples. Caminhadas em jejum. Exercício antes do café da manhã. Uma noite sem jantar uma vez por semana. A troca de alimentos ultraprocessados por comida de verdade rica em gorduras boas.

Cada pequeno passo ativa uma cadeia de eventos que transforma o metabolismo e fortalece o cérebro. Essa perspectiva me fez enxergar o jejum e a cetose não como castigo ou privação, mas como ferramentas ancestrais que favorecem a lucidez e a vitalidade.

Ao final, o que fica é a percepção de que o corpo não age por acaso. Existe uma inteligência biológica refinada que responde ao contexto de forma adaptativa. Quando respeitamos essa lógica, os efeitos são amplos e profundamente transformadores. Não se trata apenas de emagrecimento. É uma reconfiguração interna que atravessa os tecidos, alcança o cérebro e ecoa na maneira como percebemos o mundo.


Referências:

 

The Ketogenic Diet and Brain Metabolism – Explica como os corpos cetônicos substituem a glicose como principal fonte de energia do cérebro durante jejum ou dieta cetogênica:
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnmol.2021.732120/full

Beta-hydroxybutyrate suppresses oxidative stress through histone deacetylase inhibition – Mostra que o BHB ativa genes ligados à proteção neuronal e plasticidade sináptica ao inibir HDACs:
https://elifesciences.org/articles/15092

PPARs and Brain Energy Metabolism – Detalha como o receptor PPARδ facilita a entrada de cetonas no cérebro por meio da regulação de transportadores específicos:
https://fluidsbarrierscns.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12987-024-00526-8

Exercise-induced release of myokines enhances brain function – Discute como o músculo libera miocinas como irisina e cathepsina B, que aumentam os níveis de BDNF no cérebro:
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39687518

Ketone body production by intestinal cells – Mostra que o intestino também pode produzir corpos cetônicos durante o jejum, contribuindo para o metabolismo cerebral:
https://news.mit.edu/2019/ketones-stem-cell-intestine-0822

SIRT1, ketones and aging regulation – Relaciona a ação dos corpos cetônicos na ativação de SIRT1, uma proteína ligada ao envelhecimento saudável e proteção mitocondrial:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9370141/

Ketone bodies as signaling metabolites – Resume os múltiplos papéis das cetonas como combustíveis e reguladores metabólicos e inflamatórios:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7533860/

 

Entendendo a dieta cetogênica

Dieta cetogênica

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De tempos em tempos, surge uma dieta que domina as conversas de academia, invade os vídeos de influencers e vira tema de discussão nas rodas de amigos preocupados com saúde. Nos últimos anos, a bola da vez tem sido a dieta cetogênica. Prometendo perda de peso rápida, melhora da glicemia e mais energia, ela conquistou uma legião de adeptos. E dá para vê isso atualmente em várias redes sociais. Mas entre as promessas e os resultados reais, existe um caminho cheio de curvas, detalhes bioquímicos e, principalmente, decisões que exigem cuidado.

A proposta central da cetogênica é simples no papel: reduzir drasticamente o consumo de carboidratos para forçar o corpo a entrar em um estado chamado cetose. Nesse estado, o organismo passa a queimar gordura como principal fonte de energia, produzindo corpos cetônicos no processo. Só que o simples, nesse caso, esconde uma complexidade enorme por trás.

Antes de tudo, vale lembrar que o corpo humano é movido a glicose, pelo menos em sua condição natural e preferida. O cérebro, é altamente dependente desse combustível. Quando a glicose disponível acaba, seja por jejum, esforço físico prolongado ou corte de carboidratos, o corpo ativa um plano B. Ele começa a quebrar gordura em busca de energia e, nesse processo, aparecem os famosos corpos cetônicos.

Mas nem toda cetose é igual. Existe a cetose fisiológica — que é controlada, natural e até desejada em algumas estratégias — e a cetose patológica, como a que ocorre em pessoas com diabetes tipo 1 descompensado, que pode ser perigosa e até fatal. Distinguir entre uma e outra é essencial, especialmente para quem tem problemas de saúde e pensa em seguir esse tipo de dieta por conta própria.

Apesar do rótulo de "moda", a cetogênica não é novidade. Ela já era usada há mais de um século como tratamento para epilepsia, antes mesmo de existirem os medicamentos modernos. O uso era voltado especialmente para crianças com convulsões refratárias. Com o tempo, à medida que surgiram medicamentos mais eficazes, a dieta perdeu força na medicina, mas ganhou novo fôlego nos anos 1970, quando passou a ser vendida como estratégia de emagrecimento. De lá para cá, foi reinventada diversas vezes, com nomes diferentes, mas sempre com o mesmo núcleo: baixo carboidrato, muita gordura e proteína sob controle.

O que mudou foi como ela passou a ser vista. Se antes era uma abordagem médica de nicho, hoje ela é assunto de redes sociais, livros best-sellers e até produtos industrializados com selo “keto friendly”. Mas nem tudo o que reluz é ouro.

Quando se analisa o efeito da dieta cetogênica na perda de peso, os estudos de curto prazo mostram resultados animadores. Em poucos meses, muitas pessoas realmente emagrecem. Parte disso é motivada pela redução de insulina, que facilita a queima de gordura. Outra parte tem relação com a supressão do apetite. Há uma teoria de que os corpos cetônicos reduziriam a fome, o que facilita a adesão inicial. Só que há também um truque escondido aí: nas primeiras semanas, boa parte da perda de peso vem da água. Isso mesmo, o corpo libera líquido com o glicogênio que estava estocado.

