A relação entre cafeína e queima de gordura sempre despertou muito interesse. De um lado, os praticantes de atividade física que buscam melhorar a desempenho ou acelerar a perda de peso. Do outro, cientistas tentando compreender os efeitos reais da substância no metabolismo. Em meio a tantos estudos, surgem perguntas que ainda permanecem na boca de quem bebe um café forte pela manhã: a cafeína aumenta realmente a queima de gordura? Ela funciona melhor em repouso ou durante o exercício? Existe uma dose ideal? E o efeito é igual para todo mundo?
Durante muitos anos, acreditou-se que a cafeína aumentava a oxidação de gordura, principalmente durante o exercício. A ideia era que, ao consumir cafeína antes de uma atividade física, o corpo utilizaria mais gordura como fonte de energia, poupando os estoques de carboidrato e retardando a fadiga. Essa visão fez parte da formação de milhares de profissionais da área da saúde. Mas, com o passar do tempo, os dados passaram a contar uma história mais complexa. Alguns estudos sugeriram que a cafeína, na verdade, poderia aumentar o uso de carboidratos durante o exercício. Outros mostraram aumento na concentração de ácidos graxos no sangue em repouso. E assim a discussão ganhou nuances.
Um ponto importante é que nem todos os estudos avaliaram da mesma forma o metabolismo de gordura. Alguns mediram a razão entre o oxigênio consumido e o gás carbônico produzido durante o esforço físico. Outros analisaram amostras de sangue em busca de marcadores como glicerol e ácidos graxos livres. Esses dois caminhos oferecem retratos diferentes do que está acontecendo dentro do corpo. Em muitos casos, um estudo mostrava que a oxidação de gordura não aumentava, mas os marcadores sanguíneos indicavam uma ativação da lipólise. Ou seja, a gordura estava sendo liberada dos tecidos, mesmo que não estivesse sendo queimada imediatamente.
Ao reunir quase cem estudos com mais de novecentos participantes, um levantamento recente tentou trazer respostas mais precisas. O que se observou foi que a cafeína, de fato, aumenta o metabolismo da gordura. O efeito é pequeno, mas estatisticamente consistente. E aparece tanto em repouso quanto durante o exercício. A diferença é que, em repouso, esse efeito parece ser um pouco mais forte.
Essa diferença entre repouso e atividade física tem uma explicação fisiológica simples. Quando o corpo está em repouso ou em um nível leve de atividade, ele tende a usar gordura como principal fonte de energia. Nesse cenário, a cafeína entra como um estímulo adicional para liberar mais gordura dos tecidos, ampliando sua disponibilidade para ser utilizada. Já em atividades mais intensas, o organismo passa a depender mais dos carboidratos. A gordura fica em segundo plano porque o corpo precisa de energia mais rápida. Mesmo assim, a cafeína ainda consegue atuar, mas com menor protagonismo.
Quando se compara os métodos de medição, os dados obtidos por meio de exames de sangue mostram efeitos mais claros. A análise de gases respiratórios muitas vezes subestima o quanto de gordura está sendo mobilizada. Isso acontece porque a liberação de ácidos graxos nem sempre se traduz imediatamente em queima. Pode haver um intervalo entre a mobilização da gordura e sua oxidação. Essa diferença de timing é um detalhe importante que influencia bastante a interpretação dos resultados.
A dose utilizada também chamou atenção. Em geral, doses entre 3 e 6 miligramas por quilo de peso corporal são as mais comuns em estudos. Mas já há evidências de que até mesmo quantidades menores, como 1 mg/kg, podem ter efeito. A resposta não aumenta proporcionalmente com a dose. Não é porque se consome mais cafeína que o corpo automaticamente queima mais gordura. Existe um teto. A partir de certo ponto, aumentar a quantidade pode trazer mais efeitos colaterais do que benefícios. Taquicardia, irritação, desconforto intestinal e insônia são apenas alguns deles. Para a maioria das pessoas, uma dose média, tomada em jejum antes de uma caminhada, já é suficiente para sentir os efeitos.
