Entendendo a dieta cetogênica

Dieta cetogênica

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De tempos em tempos, surge uma dieta que domina as conversas de academia, invade os vídeos de influencers e vira tema de discussão nas rodas de amigos preocupados com saúde. Nos últimos anos, a bola da vez tem sido a dieta cetogênica. Prometendo perda de peso rápida, melhora da glicemia e mais energia, ela conquistou uma legião de adeptos. E dá para vê isso atualmente em várias redes sociais. Mas entre as promessas e os resultados reais, existe um caminho cheio de curvas, detalhes bioquímicos e, principalmente, decisões que exigem cuidado.

A proposta central da cetogênica é simples no papel: reduzir drasticamente o consumo de carboidratos para forçar o corpo a entrar em um estado chamado cetose. Nesse estado, o organismo passa a queimar gordura como principal fonte de energia, produzindo corpos cetônicos no processo. Só que o simples, nesse caso, esconde uma complexidade enorme por trás.

Antes de tudo, vale lembrar que o corpo humano é movido a glicose, pelo menos em sua condição natural e preferida. O cérebro, é altamente dependente desse combustível. Quando a glicose disponível acaba, seja por jejum, esforço físico prolongado ou corte de carboidratos, o corpo ativa um plano B. Ele começa a quebrar gordura em busca de energia e, nesse processo, aparecem os famosos corpos cetônicos.

Mas nem toda cetose é igual. Existe a cetose fisiológica — que é controlada, natural e até desejada em algumas estratégias — e a cetose patológica, como a que ocorre em pessoas com diabetes tipo 1 descompensado, que pode ser perigosa e até fatal. Distinguir entre uma e outra é essencial, especialmente para quem tem problemas de saúde e pensa em seguir esse tipo de dieta por conta própria.

Apesar do rótulo de "moda", a cetogênica não é novidade. Ela já era usada há mais de um século como tratamento para epilepsia, antes mesmo de existirem os medicamentos modernos. O uso era voltado especialmente para crianças com convulsões refratárias. Com o tempo, à medida que surgiram medicamentos mais eficazes, a dieta perdeu força na medicina, mas ganhou novo fôlego nos anos 1970, quando passou a ser vendida como estratégia de emagrecimento. De lá para cá, foi reinventada diversas vezes, com nomes diferentes, mas sempre com o mesmo núcleo: baixo carboidrato, muita gordura e proteína sob controle.

O que mudou foi como ela passou a ser vista. Se antes era uma abordagem médica de nicho, hoje ela é assunto de redes sociais, livros best-sellers e até produtos industrializados com selo “keto friendly”. Mas nem tudo o que reluz é ouro.

Quando se analisa o efeito da dieta cetogênica na perda de peso, os estudos de curto prazo mostram resultados animadores. Em poucos meses, muitas pessoas realmente emagrecem. Parte disso é motivada pela redução de insulina, que facilita a queima de gordura. Outra parte tem relação com a supressão do apetite. Há uma teoria de que os corpos cetônicos reduziriam a fome, o que facilita a adesão inicial. Só que há também um truque escondido aí: nas primeiras semanas, boa parte da perda de peso vem da água. Isso mesmo, o corpo libera líquido com o glicogênio que estava estocado.

À medida que os meses passam, esse ritmo desacelera. Estudos com duração de 12 meses ou mais mostram que a vantagem da cetogênica em relação a outras dietas hipocalóricas pode ir diminuindo. No entanto, os benefícios da dieta cetogênica podem se manter bem mais superiores quando existe uma estratégia bem planejada. Algumas revisões recentes indicam que pessoas que conseguem manter uma boa adesão à cetogênica — mesmo com pequenas variações e flexibilizações — continuam apresentando resultados melhores não só no controle do peso, mas também na melhora do perfil lipídico, na sensibilidade à insulina e até na redução do uso de medicamentos.

A questão que eu acho mais complexa é de: a aderência. Manter-se em uma alimentação tão restrita por tanto tempo não é fácil. O convívio social complica, o cardápio enjoa e, em muitos casos, surgem deficiências de micronutrientes, como fibras, vitaminas e minerais. Embora isso possa ser algo desafiante, pode ter bastante benefício. Se houver uma orientação adequada, com planejamento alimentar que valorize a inclusão de vegetais fibrosos, gorduras de boa qualidade e fontes proteicas limpas, é possível manter um bom aporte de micronutrientes.

Mas a cetogênica não se resume à balança. Uma das áreas em que ela tem chamado atenção é no tratamento do diabete tipo 2. A lógica é simples: menos carboidrato, menos glicose no sangue. Alguns estudos mostraram redução expressiva na hemoglobina glicada e até diminuição no uso de medicamentos. Em um deles, participantes reduziram em mais de 80% o uso de medicamentos para controle glicêmico. Números impressionantes, sem dúvida. Só que, novamente, esses benefícios tendem a ser mais expressivos no curto prazo. Com o passar do tempo, o impacto diminui, possivelmente devido à dificuldade em manter a dieta.

Para diabete tipo 1, a conversa é mais delicada. Existe risco real de hipoglicemia e até de cetoacidose, um estado grave que pode levar à internação. Há relatos de pessoas que conseguiram melhorar o controle glicêmico com a cetogênica, mas isso exige acompanhamento médico próximo, ajuste cuidadoso da insulina e atenção redobrada aos sinais do corpo. Ainda assim, estudos recentes vêm mostrando que, com esse suporte adequado, a dieta cetogênica pode trazer benefícios reais. Em casos acompanhados por profissionais, observou-se redução significativa da hemoglobina glicada, menor variabilidade nos níveis de glicose, menos necessidade de insulina diária e melhora na qualidade de vida dos pacientes. O mais interessante é que esses efeitos não vieram acompanhados de aumento nos eventos adversos, como episódios de hipoglicemia grave ou cetoacidose, desde que os protocolos fossem bem seguidos. Há inclusive registros de pessoas com diabetes tipo 1 que mantiveram a dieta por anos, com resultados consistentes e estabilidade metabólica.