À medida que os meses passam, esse ritmo desacelera. Estudos com duração de 12 meses ou mais mostram que a vantagem da cetogênica em relação a outras dietas hipocalóricas pode ir diminuindo. No entanto, os benefícios da dieta cetogênica podem se manter bem mais superiores quando existe uma estratégia bem planejada. Algumas revisões recentes indicam que pessoas que conseguem manter uma boa adesão à cetogênica — mesmo com pequenas variações e flexibilizações — continuam apresentando resultados melhores não só no controle do peso, mas também na melhora do perfil lipídico, na sensibilidade à insulina e até na redução do uso de medicamentos.

A questão que eu acho mais complexa é de: a aderência. Manter-se em uma alimentação tão restrita por tanto tempo não é fácil. O convívio social complica, o cardápio enjoa e, em muitos casos, surgem deficiências de micronutrientes, como fibras, vitaminas e minerais. Embora isso possa ser algo desafiante, pode ter bastante benefício. Se houver uma orientação adequada, com planejamento alimentar que valorize a inclusão de vegetais fibrosos, gorduras de boa qualidade e fontes proteicas limpas, é possível manter um bom aporte de micronutrientes.

Mas a cetogênica não se resume à balança. Uma das áreas em que ela tem chamado atenção é no tratamento do diabete tipo 2. A lógica é simples: menos carboidrato, menos glicose no sangue. Alguns estudos mostraram redução expressiva na hemoglobina glicada e até diminuição no uso de medicamentos. Em um deles, participantes reduziram em mais de 80% o uso de medicamentos para controle glicêmico. Números impressionantes, sem dúvida. Só que, novamente, esses benefícios tendem a ser mais expressivos no curto prazo. Com o passar do tempo, o impacto diminui, possivelmente devido à dificuldade em manter a dieta.

Para diabete tipo 1, a conversa é mais delicada. Existe risco real de hipoglicemia e até de cetoacidose, um estado grave que pode levar à internação. Há relatos de pessoas que conseguiram melhorar o controle glicêmico com a cetogênica, mas isso exige acompanhamento médico próximo, ajuste cuidadoso da insulina e atenção redobrada aos sinais do corpo. Ainda assim, estudos recentes vêm mostrando que, com esse suporte adequado, a dieta cetogênica pode trazer benefícios reais. Em casos acompanhados por profissionais, observou-se redução significativa da hemoglobina glicada, menor variabilidade nos níveis de glicose, menos necessidade de insulina diária e melhora na qualidade de vida dos pacientes. O mais interessante é que esses efeitos não vieram acompanhados de aumento nos eventos adversos, como episódios de hipoglicemia grave ou cetoacidose, desde que os protocolos fossem bem seguidos. Há inclusive registros de pessoas com diabetes tipo 1 que mantiveram a dieta por anos, com resultados consistentes e estabilidade metabólica.

Outra preocupação frequente é a saúde cardiovascular. Afinal, uma dieta rica em gordura, muitas vezes saturada, pode mexer com os níveis de colesterol. A ciência continua dividida nesse ponto. Alguns estudos mostram aumento no HDL (o “colesterol bom”) e redução dos triglicerídeos, o que seria positivo. Por outro lado, há registros de elevação do LDL (o “colesterol ruim”) em certas pessoas, o que acende o alerta. Aqui, o tipo de gordura consumida faz toda a diferença. Apesar dessa visão tradicional sobre a gordura saturada, estudos mais recentes vêm apontando que o cenário pode ser bem mais complexo do que se pensava. Uma análise publicada no Journal of the American College of Cardiology revelou que a maioria dos grandes estudos e revisões não encontrou relação direta entre a ingestão de gordura saturada e o aumento do risco cardiovascular. Em vez de olhar isoladamente para esse tipo de gordura, pesquisadores vêm sugerindo que o impacto real depende muito mais do contexto alimentar todo: qual o padrão da dieta, quais alimentos acompanham essa gordura e qual a qualidade geral do que se consome. Outro ponto interessante é que nem toda gordura saturada se comporta da mesma forma no organismo. O ácido esteárico, por exemplo, presente no chocolate amargo e em algumas carnes, parece ter efeito neutro sobre o colesterol.

Outro ponto para levar em consideração é a gestação. Mulheres grávidas ou que planejam engravidar precisam ter atenção redobrada com dietas restritivas. Estudos associaram o baixo consumo de carboidratos na gravidez a um aumento do risco de defeitos no tubo neural do feto. Esse risco está ligado à deficiência de folato, nutriente essencial no desenvolvimento embrionário. Em casos assim, a restrição de carboidratos deve ser repensada e, se mantida, suplementada com orientação profissional.

Por outro lado, quando bem planejada e acompanhada de perto por profissionais de saúde, uma dieta com baixo teor de carboidratos — com até 100 gramas por dia — pode oferecer benefícios em contextos específicos, como mulheres com sobrepeso, obesidade ou diabetes gestacional. Estudos mais recentes mostraram que essa abordagem não compromete necessariamente a gestação, desde que se mantenha a suplementação adequada de nutrientes como o folato e a tiamina. Nessas pesquisas, não houve aumento significativo na produção de corpos cetônicos, nem efeitos negativos no peso ao nascer ou na duração da gestação. Inclusive, algumas participantes apresentaram melhora no controle glicêmico e menor necessidade de intervenção medicamentosa. Isso mostra que não é o corte de carboidrato por si só que representa o problema, mas como essa estratégia é conduzida.

