Durante muito tempo eu associei o estado de jejum e a queima de gordura apenas à estética e à perda de peso. Acredito que a maioria de nós também já associou. Em muitos casos, existia uma fama em que jejum era para "perda de peso", um entendimento errôneo. Mas, ao mergulhar mais fundo na ciência do metabolismo, descobri que há muito mais acontecendo por trás da mobilização de ácidos graxos. Existe um mundo inteiro de comunicação bioquímica entre órgãos que trabalha silenciosamente em prol do cérebro. E tudo começa quando o corpo entra num estado que os cientistas chamam de cetose fisiológica.
O corpo tem um plano B quando a glicose some da jogada. Ele recorre à gordura. Mais especificamente, converte ácidos graxos em corpos cetônicos, que se tornam um combustível alternativo para o cérebro. Mas esses corpos cetônicos não são apenas fonte de energia. Eles funcionam como sinalizadores que informam ao organismo que é hora de ajustar diversos processos. E um dos mais fascinantes ajustes é o que ocorre dentro do cérebro.
Quem pratica jejum intermitente, exercícios intensos ou segue uma dieta cetogênica já está familiarizado com os efeitos na disposição e no foco mental. Mas o que talvez ainda passe despercebido é que essas intervenções fisiológicas provocam respostas integradas entre o fígado, o intestino, o músculo esquelético e o sistema nervoso central. Cada órgão cumpre um papel nessa rede coordenada que culmina na produção e transporte dos corpos cetônicos até o cérebro.
A maioria dos corpos cetônicos é produzida pelo fígado. Isso acontece quando os estoques de glicogênio caem e os ácidos graxos são liberados do tecido adiposo. Mas o intestino também contribui, especialmente durante o jejum, o que amplia a produção total de cetonas no sangue. Esse processo não é aleatório. Ele segue uma lógica evolutiva de sobrevivência, onde o corpo se adapta rapidamente à escassez para preservar as funções cognitivas.
Há uma engrenagem molecular por trás dessa adaptação, e um dos componentes mais importantes é o receptor nuclear chamado de Receptor Ativado por Proliferador de Peroxissoma-β / δ ou simplesmente de PPARδ. Essa molécula age como um sensor de nutrientes. Quando os ácidos graxos aumentam, PPARδ entra em cena e começa a regular genes que favorecem a oxidação de gordura e a produção de corpos cetônicos. Mas o que mais me chamou atenção é que esse mesmo receptor está presente também no cérebro.
Dentro do sistema nervoso, PPARδ participa de mudanças que afetam como os neurônios utilizam energia e se comunicam. Ele ajuda a facilitar a entrada dos corpos cetônicos no cérebro ao estimular a expressão de transportadores específicos na barreira hematoencefálica. Ou seja, o corpo prepara o caminho para que esse novo combustível tenha acesso garantido ao sistema nervoso central.
Chegando lá, os corpos cetônicos assumem o papel de protagonistas. O beta-hidroxibutirato, por exemplo, tem uma função dupla: serve de energia e atua como um modulador epigenético. Ele inibe enzimas que normalmente reprimem a expressão de certos genes, o que resulta numa ativação de rotas que favorecem a plasticidade neuronal. E é aí que entra uma das moléculas mais queridas da neurociência moderna: o Fator neurotrófico derivado do cérebro, também chamado de BDNF.
O BDNF é essencial para o crescimento e fortalecimento das conexões sinápticas. Quando o beta-hidroxibutirato aumenta no cérebro, a produção de BDNF também sobe. Isso significa mais sinapses, mais adaptação neural, mais memória, mais foco. Essa relação não é meramente teórica. Já foi observada em animais submetidos a jejum e também em pessoas que praticam exercícios físicos regulares.
Outro ponto que merece atenção é o papel do músculo esquelético nessa história. Durante o exercício físico, o músculo consome ácidos graxos e também se adapta para usar corpos cetônicos como energia. Mas ele não é apenas um consumidor. Ele se transforma num emissor de sinais. Quando estimulado por corpos cetônicos e pela própria atividade física, o músculo começa a liberar proteínas chamadas de miocinas, como a irisina e a catepsina B. Essas proteínas têm ação direta no cérebro e estimulam a produção de BDNF.
É curioso perceber como o músculo, geralmente associado apenas à força e mobilidade, atua também como uma glândula com influência sobre a mente. A musculatura ativa não serve apenas para nos manter em pé ou nos levar de um lugar para outro. Ela fala com o cérebro. Ela envia sinais que influenciam memória, aprendizagem e saúde emocional.
