De tempos em tempos, surge uma dieta que domina as conversas de academia, invade os vídeos de influencers e vira tema de discussão nas rodas de amigos preocupados com saúde. Nos últimos anos, a bola da vez tem sido a dieta cetogênica. Prometendo perda de peso rápida, melhora da glicemia e mais energia, ela conquistou uma legião de adeptos. E dá para vê isso atualmente em várias redes sociais. Mas entre as promessas e os resultados reais, existe um caminho cheio de curvas, detalhes bioquímicos e, principalmente, decisões que exigem cuidado.
A proposta central da cetogênica é simples no papel: reduzir drasticamente o consumo de carboidratos para forçar o corpo a entrar em um estado chamado cetose. Nesse estado, o organismo passa a queimar gordura como principal fonte de energia, produzindo corpos cetônicos no processo. Só que o simples, nesse caso, esconde uma complexidade enorme por trás.
Antes de tudo, vale lembrar que o corpo humano é movido a glicose, pelo menos em sua condição natural e preferida. O cérebro, é altamente dependente desse combustível. Quando a glicose disponível acaba, seja por jejum, esforço físico prolongado ou corte de carboidratos, o corpo ativa um plano B. Ele começa a quebrar gordura em busca de energia e, nesse processo, aparecem os famosos corpos cetônicos.
Mas nem toda cetose é igual. Existe a cetose fisiológica — que é controlada, natural e até desejada em algumas estratégias — e a cetose patológica, como a que ocorre em pessoas com diabetes tipo 1 descompensado, que pode ser perigosa e até fatal. Distinguir entre uma e outra é essencial, especialmente para quem tem problemas de saúde e pensa em seguir esse tipo de dieta por conta própria.
Apesar do rótulo de "moda", a cetogênica não é novidade. Ela já era usada há mais de um século como tratamento para epilepsia, antes mesmo de existirem os medicamentos modernos. O uso era voltado especialmente para crianças com convulsões refratárias. Com o tempo, à medida que surgiram medicamentos mais eficazes, a dieta perdeu força na medicina, mas ganhou novo fôlego nos anos 1970, quando passou a ser vendida como estratégia de emagrecimento. De lá para cá, foi reinventada diversas vezes, com nomes diferentes, mas sempre com o mesmo núcleo: baixo carboidrato, muita gordura e proteína sob controle.
O que mudou foi como ela passou a ser vista. Se antes era uma abordagem médica de nicho, hoje ela é assunto de redes sociais, livros best-sellers e até produtos industrializados com selo “keto friendly”. Mas nem tudo o que reluz é ouro.
Quando se analisa o efeito da dieta cetogênica na perda de peso, os estudos de curto prazo mostram resultados animadores. Em poucos meses, muitas pessoas realmente emagrecem. Parte disso é motivada pela redução de insulina, que facilita a queima de gordura. Outra parte tem relação com a supressão do apetite. Há uma teoria de que os corpos cetônicos reduziriam a fome, o que facilita a adesão inicial. Só que há também um truque escondido aí: nas primeiras semanas, boa parte da perda de peso vem da água. Isso mesmo, o corpo libera líquido com o glicogênio que estava estocado.
À medida que os meses passam, esse ritmo desacelera. Estudos com duração de 12 meses ou mais mostram que a vantagem da cetogênica em relação a outras dietas hipocalóricas pode ir diminuindo. No entanto, os benefícios da dieta cetogênica podem se manter bem mais superiores quando existe uma estratégia bem planejada. Algumas revisões recentes indicam que pessoas que conseguem manter uma boa adesão à cetogênica — mesmo com pequenas variações e flexibilizações — continuam apresentando resultados melhores não só no controle do peso, mas também na melhora do perfil lipídico, na sensibilidade à insulina e até na redução do uso de medicamentos.
A questão que eu acho mais complexa é de: a aderência. Manter-se em uma alimentação tão restrita por tanto tempo não é fácil. O convívio social complica, o cardápio enjoa e, em muitos casos, surgem deficiências de micronutrientes, como fibras, vitaminas e minerais. Embora isso possa ser algo desafiante, pode ter bastante benefício. Se houver uma orientação adequada, com planejamento alimentar que valorize a inclusão de vegetais fibrosos, gorduras de boa qualidade e fontes proteicas limpas, é possível manter um bom aporte de micronutrientes.
Mas a cetogênica não se resume à balança. Uma das áreas em que ela tem chamado atenção é no tratamento do diabete tipo 2. A lógica é simples: menos carboidrato, menos glicose no sangue. Alguns estudos mostraram redução expressiva na hemoglobina glicada e até diminuição no uso de medicamentos. Em um deles, participantes reduziram em mais de 80% o uso de medicamentos para controle glicêmico. Números impressionantes, sem dúvida. Só que, novamente, esses benefícios tendem a ser mais expressivos no curto prazo. Com o passar do tempo, o impacto diminui, possivelmente devido à dificuldade em manter a dieta.