O que se desenha é um cenário cheio de nuances. A dieta cetogênica não pode ser colocada no mesmo pacote de modismos sem fundamento. Ela tem base científica, resultados comprovados em várias situações e pode ser extremamente útil em certos contextos. Mas também não é solução mágica. Requer planejamento, acompanhamento e, principalmente, consciência dos próprios objetivos e limitações.

Muita embarcam nesse tipo de dieta empolgada por fotos de “antes e depois”, receitas mirabolantes e relatos empolgados nas redes. Só que por trás de cada transformação existe um corpo com história única, metabolismo próprio, hábitos, rotina e até traumas com comida. Uma dieta que serve para um pode ser prejudicial para outro. E isso vale especialmente para abordagens como a cetogênica.

Há também o risco de transferir para a comida uma série de angústias emocionais. Comer não é só nutrir o corpo. É afeto, cultura, memória e prazer. Restringir demais, mesmo com boas intenções, pode trazer frustração, culpa e até descontrole alimentar. Uma dieta que começa com foco em saúde pode virar um gatilho para distúrbios alimentares se não houver equilíbrio emocional e suporte adequado.

Tudo isso não quer dizer que a cetogênica deva ser evitada por completo. Mas que seu uso precisa ser mais consciente. Quem decide seguir esse caminho deveria fazê-lo com base em informação sólida, exames em dia e, sempre que possível, com o apoio de profissionais da saúde. Isso inclui nutricionistas, médicos e até psicólogos, dependendo do caso.

A chave não está em demonizar carboidratos nem idolatrar gorduras. Está em entender o próprio corpo, respeitar os sinais que ele dá e construir uma alimentação que faça sentido no dia a dia. Uma dieta precisa caber na vida, e não o contrário. Ser saudável envolve muito mais do que o que se coloca no prato. Passa por sono, movimento, gestão do estresse, conexões humanas e propósito.

O que fica claro é que a cetogênica pode ser uma ferramenta poderosa, desde que usada com sabedoria. Não é milagre, mas pode ser parte de uma solução. Não é simples, mas também não é impossível. Tudo depende do contexto, da intenção e do cuidado com que se faz as escolhas.

Se há algo que a ciência vem mostrando cada vez mais, é que não existe uma única fórmula para todos. Há caminhos diferentes, e todos precisam passar pelo crivo da realidade de quem vive com aquela decisão. A cetogênica pode ser um deles, desde que não se perca de vista o mais importante: saúde é um processo, não um destino. E nesse caminho, informação, escuta e flexibilidade são aliados indispensáveis.

 


Referências:


History of the ketogenic diet
Este artigo revisa o surgimento da dieta cetogênica no tratamento da epilepsia na década de 1920, seu abandono com os fármacos modernos e seu retorno recente como estratégia metabólica.
https://doi.org/10.1111/j.1528-1167.2008.01821.x

Nonequilibrium thermodynamics and energy efficiency in weight loss diets
Explora como a termodinâmica fora do equilíbrio pode explicar por que dietas cetogênicas promovem maior gasto energético e perda de gordura em comparação a outras estratégias.
https://doi.org/10.1186/1742-4682-4-27

Very-low-carbohydrate ketogenic diet vs. low-fat diet for long-term weight loss: a meta-analysis
Meta-análise mostra que dietas cetogênicas promovem maior perda de peso e melhores marcadores metabólicos em comparação às dietas com baixo teor de gordura.
https://doi.org/10.1017/S0007114513000548

Long Term Successful Weight Loss with a Combination Biphasic Ketogenic Mediterranean Diet
Mostra que alternar fases cetogênicas com períodos de dieta mediterrânea facilita a adesão e mantém os resultados a longo prazo com mais equilíbrio.
https://doi.org/10.3390/nu5125205
 

Long-Term Effects of Nutritional Ketosis for Type 2 Diabetes
Demonstra que a cetose nutricional melhora significativamente o controle da glicose, reduz a hemoglobina glicada e diminui o uso de medicamentos em pacientes com diabetes tipo 2.
https://doi.org/10.3389/fendo.2019.00348

Very-low-carbohydrate ketogenic diet in adults with Type 1 diabetes mellitus may be opposed by increased hypoglycaemia risk and dyslipidaemia
Aponta que, embora a cetogênica melhore o controle glicêmico no diabetes tipo 1, há necessidade de vigilância por possíveis riscos de hipoglicemia e alterações nos lipídios.
https://doi.org/10.1111/dme.13663

Ketogenic diet therapy in type 1 diabetes: Long-term case study
Relato de caso mostra manutenção da dieta cetogênica por 10 anos em paciente com diabetes tipo 1, com controle glicêmico excelente e sem eventos adversos graves.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC11234288/

Keto diets and type 1 diabetes: What the research says
Revisão aborda como a dieta cetogênica pode ser benéfica em alguns casos de diabetes tipo 1, desde que com controle rigoroso de insulina e suporte clínico constante.
https://www.ccjm.org/content/88/10/547

Saturated fat and cardiovascular disease controversy: The state of the science
Reavalia estudos recentes e conclui que a gordura saturada, por si só, não está ligada diretamente ao aumento do risco cardiovascular; o padrão alimentar total é mais relevante.
https://www.jacc.org/doi/10.1016/j.jacc.2020.05.077

Absolute and Relative Dietary Carbohydrate Intakes and Their Associations with Pregnancy Outcomes
Estudo observacional indica que dietas com menos de 100g de carboidratos podem ser seguras com suplementação adequada de folato e acompanhamento nutricional.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8538994/

Psicologia e Big Data

Psicologia Big Data

Ouça o artigo:

 
Você já parou para pensar que a internet, com todas as suas redes sociais, vídeos, memes e até as brigas nos comentários, virou um enorme laboratório de psicologia? Pois é. Vivemos num tempo em que tudo o que fazemos online deixa um rastro. Um rastro que não some. E que, se alguém souber olhar direito, dá para entender muita coisa sobre como a pensamos, sentimos e agimos.