Durante jejum prolongado, as cetonas chegam a fornecer até dois terços da energia usada pelo cérebro. Isso me faz refletir sobre como nossos ancestrais enfrentavam períodos de escassez com estratégias metabólicas que não apenas preservavam a sobrevivência, mas também aprimoravam a capacidade de resolver problemas, caçar, fugir e adaptar-se.
Há ainda uma camada mais profunda nessa história. Os corpos cetônicos não apenas energizam. Eles mudam o jogo dentro das células. Ativam proteínas como a SIRT1, envolvida na regulação do envelhecimento e na proteção contra o estresse oxidativo. Atuam sobre processos inflamatórios, reduzem a degradação muscular e promovem um estado metabólico mais eficiente.
E não se trata apenas de cetose por meio da dieta. Exercício físico, jejum intermitente, restrição calórica... cada uma dessas estratégias provoca efeitos que convergem na produção de cetonas e no aumento do BDNF. Mas há diferenças sutis entre elas. Enquanto a dieta cetogênica eleva também os níveis de ácidos graxos poli-insaturados com ação protetora para o cérebro, o jejum ativa o intestino como órgão produtor de cetonas. Cada abordagem tem seus méritos e nuances.
Isso nos leva a questionar a lógica atual da alimentação moderna. Estamos cada vez mais distantes de períodos naturais de escassez. Comemos em excesso, com intervalos curtos entre as refeições, e raramente permitimos que o corpo acione esses mecanismos ancestrais. Vivemos em constante disponibilidade de glicose, o que pode silenciar essas rotas metabólicas vitais para a saúde cerebral.
O excesso de açúcar, a ausência de pausa alimentar e a inatividade física criam um terreno propício para a disfunção mitocondrial e o declínio cognitivo. Não é coincidência haver uma associação crescente entre dietas ocidentais e o aumento de casos de Alzheimer, Parkinson e outras doenças neurodegenerativas. O cérebro moderno está subalimentado em termos de diversidade metabólica.
Ao explorar esses caminhos alternativos, redescobrimos uma linguagem bioquímica que conecta intestino, fígado, músculo e cérebro. Percebemos que o cérebro precisa de desafios metabólicos. Precisa de momentos de escassez, de esforço físico, de mudanças na fonte de energia. Não só para manter sua função, mas também para expandir suas capacidades.
O mais interessante é que esse raciocínio não está limitado ao campo da medicina ou da ciência básica. Ele pode ser incorporado no cotidiano com escolhas simples. Caminhadas em jejum. Exercício antes do café da manhã. Uma noite sem jantar uma vez por semana. A troca de alimentos ultraprocessados por comida de verdade rica em gorduras boas.
Cada pequeno passo ativa uma cadeia de eventos que transforma o metabolismo e fortalece o cérebro. Essa perspectiva me fez enxergar o jejum e a cetose não como castigo ou privação, mas como ferramentas ancestrais que favorecem a lucidez e a vitalidade.
Ao final, o que fica é a percepção de que o corpo não age por acaso. Existe uma inteligência biológica refinada que responde ao contexto de forma adaptativa. Quando respeitamos essa lógica, os efeitos são amplos e profundamente transformadores. Não se trata apenas de emagrecimento. É uma reconfiguração interna que atravessa os tecidos, alcança o cérebro e ecoa na maneira como percebemos o mundo.
Referências:
The Ketogenic Diet and Brain Metabolism – Explica como os corpos cetônicos substituem a glicose como principal fonte de energia do cérebro durante jejum ou dieta cetogênica:
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnmol.2021.732120/full
Beta-hydroxybutyrate suppresses oxidative stress through histone deacetylase inhibition – Mostra que o BHB ativa genes ligados à proteção neuronal e plasticidade sináptica ao inibir HDACs:
https://elifesciences.org/articles/15092
PPARs and Brain Energy Metabolism – Detalha como o receptor PPARδ facilita a entrada de cetonas no cérebro por meio da regulação de transportadores específicos:
https://fluidsbarrierscns.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12987-024-00526-8
Exercise-induced release of myokines enhances brain function – Discute como o músculo libera miocinas como irisina e cathepsina B, que aumentam os níveis de BDNF no cérebro:
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39687518
Ketone body production by intestinal cells – Mostra que o intestino também pode produzir corpos cetônicos durante o jejum, contribuindo para o metabolismo cerebral:
https://news.mit.edu/2019/ketones-stem-cell-intestine-0822
SIRT1, ketones and aging regulation – Relaciona a ação dos corpos cetônicos na ativação de SIRT1, uma proteína ligada ao envelhecimento saudável e proteção mitocondrial:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9370141/
Ketone bodies as signaling metabolites – Resume os múltiplos papéis das cetonas como combustíveis e reguladores metabólicos e inflamatórios:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7533860/
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