
Já houve dias em que eu acordava sem motivo algum ás 5 da manhã, mesmo tendo ido dormir tardiamente. Não era ansiedade, tampouco insônia. Era como se algo muito antigo em mim dissesse que aquele era o momento certo de abrir os olhos. E durante anos, eu ignorei essa possibilidade de que talvez não fosse apenas o costume ou a rotina que me puxava do sono. Foi após ler sobre relógios biológicos que algo começou a fazer sentido para mim. Mas o que me deixou realmente intrigado foi descobrir que talvez esse "relógio" não seja apenas um ajuste moderno de seres complexos, mas um mecanismo muito mais antigo. Tão antigo quanto a própria vida que respira oxigênio.
É fascinante imaginar que, mesmo antes dos animais com cérebros, antes dos organismos multicelulares, já existiam ritmos que orientavam a vida. O artigo que li(1) recentemente trouxe um panorama que fez tudo isso parecer ainda mais profundo. Ele aponta que o relógio circadiano pode ter começado a bater há cerca de 2,5 bilhões de anos, no exato momento em que a Terra passou por uma de suas maiores transformações: a chamada Grande Oxidação.
Essa expressão, “Grande Oxidação”(2), soa quase como um evento épico da história natural. E de fato foi. Foi quando os primeiros organismos fotossintetizantes começaram a produzir oxigênio em quantidades tão grandes que modificaram completamente a composição da atmosfera terrestre. Isso não só mudou o planeta, aniquilando uma imensidão de formas de vida que não toleravam oxigênio, como também criou uma pressão evolutiva que exigia adaptação aos novos desafios bioquímicos. Afinal, o oxigênio, apesar de vital, também gera resíduos perigosos, como as espécies reativas de oxigênio, aquelas moléculas que podem literalmente enferrujar o que encontram dentro das células.
E foi nesse contexto que algo extraordinário pode ter surgido: uma forma de ritmo interno, baseado na capacidade de lidar com esses resíduos tóxicos. Não era um relógio feito de genes que se ligavam e desligavam em sequência, como nos modelos tradicionais, era algo ainda mais primitivo: uma oscilação no estado de oxidação de proteínas chamadas peroxirredoxinas(3), que neutralizam substâncias como o peróxido de hidrogênio.
Essas oscilações acontecem até mesmo em células que não possuem núcleo. Células que não têm DNA ativo, como as hemácias humanas. Mesmo sem um centro de comando genético, elas conseguem manter esse ritmo. Isso desmonta a ideia de que o relógio biológico só existe em organismos mais complexos, ou que depende exclusivamente da maquinaria genética. Há um pulso bioquímico mais profundo, que sobrevive em praticamente todos os seres vivos, do mais simples ao mais complexo.
Sempre se imaginou que os relógios circadianos fossem construções genéticas elaboradas, como as que existem nos animais, nas plantas e em certos fungos. Mas o fato de que organismos tão distintos quanto arqueias, cianobactérias, plantas e humanos compartilham esse tipo de oscilação em suas peroxirredoxinas sugere que talvez o relógio mais antigo não tenha sido genético, mas sim químico. Um marcador de tempo construído não com letras de DNA, mas com elétrons e estados de oxidação.
Quando li que essas oscilações persistem mesmo em mutantes genéticos em que o relógio convencional está desligado, fiquei ainda mais curioso. Existe algo muito mais profundo do que imaginávamos. Mesmo quando o relógio genético silencia, o ciclo da peroxirredoxina continua a rodar. Eles parecem ser sistemas paralelos, e ainda que possam influenciar mutualmente, nenhum depende totalmente do outro para existir. Há uma espécie de redundância, um plano B evolutivo para garantir que o organismo mantenha algum senso de tempo interno.
O mais interessante disso tudo é pensar que talvez nós, como organismos, não sejamos apenas seres vivos que se adaptaram ao ambiente, mas que carregamos dentro de nós traços bioquímicos de eventos que moldaram o próprio planeta. Que ao respirar, ao metabolizar, ao existir, cada célula em nós ainda dançamos ao ritmo de um ciclo ancestral, esculpido pelo movimento do sol e pelas reações químicas que vieram com o oxigênio.