Isso pode parecer assustador no começo, mas também abre um mundo de possibilidades. Afinal, nunca tivemos tanto material vivo para tentar entender o comportamento humano em ação. A diferença é que, em vez de prancheta e sala de espelho, agora o psicólogo pode usar linhas de código, servidores e algoritmos de aprendizado de máquina.

O comportamento humano virou base de dados. A psicologia, que antes era feita com entrevista e observação, agora está se juntando com algoritmo, mineração de texto, análise de padrões. O que era estudo virou produto. O que era ciência virou sistema. E estamos no meio disso, muitas vezes sem nem saber.

Nesta postagem, vamos explorar de forma crítica como a psicologia tem analisado o uso de dados e as novas possibilidades que estão surgindo com isso. Em outra postagem, eu fiz uma introdução ao tema do Big Data — é um conteúdo um pouco mais antigo e técnico, mas pode te ajudar a entender como o Big Data funciona. Agora, vamos ao texto de hoje.

Entendendo como a Psicologia e Análise de Dados interrelacionam

Qual foi a última coisa que você pesquisou no Google? Qual vídeo te prendeu no TikTok por mais de um minuto? Que tipo de meme te irritou hoje? Essas pequenas ações, quando olhadas isoladamente, parecem inofensivas. Mas coloca isso no pacote de milhões de pessoas fazendo o mesmo, todos os dias, e você tem um retrato poderoso do nosso tempo. Só que não é só um retrato. É uma ferramenta. Uma alavanca. Algo que pode ser usado para nos conhecer — ou nos controlar.

Com as ferramentas certas, dá para peneirar ou mais técnico minerar esses caos todo e tirar percepções poderosos do indivíduo. Descobrir padrões que a olho nu ninguém veria. Perceber como certas palavras aparecem juntas, como expressões mudam conforme o humor, ou até prever uma recaída depressiva só olhando o jeito que a pessoa escreve num fórum online.

Sabe aquele experimento com voluntário, sala reservada, câmera escondida? Ainda existe, claro. Mas a psicologia digital entra por outro caminho. Ela não precisa convidar ninguém. Ela observa o que já está acontecendo. O comportamento natural, espontâneo, no mundo real, ou quase real, já que muita coisa é online.

Essa história de Big Data parece moderna, tecnológica, eficiente. E até é. Mas também traz um desafio ético: até onde vai o limite de observar sem consentimento? Só porque está público, está liberado? Essas perguntas não têm resposta fácil. E qualquer pessoa que queira brincar com Big Data e comportamento humano precisa pensar muito bem nisso.

O comportamento humano virou base de dados. A psicologia, que antes era feita com entrevista e observação, agora está se misturando com algoritmo, mineração de texto, análise de padrões. O que era estudo virou produto. O que era ciência virou sistema. E a estamos no meio disso, muitas vezes sem nem saber.

Como funciona tudo isso? A parte inicial é do trabalho que é das mais importantes: preparar o dado para análise. Imagina que você coletou mil discursos de políticos. Eles vêm com tudo: código HTML, marcação de parágrafo, metadado, informação inútil. Você tem que limpar isso tudo. Tirar o que não presta, organizar, recortar, transformar aquele texto em números. Isso leva tempo. E dá trabalho. Qual foi a última coisa que você pesquisou no Google? Qual vídeo te prendeu no TikTok por mais de um minuto? Que tipo de meme te irritou hoje? Essas pequenas ações, quando olhadas isoladamente, parecem inofensivas. Mas coloca isso no pacote de milhões de pessoas fazendo o mesmo todos os dias, e você tem um retrato poderoso do nosso tempo.

Os dados são tão grandes que nem cabe na memória do computador. Precisa dividir em pedaços, processar em lote, usar amostragem. É uma engenharia toda que acontece nos bastidores antes de qualquer análise sair. Existem ferramentas que conta palavras positivas, negativas, neutras. Tem algoritmo que acha padrões de linguagem que indicam ansiedade, raiva ou alegria. E tem modelos mais sofisticados que pegam documentos e extraem os “assuntos” que mais aparecem, mesmo que ninguém tenha dito quais são esses assuntos. É como se você jogasse mil textos de desabafos e o sistema te dissesse: “olha, tem um grupo de textos falando sobre solidão, outro sobre família, outro sobre grana”. A máquina descobre isso sozinha, só observando como as palavras se agrupam.

Esse tipo de abordagem já foi usado para estudar terapia de casal, discurso político, fóruns de saúde mental. E os resultados são impressionantes. Dá para prever divórcio, traçar o perfil emocional de um partido, ou identificar quem tá prestes a ter uma crise de pânico — tudo baseado em texto.