Outro aspecto relevante é o estado nutricional do indivíduo. Em jejum, o corpo naturalmente mobiliza mais gordura. Quando a cafeína é consumida nesse contexto, esse processo se intensifica. O jejum cria um ambiente propício para a lipólise, e a cafeína atua como um acelerador. Isso não significa que a substância não funcione quando ingerida após uma refeição, mas os efeitos podem ser menos evidentes. Essa diferença reforça a ideia de que o contexto de uso é fundamental. Não se trata apenas da substância em si, mas de como e quando ela é utilizada.
E quanto às diferenças entre indivíduos? Curiosamente, o efeito da cafeína sobre o metabolismo da gordura não mostrou variações relevantes entre homens e mulheres, nem entre pessoas treinadas e sedentárias. Isso indica que a resposta metabólica à cafeína é relativamente uniforme, pelo menos no que se refere à oxidação de gordura. Cada organismo tem suas particularidades, claro, mas os dados sugerem que, nesse aspecto, o comportamento tende a seguir um padrão semelhante.
A presença ou não de hábito com cafeína também foi analisada. Houve efeito tanto em pessoas que já consumiam cafeína regularmente quanto naquelas que não estavam acostumadas. Isso desmonta o argumento de que apenas quem não tem tolerância se beneficia. Ainda que a sensibilidade varie, a resposta metabólica se manifesta em ambos os grupos.
Quando se considera o uso da cafeína com foco em emagrecimento ou otimização metabólica, a estratégia mais promissora parece ser o uso moderado e frequente, em uma rotina equilibrada. Sozinha, a cafeína não tem o poder de transformar o metabolismo de forma significativa. Mas, como parte de um conjunto de hábitos saudáveis, pode contribuir para um cenário mais favorável à queima de gordura. Pequenas diferenças, acumuladas ao longo do tempo, fazem grande diferença.
Há ainda o aspecto comportamental. Consumir uma bebida quente, como o café, antes de se exercitar, cria um ritual que prepara o corpo e a mente para a atividade. Isso também influencia na percepção de esforço, na disposição e na regularidade dos treinos. Não se trata apenas de metabolismo. Há um componente motivacional envolvido, que pode ser decisivo para a adesão a um estilo de vida mais ativo.
No campo do desempenho, atletas também exploram a cafeína com objetivos específicos. Ela é reconhecida por melhorar o tempo de reação, aumentar o estado de alerta, reduzir a percepção de esforço e retardar o início da fadiga. Todos esses fatores se somam ao efeito metabólico. Ainda que a contribuição da cafeína para a queima de gordura não seja enorme, sua influência sobre o desempenho geral compensa.
O mais interessante é perceber como uma substância tão comum, presente em algo tão cotidiano como uma xícara de café, pode ter um impacto real sobre processos fisiológicos tão complexos. Claro que não se deve romantizar. Não é a solução definitiva para nenhum problema metabólico. Mas entender sua atuação ajuda a tomar decisões mais inteligentes.
Muitas vezes, o que falta é justamente esse tipo de conhecimento. Sabe-se que a cafeína tem efeito termogênico, que pode contribuir para um gasto calórico ligeiramente maior ao longo do dia. Sabe-se que ela pode modular o apetite em algumas pessoas. E sabe-se, agora com mais confiança, que também pode aumentar a oxidação de gordura. Ao reunir essas peças, surge um quadro mais claro.
Ainda há muito o que descobrir. A ciência continua investigando como diferentes tipos de cafeína, como a presente no chá-verde ou no guaraná, atuam no organismo. Estuda-se também a interação entre cafeína e outros nutrientes, como polifenóis, e como essas combinações podem potencializar os efeitos. Também há interesse em compreender como a genética influencia na resposta à cafeína, já que algumas pessoas metabolizam mais rápido do que outras.
Em um cenário de crescente busca por autonomia sobre o próprio corpo, esse tipo de informação se torna ainda mais relevante. Saber que um hábito simples como tomar café pode ter implicações reais sobre o metabolismo muda a relação com o que é cotidiano. Passa-se a olhar para o próprio comportamento com mais curiosidade e senso de experimentação.
E se, ao invés de seguir modismos ou soluções milagrosas, as pessoas começassem a testar o que funciona melhor para si mesmas, baseadas em conhecimento sólido e em experiência própria? O uso da cafeína, nesse contexto, deixa de ser uma recomendação genérica e passa a ser uma ferramenta personalizada.