Para diabete tipo 1, a conversa é mais delicada. Existe risco real de hipoglicemia e até de cetoacidose, um estado grave que pode levar à internação. Há relatos de pessoas que conseguiram melhorar o controle glicêmico com a cetogênica, mas isso exige acompanhamento médico próximo, ajuste cuidadoso da insulina e atenção redobrada aos sinais do corpo. Ainda assim, estudos recentes vêm mostrando que, com esse suporte adequado, a dieta cetogênica pode trazer benefícios reais. Em casos acompanhados por profissionais, observou-se redução significativa da hemoglobina glicada, menor variabilidade nos níveis de glicose, menos necessidade de insulina diária e melhora na qualidade de vida dos pacientes. O mais interessante é que esses efeitos não vieram acompanhados de aumento nos eventos adversos, como episódios de hipoglicemia grave ou cetoacidose, desde que os protocolos fossem bem seguidos. Há inclusive registros de pessoas com diabetes tipo 1 que mantiveram a dieta por anos, com resultados consistentes e estabilidade metabólica.
Outra preocupação frequente é a saúde cardiovascular. Afinal, uma dieta rica em gordura, muitas vezes saturada, pode mexer com os níveis de colesterol. A ciência continua dividida nesse ponto. Alguns estudos mostram aumento no HDL (o “colesterol bom”) e redução dos triglicerídeos, o que seria positivo. Por outro lado, há registros de elevação do LDL (o “colesterol ruim”) em certas pessoas, o que acende o alerta. Aqui, o tipo de gordura consumida faz toda a diferença. Apesar dessa visão tradicional sobre a gordura saturada, estudos mais recentes vêm apontando que o cenário pode ser bem mais complexo do que se pensava. Uma análise publicada no Journal of the American College of Cardiology revelou que a maioria dos grandes estudos e revisões não encontrou relação direta entre a ingestão de gordura saturada e o aumento do risco cardiovascular. Em vez de olhar isoladamente para esse tipo de gordura, pesquisadores vêm sugerindo que o impacto real depende muito mais do contexto alimentar todo: qual o padrão da dieta, quais alimentos acompanham essa gordura e qual a qualidade geral do que se consome. Outro ponto interessante é que nem toda gordura saturada se comporta da mesma forma no organismo. O ácido esteárico, por exemplo, presente no chocolate amargo e em algumas carnes, parece ter efeito neutro sobre o colesterol.
Outro ponto para levar em consideração é a gestação. Mulheres grávidas ou que planejam engravidar precisam ter atenção redobrada com dietas restritivas. Estudos associaram o baixo consumo de carboidratos na gravidez a um aumento do risco de defeitos no tubo neural do feto. Esse risco está ligado à deficiência de folato, nutriente essencial no desenvolvimento embrionário. Em casos assim, a restrição de carboidratos deve ser repensada e, se mantida, suplementada com orientação profissional.
Por outro lado, quando bem planejada e acompanhada de perto por profissionais de saúde, uma dieta com baixo teor de carboidratos — com até 100 gramas por dia — pode oferecer benefícios em contextos específicos, como mulheres com sobrepeso, obesidade ou diabetes gestacional. Estudos mais recentes mostraram que essa abordagem não compromete necessariamente a gestação, desde que se mantenha a suplementação adequada de nutrientes como o folato e a tiamina. Nessas pesquisas, não houve aumento significativo na produção de corpos cetônicos, nem efeitos negativos no peso ao nascer ou na duração da gestação. Inclusive, algumas participantes apresentaram melhora no controle glicêmico e menor necessidade de intervenção medicamentosa. Isso mostra que não é o corte de carboidrato por si só que representa o problema, mas como essa estratégia é conduzida.
O que se desenha é um cenário cheio de nuances. A dieta cetogênica não pode ser colocada no mesmo pacote de modismos sem fundamento. Ela tem base científica, resultados comprovados em várias situações e pode ser extremamente útil em certos contextos. Mas também não é solução mágica. Requer planejamento, acompanhamento e, principalmente, consciência dos próprios objetivos e limitações.
Muita embarcam nesse tipo de dieta empolgada por fotos de “antes e depois”, receitas mirabolantes e relatos empolgados nas redes. Só que por trás de cada transformação existe um corpo com história única, metabolismo próprio, hábitos, rotina e até traumas com comida. Uma dieta que serve para um pode ser prejudicial para outro. E isso vale especialmente para abordagens como a cetogênica.