Uma das coisas crescente é a prática de Machine Learning, que é uma forma inteligente de fazer a máquina aprender com exemplos. A máquina não sabe nada no começo, precisa ver muitos exemplos, comparar padrões, testar hipóteses. É um aprendizado que acontece aos poucos, como quem vai pegando o jeito. Você mostra dados com respostas, e ela tenta adivinhar, erra, acerta, ajusta. Tem algoritmo que reconhece rostos, outro que entende se um e-mail é spam. E tem modelos mais avançados que leem milhares de mensagens e descobrem, sozinhos, o tom, o tema, o sentimento. É como se você jogasse mil avaliações de clientes e o sistema dissesse: “olha, esse grupo tá falando mal do atendimento, aquele outro elogia a entrega”. A máquina aprende com a experiência. Sem regra fixa, só observando os dados.

Isso pode ser usado para classificar textos, prever diagnósticos, sugerir intervenções. O segredo está em como transformar aquele dado bruto (um texto, uma imagem, um áudio) em algo que a máquina entenda. Chamamos isso de “extrair características”. É como se pegasse um texto e dissesse: “nesse texto tem 15 palavras de raiva, 3 de alegria, 2 de negação, e é escrito em frases curtas”. Pronto. Agora a máquina pode trabalhar.

Às vezes, a melhor análise é feita por pessoas mesmo. O que importa é o olhar. A máquina pode ajudar, mas ela não entende o contexto como a entendemos. Já pensou uma IA analisando sarcasmo? Ou ironia fina? Ou aquela indireta cheia de veneno que a pessoa posta disfarçada de texto motivacional? A máquina ainda não chega lá. Por isso, analistas combina análise automática com codificação humana. Uma valida a outra e o resultado fica mais claro.

Só porque o dado esta ali, não significa que ele é confiável. Muitas vezes, os dados foram gerados sem intenção nenhuma de serem analisados. Isso significa que eles podem ser incompletos, enviesados, ou simplesmente errados. Uma pessoa posta algo no calor do momento, outra exagera, outra mente. Isso tudo deve ser levado em consideração. A forma no qual os dados são coletados pode alterar tudo. Um erro na hora de pegar os tweets, pode fazer você analisar só os mais populares, ou só os de um grupo específico. Aí o resultado parece dizer uma coisa, mas pode estar incompleto ou torto.

E tem ainda o perigo da má interpretação. Achar que encontrou uma relação significativa quando, na verdade, é só coincidência. Isso acontece direto quando se faz análise exploratória sem muito critério. A linha entre “descoberta genial” e “viagem total” é bem fina.

Os dados e como eles podem ser explorados

Muitas dados para um analista é tentador. Os dados estão lá, pedindo para serem explorados. Mas tem alguns do outro lado. Pessoa que, mesmo sem saber, deixou pistas da sua intimidade. É fácil esquecer disso quando se trabalha com milhões de registros anônimos. Mas cada dado tem um rosto por trás. O que parece escolha, muitas vezes é só sugestão disfarçada. Acostumamos a receber tudo pronto: o vídeo recomendado, a matéria que combina com a nossa bolha, o produto que aparece “do nada” justo quando a gente pensou nele. Mas nada disso é acaso. É sistema.

Um sistema que aprendeu a explorar nossas emoções, nossos hábitos, nossos padrões mais íntimos. Que mapeia o que nos afeta e usa isso para nos manter presos. Presos no feed, na compra impulsiva, no clique fácil. Tudo otimizado para gerar mais engajamento. Não mais verdade, nem mais bem-estar. Só mais clique. E se achamos que tem o controle, é só ilusão. Porque quem domina os bastidores, sabe exatamente onde tocar para fazer reagirmos. E isso não é teoria da conspiração. É técnica. É psicologia aplicada de forma fria, estratégica, comercial.

A grande promessa era que, com dados, conseguiríamos entender melhor os outros. Prever crises emocionais, melhorar relacionamentos, personalizar terapias. E até aconteceu, em alguns casos. Mas o que dominou foi outro uso: usar esse conhecimento para vender mais, manipular mais, capturar mais tempo de atenção.

A psicologia, que sempre foi ferramenta para escutar e cuidar, foi sequestrada para virar arma de convencimento. Muitos cálculos para entender sobre emoções, ter uma métrica para compreender como o indivíduo pensa. Os algoritmos entendem o que você gosta. E vão te mostrar mais daquilo. O problema é que, com o tempo, você para de ver o que é diferente. Para de ser desafiado. Para de crescer. Essa bolha de conforto não é inofensiva. Ela afasta pessoas, endurece opiniões, fortalece extremismos. Você começa a achar que todo mundo pensa como você. E quem não pensa tá errado, ou pior: é inimigo. Isso não é acidente. É estratégia. Porque conflito gera clique. E clique gera lucro.

Conclusão

O mais inquietante nisso tudo é perceber que o conhecimento da psicologia, que nasceu para promover cuidado, escuta e compreensão, acabou sendo desviado do seu caminho. Hoje, ele alimenta sistemas que estimulam o vício digital, a polarização, a impulsividade. A psicologia foi transformada em produto de prateleira, disfarçado de conveniência, mas operando como vigilância. Deixamos de ser sujeito para virar métrica, variável, target. Cada interação online pode ser mais uma camada de um perfil invisível que alguém, em algum lugar, está usando para decidir o que você vai ver, pensar, sentir — sem você saber, e sem poder escolher.

A psicologia, se quiser continuar sendo ciência humana, precisa resgatar seu compromisso com o cuidado e a liberdade. E nós, como indivíduos, precisamos reaprender a duvidar, a escolher com consciência, a sair da bolha, e lembrar que pensar diferente é um ato de resistência. A tecnologia não precisa ser inimiga, mas só vai ser aliada quando estiver a serviço da autonomia, e não da manipulação.