Talvez o segredo esteja justamente nisso: usar o conhecimento científico não para ditar regras, mas para ampliar horizontes. E a cafeína, longe de ser uma solução mágica, pode ser uma dessas chaves discretas que, quando bem utilizadas, ajudam a abrir portas para um metabolismo mais eficiente.
Talvez tudo comece por aquela xícara fumegante na primeira hora do dia, não só pelo prazer ou pelo hábito, mas por entender que ali, naquele momento simples, existe uma interação sofisticada entre substância, organismo e contexto. Uma interação que, no fim das contas, mostra como o cotidiano pode ser uma ponte silenciosa para uma vida mais equilibrada.
Referências:
Metabolic effects of caffeine in humans: Lipid oxidation or futile cycling – Estudo que investigou se a cafeína aumenta a oxidação de gordura ou apenas ativa processos metabólicos ineficazes: https://doi.org/10.1093/ajcn/79.1.40
Optimizing fat oxidation through exercise and diet – Revisão sobre como melhorar a queima de gordura com estratégias alimentares e de exercício: https://doi.org/10.1016/j.nut.2004.04.005
The effect of caffeine on free fatty acids – Estudo clássico que mostrou o aumento de ácidos graxos livres após consumo de cafeína: https://doi.org/10.1001/archinte.1965.03870050104015
Response of free fatty acids to coffee and caffeine – Investigação sobre como café e cafeína afetam a lipólise no sangue: https://doi.org/10.1016/0026-0495(68)90054-1
Analysis of sex-based differences in energy substrate utilization during moderate-intensity aerobic exercise – Análise de como homens e mulheres usam gorduras durante exercício moderado: https://doi.org/10.1007/s00421-021-04802-5
Failure of caffeine to affect substrate utilization during prolonged running – Estudo que não encontrou alteração no uso de gordura com cafeína durante corrida longa: https://doi.org/10.1249/00005768-198502000-00029
Does caffeine added to carbohydrate provide additional ergogenic benefit for endurance? – Avaliação se cafeína somada a carboidratos melhora a resistência física: https://doi.org/10.1123/ijsnem.21.1.71
Effects of caffeine ingestion on exercise testing: A meta-analysis – Análise de vários estudos sobre o efeito da cafeína no desempenho físico: https://doi.org/10.1123/ijsnem.14.6.626
Effects of caffeine ingestion on rating of perceived exertion during and after exercise: A meta-analysis – Mostra que a cafeína reduz a percepção de esforço durante exercícios: https://doi.org/10.1111/j.1600-0838.2005.00445.x
Normal caffeine consumption: Influence on thermogenesis and daily energy expenditure in lean and postobese human volunteers – Cafeína aumenta o gasto calórico diário, mesmo em doses normais: https://doi.org/10.1093/ajcn/49.1.44
Caffeine and physiological responses to submaximal exercise: A meta-analysis – Mostra efeitos fisiológicos da cafeína em exercícios moderados: https://doi.org/10.1123/ijspp.2017-0312
Caffeine and exercise: Metabolism, endurance and performance – Revisão ampla sobre os efeitos da cafeína na performance e no metabolismo: https://doi.org/10.2165/00007256-200131110-00002
Does caffeine alter muscle carbohydrate and fat metabolism during exercise? – Estudo que questiona a ideia de que a cafeína muda o metabolismo muscular: https://doi.org/10.1139/H08-129
Caffeine ingestion enhances Wingate performance: A meta-analysis – Meta-análise sobre o efeito da cafeína em exercícios anaeróbicos intensos: https://doi.org/10.1080/17461391.2017.1394371
Fat burners: Nutrition supplements that increase fat metabolism – Revisão sobre suplementos que aumentam o metabolismo da gordura, incluindo a cafeína: https://doi.org/10.1111/j.1467-789X.2011.00908.x
Regulation of endogenous fat and carbohydrate metabolism in relation to exercise intensity and duration – Estudo clássico que define como o corpo alterna entre gordura e carboidrato: https://doi.org/10.1152/ajpendo.1993.265.3.E380