O relógio baseado em peroxirredoxinas funciona como um lembrete de que o tempo biológico não nasceu com os mamíferos, nem com os humanos. Ele pode ser tão antigo quanto a própria vida aeróbica. E quando se olha para os detalhes bioquímicos dessa proteína, nota-se que seu papel é exatamente o de “limpeza”, o de manter as células protegidas contra os danos provocados por oxigênio reativo. Sua função não é medir o tempo por si só, mas garantir que a célula esteja preparada para os ciclos de estresse oxidativo que, curiosamente, seguem o ritmo do dia e da noite.(4)
Quando o oxigênio começou a se acumular na atmosfera, a luz do sol passou a interferir ainda mais nos processos celulares. A fotossíntese, não apenas produzia energia, mas também criava resíduos perigosos. Ter um sistema que pudesse prever esses momentos e preparar o organismo para lidar com eles se tornou uma vantagem evolutiva enorme. Não é coincidência que muitos dos genes ligados ao metabolismo e à resposta imune nos animais estejam sob controle do relógio circadiano.
Fico pensando nos ciclos que ocorrem em silêncio dentro das minhas células, enquanto estou concentrado num texto, ou descansando depois do almoço. Existe um ritmo de oxidação, uma troca sutil de estados químicos, que se repete em cada célula do meu corpo, coordenado por um relógio que não depende de palavras, de consciência ou de genética tradicional. Esse ciclo ajuda o corpo a saber quando é hora de dormir, de acordar, de comer, de produzir hormônios, de regular a temperatura ou até de reagir a infecções. Ele é um maestro invisível que organiza a rotina de cada célula.
Muitas vezes, o debate sobre saúde ignora esse nível profundo de organização. Dormir mal, comer fora de hora, viver contra os ciclos naturais do dia e da noite não são apenas hábitos ruins. São rupturas com sistemas que vêm funcionando há bilhões de anos. Talvez seja por isso que doenças metabólicas, inflamatórias e até certas disfunções cognitivas estejam tão ligadas à disrupção dos ritmos circadianos.
E mesmo sabendo disso tudo, ainda é difícil adaptar a vida moderna a esse conhecimento. As telas à noite, os turnos de trabalho, os ritmos impostos pela produtividade nos afastam dos sinais naturais. E cada afastamento custa. Custa energia, custa saúde, custa coerência interna. O corpo sabe quando estamos fora de sintonia. Ele tenta corrigir, mas nem sempre consegue.
Referências:
1 - Circadian Biology: A 2.5 Billion Year Old Clock - Circadian Biology: A 2.5 Billion Year Old Clock - Um estudo recente sugere que os relógios circadianos podem ter evoluído na época do Grande Evento de Oxidação, há 2,5 bilhões de anos, para estimular a desintoxicação de espécies reativas de oxigênio. https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(12)00668-9
2 - O Grande Evento de Oxigenação (GEO), também chamado de Catástrofe do Oxigênio, Crise de Oxigênio ou Grande Oxidação, foi um período em que a atmosfera da Terra e o então raso oceano experimentaram um aumento do teor de oxigênio, aproximadamente entre 2,4 bilhões de anos e 2,1-2,0 bilhões de anos, durante o período Paleoproterozoico. https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Evento_de_Oxigena%C3%A7%C3%A3o
3 - Peroxiredoxins are conserved markers of circadian rhythms - A vida celular surgiu há cerca de 3,7 bilhões de anos. Com raras exceções, os organismos terrestres evoluíram sob ciclos diários previsíveis devido à rotação da Terra. A vantagem conferida aos organismos que antecipam tais ciclos ambientais impulsionou a evolução de ritmos circadianos endógenos que ajustam a fisiologia interna às condições externas. A filogenia molecular dos mecanismos que impulsionam esses ritmos tem sido difícil de dissecar porque os genes e proteínas do relógio identificados não são conservados em todos os domínios da vida: bactérias, arqueas e eucariotos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22622569/
4 - Circadian clocks in human red blood cells - Relógios circadianos (aproximadamente 24 horas) são fundamentalmente importantes para a fisiologia coordenada em organismos tão diversos quanto cianobactérias e humanos. Todos os modelos atuais do mecanismo circadiano molecular em células eucarióticas são baseados em ciclos de retroalimentação transcrição-tradução. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21270888/
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