Referências:

A practical guide to big data research in psychology: https://psycnet.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2Fmet0000111

Cérebro e entropia

Cerebro e Entropia

Ouça o artigo:


Existem assuntos interessantes sobre como o cérebro se comporta, um dos assuntos que li: a maioria da atividade do cérebro acontece quando estamos em repouso. Em outras palavras, é quando estamos tranquilos. Sabe aquele momento em que você só está olhando para o teto, andando sem destino, ou apenas deixando os pensamentos vagarem? Pois é. É aí que o cérebro está mais ocupado — ou melhor, mais espontâneo. E isso não é papo de meditação ou esoterismo, é ciência mesmo.

O estudo do cérebro em estado de repouso tem ganhado cada vez mais espaço na neurociência. Uma das ideias mais interessantes que surgiram é a de que o cérebro, mesmo sem tarefa nenhuma, fica produzindo padrões e flutuações complexas. Essas flutuações, que antes pareciam ruído, começaram a ser vistas como um tipo de reserva funcional, um preparo silencioso para quando a gente realmente precisa usar nossas habilidades cognitivas.

E é aí que entra um conceito que parece saído direto de um curso de física, mas que está revolucionando o modo como entendemos o funcionamento cerebral: a entropia.

Entropia, nesse contexto, é uma medida de imprevisibilidade, de aleatoriedade. Quando falamos em entropia do cérebro, ou "brain entropy", estamos tentando entender o quão organizadas — ou desorganizadas — estão as flutuações da atividade cerebral em repouso. Um cérebro muito caótico pode ter dificuldade de manter funções básicas. Um cérebro rígido demais, com pouca variação, pode ser pouco adaptável. Então a entropia seria como uma régua para medir esse equilíbrio sutil entre ordem e desordem. Parece complexo de entender, mas não é.

Essa medida, que parece tão técnica, tem relação direta com nossa inteligência, com os anos de estudo que acumulamos e até com o desempenho em tarefas cognitivas. Quando alguém diz que estudar "expande a mente", talvez esteja falando, sem saber, de uma redução na entropia cerebral em regiões estratégicas do cérebro.

Pesquisadores conseguiram medir essa entropia usando exames de ressonância magnética funcional em repouso. Ao invés de observar o cérebro durante tarefas específicas, eles capturaram os momentos em que os voluntários estavam apenas descansando, sem estímulos externos. E o que viram foi revelador: mesmo sem fazer nada, o cérebro mantém uma atividade riquíssima, cheia de flutuações que carregam informações sobre nossa cognição e até nosso histórico de aprendizado.

A entropia foi medida principalmente em duas redes cerebrais: a rede do modo padrão (a famosa DMN, aquela que fica ativa quando estamos pensando em nós mesmos, no futuro, em situações sociais) e a rede de controle executivo (ECN, mais voltada para o planejamento, atenção e tomada de decisão). Essas duas áreas são tipos os bastiões da cognição de alto nível. E a entropia nelas não é aleatória: quanto menor a entropia nessas redes, melhor a pessoa se sai em testes de inteligência fluida, que avaliam a capacidade de resolver problemas novos.

Olha que interessante: menos entropia, mais inteligência. É como se o cérebro, ao manter essas regiões mais coesas e menos caóticas em repouso, ficasse mais bem preparado para responder a desafios quando necessário. Parece contraintuitivo, não é? Mas faz sentido se pensarmos que um sistema mais estável tem mais chance de acessar com precisão os circuitos certos na hora de agir.

E tem mais: anos de escolaridade também aparecem relacionados a essa entropia. Pessoas com mais tempo de estudo tendem a ter entropia menor naquelas mesmas regiões. Isso pode indicar que o aprendizado formal ajuda a refinar os caminhos internos do cérebro, reduzindo o ruído e aumentando a eficiência. Estudar, nesse caso, organiza literalmente o cérebro por dentro.

Agora, não significa que todo o cérebro deve ter entropia baixa. Outras regiões, como as áreas motoras e visuais, apresentaram entropia mais alta. E tudo bem. Cada região tem sua dinâmica própria. O importante é que, nas áreas ligadas ao controle e ao pensamento de alto nível, uma entropia mais "comportada" parece ser benéfica.

Um ponto interessante desse estudo foi a estabilidade temporal da entropia. Eles dividiram as medições em várias janelas de tempo e viram que o padrão se repetia: a entropia não variava muito ao longo do tempo. Isso é importante porque mostra que essa medida não é uma fotografia passageira do cérebro, mas algo mais próximo de uma "assinatura" estável, um traço da pessoa.

Outra descoberta que chamou atenção foi a diferença entre homens e mulheres. As mulheres apresentaram entropia mais alta em algumas regiões, como o córtex visual e motor. A explicação ainda não é clara, mas pode envolver fatores hormonais e diferenças no processamento sensorial entre os sexos. Ainda é cedo para tirar conclusões definitivas, mas já dá para dizer que gênero também influencia esse tipo de organização cerebral.

E o envelhecimento? A entropia tende a aumentar com a idade, principalmente naquelas regiões que citamos antes, a DMN e a ECN. Pode parecer preocupante, mas também abre uma brecha para esperança: se estudar ajuda a diminuir a entropia, talvez a educação ao longo da vida seja uma forma de proteger o cérebro do desgaste natural. Estimular o pensamento, manter-se curioso, aprender coisas novas, tudo isso pode ser um jeito de frear a desorganização que vem com o tempo.