Há também o risco de transferir para a comida uma série de angústias emocionais. Comer não é só nutrir o corpo. É afeto, cultura, memória e prazer. Restringir demais, mesmo com boas intenções, pode trazer frustração, culpa e até descontrole alimentar. Uma dieta que começa com foco em saúde pode virar um gatilho para distúrbios alimentares se não houver equilíbrio emocional e suporte adequado.
Tudo isso não quer dizer que a cetogênica deva ser evitada por completo. Mas que seu uso precisa ser mais consciente. Quem decide seguir esse caminho deveria fazê-lo com base em informação sólida, exames em dia e, sempre que possível, com o apoio de profissionais da saúde. Isso inclui nutricionistas, médicos e até psicólogos, dependendo do caso.
A chave não está em demonizar carboidratos nem idolatrar gorduras. Está em entender o próprio corpo, respeitar os sinais que ele dá e construir uma alimentação que faça sentido no dia a dia. Uma dieta precisa caber na vida, e não o contrário. Ser saudável envolve muito mais do que o que se coloca no prato. Passa por sono, movimento, gestão do estresse, conexões humanas e propósito.
O que fica claro é que a cetogênica pode ser uma ferramenta poderosa, desde que usada com sabedoria. Não é milagre, mas pode ser parte de uma solução. Não é simples, mas também não é impossível. Tudo depende do contexto, da intenção e do cuidado com que se faz as escolhas.
Se há algo que a ciência vem mostrando cada vez mais, é que não existe uma única fórmula para todos. Há caminhos diferentes, e todos precisam passar pelo crivo da realidade de quem vive com aquela decisão. A cetogênica pode ser um deles, desde que não se perca de vista o mais importante: saúde é um processo, não um destino. E nesse caminho, informação, escuta e flexibilidade são aliados indispensáveis.
Referências:
History of the ketogenic diet
Este artigo revisa o surgimento da dieta cetogênica no tratamento da epilepsia na década de 1920, seu abandono com os fármacos modernos e seu retorno recente como estratégia metabólica.
https://doi.org/10.1111/j.1528-1167.2008.01821.x
Nonequilibrium thermodynamics and energy efficiency in weight loss diets
Explora como a termodinâmica fora do equilíbrio pode explicar por que dietas cetogênicas promovem maior gasto energético e perda de gordura em comparação a outras estratégias.
https://doi.org/10.1186/1742-4682-4-27
Very-low-carbohydrate ketogenic diet vs. low-fat diet for long-term weight loss: a meta-analysis
Meta-análise mostra que dietas cetogênicas promovem maior perda de peso e melhores marcadores metabólicos em comparação às dietas com baixo teor de gordura.
https://doi.org/10.1017/S0007114513000548
Long Term Successful Weight Loss with a Combination Biphasic Ketogenic Mediterranean Diet
Mostra que alternar fases cetogênicas com períodos de dieta mediterrânea facilita a adesão e mantém os resultados a longo prazo com mais equilíbrio.
https://doi.org/10.3390/nu5125205
Long-Term Effects of Nutritional Ketosis for Type 2 Diabetes
Demonstra que a cetose nutricional melhora significativamente o controle da glicose, reduz a hemoglobina glicada e diminui o uso de medicamentos em pacientes com diabetes tipo 2.
https://doi.org/10.3389/fendo.2019.00348
Very-low-carbohydrate ketogenic diet in adults with Type 1 diabetes mellitus may be opposed by increased hypoglycaemia risk and dyslipidaemia
Aponta que, embora a cetogênica melhore o controle glicêmico no diabetes tipo 1, há necessidade de vigilância por possíveis riscos de hipoglicemia e alterações nos lipídios.
https://doi.org/10.1111/dme.13663
Ketogenic diet therapy in type 1 diabetes: Long-term case study
Relato de caso mostra manutenção da dieta cetogênica por 10 anos em paciente com diabetes tipo 1, com controle glicêmico excelente e sem eventos adversos graves.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC11234288/
Keto diets and type 1 diabetes: What the research says
Revisão aborda como a dieta cetogênica pode ser benéfica em alguns casos de diabetes tipo 1, desde que com controle rigoroso de insulina e suporte clínico constante.
https://www.ccjm.org/content/88/10/547
Saturated fat and cardiovascular disease controversy: The state of the science
Reavalia estudos recentes e conclui que a gordura saturada, por si só, não está ligada diretamente ao aumento do risco cardiovascular; o padrão alimentar total é mais relevante.
https://www.jacc.org/doi/10.1016/j.jacc.2020.05.077
Absolute and Relative Dietary Carbohydrate Intakes and Their Associations with Pregnancy Outcomes
Estudo observacional indica que dietas com menos de 100g de carboidratos podem ser seguras com suplementação adequada de folato e acompanhamento nutricional.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8538994/
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