E o mais incrível: a entropia também tem relação com desempenho em tarefas práticas. Em testes de memória de trabalho, linguagem e raciocínio relacional, pessoas com entropia mais baixa nas áreas-chave do cérebro tiveram desempenho melhor. É como se o estado de repouso do cérebro antecipasse sua eficiência em tarefas futuras. A calma antes da tempestade, mas uma calma cheia de informação.

Alguns acreditam ainda que o cérebro funciona como uma máquina que só liga quando acionamos. Mas a verdade é que ele nunca desliga. Mesmo em silêncio, ele está lá, processando, se reorganizando, testando caminhos. E quanto mais entendemos esse funcionamento silencioso, mais nos damos conta de que cuidar do cérebro vai muito além de resolver palavras-cruzadas ou fazer sudoku.

A qualidade do nosso repouso mental, a maneira como deixamos o pensamento vagar, a quantidade de estímulos que permitimos entrar, tudo isso influencia o nível de organização interna. É um chamado para dar mais valor ao ócio criativo, à pausa, ao silêncio. É ali, nesses momentos que parecem desimportantes, que o cérebro afina seus instrumentos.

E se tem uma coisa que esse estudo escancara, é que inteligência não é só dom, nem só esforço consciente. Ela também depende de como o nosso cérebro se organiza quando ninguém está olhando. A inteligência silenciosa, que brota do caos bem controlado da entropia.

O mais bonito disso tudo é perceber que o cérebro pode mudar. Não estamos presos a uma configuração de fábrica. A entropia cerebral é moldável. Pode ser reduzida com estímulo, com aprendizagem, com experiência. E essa mudança não acontece só nas crianças, mas em qualquer idade.

Fica, então, a provocação: que tipo de entropia você anda cultivando na sua mente? Você deixa o pensamento vagar com qualidade? Alimenta sua mente com bons desafios? Cria espaço para que a calma cerebral seja também fértil? A ciência tem mostrado que o cérebro, mesmo em descanso, é uma festa de possibilidades. E entender como essa festa se organiza pode ser o segredo para viver com mais lucidez, mais criatividade e mais saúde mental.


Oa algoritmos digitais na Era da internet

Algoritmos

Ouça o artigo:

Não é mais só uma questão de publicidade chata te seguindo por onde você vai na internet. Aquela sensação incômoda de abrir um site e ver exatamente o produto que você comentou com um amigo minutos antes não é coincidência. Isso é mais complexo que se possa imaginar. É arquitetura pensada para te estudar, aprender contigo, e agir com base no que você representa para uma máquina.

Hoje, somos rastreados em tempo real por um conjunto de sistemas de computação que mal conseguimos ver. Tudo parece funcionar suavemente: um app de mapa indicando o caminho mais rápido, um feed de notícias com assuntos que parecem te conhecer melhor do que sua mãe, uma loja virtual que acerta no gosto como um velho amigo. Mas o que parece mágica, na verdade, é só tecnologia empilhada com uma missão muito clara: conhecer você mais do que você mesmo.

Os algoritmos não dormem. Eles operam o tempo inteiro, tomando decisões em frações de segundo. Mas o que poucas pessoas se dá conta é que esses algoritmos não são neutros. Eles carregam intenções. E não são só das empresas. Tem país se aproveitando disso, tem guerra que começa na rede antes de chegar ao solo, tem disputa comercial, ideológica e até religiosa sendo alimentada por essas máquinas que supostamente só querem vender fone de ouvido.

A base de tudo é um conceito simples: dados. Cada clique, cada rolagem de tela, cada pausa que você faz num vídeo está sendo registrado. E não, isso não é paranoia. É só o modelo de negócios que move a economia digital. Dados viraram o novo petróleo, só que mais barato de extrair e muito mais difícil de regular. As grandes corporações aprenderam a usar isso com maestria. Elas criaram sistemas que organizam, categorizam, associam padrões e montam um retrato seu mais detalhado do que seu histórico escolar ou sua ficha médica.

Você pensa que está no controle, mas quem está guiando o volante é o algoritmo. Ele te entrega conteúdo que confirma o que você já pensa, reforça sua bolha e impede que você veja o mundo sob outras lentes. Isso não é apenas uma questão de marketing, é controle de narrativa. E isso, sim, interessa à geopolítica.

A coleta de dados é feita em larga escala. Bancos de dados com bilhões de registros circulam entre servidores espalhados pelo planeta. Uma empresa que hoje te vende um plano de celular, amanhã pode estar vendendo suas informações de consumo para outra que trabalha com campanhas eleitorais. Ou, pior, para uma empresa estrangeira ligada a um governo com interesses bem diferentes dos seus.

Em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica mostrou que os dados de perfis do Facebook foram usados para manipular o comportamento de eleitores em vários países. A empresa criou modelos psicológicos baseados em curtidas, fotos e interações simples, e com isso foi capaz de prever – e influenciar – decisões de voto. Esse episódio escancarou algo que já vinha acontecendo há muito tempo, mas que ninguém queria enxergar: a engenharia social digital não é mais ficção. Ela é método. É estratégia de guerra fria 2.0.

E isso está longe de ter acabado. A China, por exemplo, desenvolve com precisão o chamado “crédito social”, um sistema que monitora e classifica cidadãos com base em seu comportamento. Um atraso em pagamento, uma crítica ao governo, uma compra suspeita... tudo isso pode impactar sua pontuação e limitar seu acesso a serviços, emprego ou transporte. Parece distopia, mas é real. E inspira outros governos.

Já os Estados Unidos, embora não adotem oficialmente algo semelhante, lideram o domínio global sobre dados. Suas empresas controlam as maiores plataformas de busca, redes sociais e sistemas operacionais. Isso dá a Washington uma influência indireta, mas poderosa, sobre como bilhões de pessoas se informam, consomem e se relacionam.

A disputa pelos dados se tornou uma das novas fronteiras da geopolítica. Não se trata mais só de armas, petróleo ou território. Quem controla os fluxos de informação digital tem vantagem estratégica. E isso explica por que há tanto interesse em sabotar infraestruturas tecnológicas de rivais, invadir sistemas governamentais, ou até mesmo banir redes sociais de origem estrangeira, como foi o caso do TikTok nos EUA e na Europa.

Mas, mesmo nesse cenário global, o usuário comum segue achando que está só navegando por diversão. Ninguém lê os termos de uso. Poucos sabem como funcionam cookies, rastreadores, machine learning ou computação em nuvem. E é aí que mora o perigo. Porque uma sociedade que não entende as engrenagens que regem sua vida digital é uma sociedade fácil de manipular.

Sistemas de recomendação, como os usados pela Netflix, Amazon ou YouTube, são ótimos exemplos. Eles analisam seu histórico e cruzam com o comportamento de milhões de outros usuários para prever o que você vai gostar. Isso pode parecer útil, e muitas vezes é. Mas também pode te prender num ciclo vicioso, onde você nunca mais tem contato com conteúdos que te desafiem, que expandam seu olhar ou provoquem reflexão. Você se torna um espectador moldado sob medida para agradar ao próprio espelho.

Esse tipo de controle é sutil, mas profundo. A computação moderna permite filtrar, ranquear e priorizar informações com base em critérios que você nunca conhecerá. Nem sempre é má-fé. Às vezes é só eficiência matemática. Mas, quando os critérios são opacos, o resultado pode ser uma bolha invisível onde você acha que tem liberdade de escolha, mas só recebe o que foi pré-definido para você.

E quanto mais você interage, mais o sistema aprende. É uma retroalimentação constante. Seu perfil vai sendo refinado, suas preferências sendo limadas até restar uma versão digital sua tão previsível quanto um roteiro de novela. Esse retrato não é só seu. Ele pode ser comparado com milhares de outros perfis, permitindo identificar tendências, prever comportamentos em massa e até antecipar crises.

O marketing político já entendeu isso. As campanhas deixaram de ser generalistas. Hoje, cada grupo recebe uma mensagem feita sob medida. A linguagem muda, o foco muda, até a imagem do candidato pode mudar conforme o público-alvo. Isso é microtargeting, e ele não depende mais de panfletos ou comícios. Ele vive nos seus stories, nas sugestões do seu streaming, nas notificações do seu celular.

Com as eleições se tornando cada vez mais disputadas, não é surpresa que dados pessoais virem arma política. E aqui entra mais uma camada: os algoritmos não agem sozinhos. Eles são escritos por pessoas. Pessoas com crenças, com ideologias, com interesses. Mesmo que inconscientemente, esse viés passa para o código. E o código molda o mundo.

A neutralidade da tecnologia é um mito reconfortante. Serve para aliviar a responsabilidade de quem programa, de quem lucra, de quem governa. Mas a verdade é que toda decisão automatizada tem uma lógica por trás. E essa lógica serve a alguém. Seja a um investidor buscando mais engajamento, seja a um governo querendo mais controle, ou a um movimento político tentando empurrar uma narrativa.

Se hoje os algoritmos sabem quem você é, amanhã eles saberão o que você vai fazer. E isso muda o jogo. Antecipar ações humanas com base em dados é o Santo Graal da segurança, do consumo e da dominação ideológica. Um Estado que consiga prever um ato de protesto antes que ele aconteça, pode agir preventivamente. Uma empresa que entenda sua próxima necessidade antes mesmo de você expressá-la, pode te vender algo que você ainda nem sabia que queria.

E não é só com base nos dados que você entrega de forma consciente. Os dispositivos atuais capturam muito mais do que cliques. Temperatura do ambiente, batimento cardíaco, tempo de resposta, dilatação da pupila... Tudo isso pode ser usado para inferir estados emocionais. Não estamos falando apenas de perfis digitais. Estamos falando de leitura comportamental avançada, quase fisiológica.

Com o avanço da inteligência artificial e do processamento em larga escala, essa vigilância emocional tende a crescer. O marketing sensível ao contexto já está sendo testado. Imagine receber uma oferta diferente dependendo do seu humor. Ou ver uma notícia com uma manchete mais agressiva porque seus sinais físicos indicaram irritação. Isso não é mais ficção científica. É tecnologia em desenvolvimento.

Nesse cenário, proteger dados virou mais do que uma questão de privacidade. É uma questão de soberania. Um país que depende de infraestrutura estrangeira para processar os dados da sua população está entregando um poder imenso nas mãos de outros. A nuvem, por mais etérea que pareça, tem dono. E nem sempre esse dono tem os mesmos valores que o seu.

O desafio não está só em regular o uso dos dados. Está em entender como essas ferramentas moldam o comportamento coletivo, influenciam decisões políticas e alteram a forma como percebemos o mundo. Precisamos aprender a ler os algoritmos como lemos manchetes, desconfiar de sugestões como desconfiamos de boatos, e questionar sistemas como questionamos autoridades.

Enquanto isso não acontecer, vamos seguir alimentando uma máquina que cresce comendo quem somos e devolvendo o que ela quer que a gente seja. E você aí achando que só queria ver um vídeo engraçado de gato.