Outra preocupação frequente é a saúde cardiovascular. Afinal, uma dieta rica em gordura, muitas vezes saturada, pode mexer com os níveis de colesterol. A ciência continua dividida nesse ponto. Alguns estudos mostram aumento no HDL (o “colesterol bom”) e redução dos triglicerídeos, o que seria positivo. Por outro lado, há registros de elevação do LDL (o “colesterol ruim”) em certas pessoas, o que acende o alerta. Aqui, o tipo de gordura consumida faz toda a diferença. Apesar dessa visão tradicional sobre a gordura saturada, estudos mais recentes vêm apontando que o cenário pode ser bem mais complexo do que se pensava. Uma análise publicada no Journal of the American College of Cardiology revelou que a maioria dos grandes estudos e revisões não encontrou relação direta entre a ingestão de gordura saturada e o aumento do risco cardiovascular. Em vez de olhar isoladamente para esse tipo de gordura, pesquisadores vêm sugerindo que o impacto real depende muito mais do contexto alimentar todo: qual o padrão da dieta, quais alimentos acompanham essa gordura e qual a qualidade geral do que se consome. Outro ponto interessante é que nem toda gordura saturada se comporta da mesma forma no organismo. O ácido esteárico, por exemplo, presente no chocolate amargo e em algumas carnes, parece ter efeito neutro sobre o colesterol.

Outro ponto para levar em consideração é a gestação. Mulheres grávidas ou que planejam engravidar precisam ter atenção redobrada com dietas restritivas. Estudos associaram o baixo consumo de carboidratos na gravidez a um aumento do risco de defeitos no tubo neural do feto. Esse risco está ligado à deficiência de folato, nutriente essencial no desenvolvimento embrionário. Em casos assim, a restrição de carboidratos deve ser repensada e, se mantida, suplementada com orientação profissional.

Por outro lado, quando bem planejada e acompanhada de perto por profissionais de saúde, uma dieta com baixo teor de carboidratos — com até 100 gramas por dia — pode oferecer benefícios em contextos específicos, como mulheres com sobrepeso, obesidade ou diabetes gestacional. Estudos mais recentes mostraram que essa abordagem não compromete necessariamente a gestação, desde que se mantenha a suplementação adequada de nutrientes como o folato e a tiamina. Nessas pesquisas, não houve aumento significativo na produção de corpos cetônicos, nem efeitos negativos no peso ao nascer ou na duração da gestação. Inclusive, algumas participantes apresentaram melhora no controle glicêmico e menor necessidade de intervenção medicamentosa. Isso mostra que não é o corte de carboidrato por si só que representa o problema, mas como essa estratégia é conduzida.

O que se desenha é um cenário cheio de nuances. A dieta cetogênica não pode ser colocada no mesmo pacote de modismos sem fundamento. Ela tem base científica, resultados comprovados em várias situações e pode ser extremamente útil em certos contextos. Mas também não é solução mágica. Requer planejamento, acompanhamento e, principalmente, consciência dos próprios objetivos e limitações.

Muita embarcam nesse tipo de dieta empolgada por fotos de “antes e depois”, receitas mirabolantes e relatos empolgados nas redes. Só que por trás de cada transformação existe um corpo com história única, metabolismo próprio, hábitos, rotina e até traumas com comida. Uma dieta que serve para um pode ser prejudicial para outro. E isso vale especialmente para abordagens como a cetogênica.

Há também o risco de transferir para a comida uma série de angústias emocionais. Comer não é só nutrir o corpo. É afeto, cultura, memória e prazer. Restringir demais, mesmo com boas intenções, pode trazer frustração, culpa e até descontrole alimentar. Uma dieta que começa com foco em saúde pode virar um gatilho para distúrbios alimentares se não houver equilíbrio emocional e suporte adequado.

Tudo isso não quer dizer que a cetogênica deva ser evitada por completo. Mas que seu uso precisa ser mais consciente. Quem decide seguir esse caminho deveria fazê-lo com base em informação sólida, exames em dia e, sempre que possível, com o apoio de profissionais da saúde. Isso inclui nutricionistas, médicos e até psicólogos, dependendo do caso.

A chave não está em demonizar carboidratos nem idolatrar gorduras. Está em entender o próprio corpo, respeitar os sinais que ele dá e construir uma alimentação que faça sentido no dia a dia. Uma dieta precisa caber na vida, e não o contrário. Ser saudável envolve muito mais do que o que se coloca no prato. Passa por sono, movimento, gestão do estresse, conexões humanas e propósito.

O que fica claro é que a cetogênica pode ser uma ferramenta poderosa, desde que usada com sabedoria. Não é milagre, mas pode ser parte de uma solução. Não é simples, mas também não é impossível. Tudo depende do contexto, da intenção e do cuidado com que se faz as escolhas.

Se há algo que a ciência vem mostrando cada vez mais, é que não existe uma única fórmula para todos. Há caminhos diferentes, e todos precisam passar pelo crivo da realidade de quem vive com aquela decisão. A cetogênica pode ser um deles, desde que não se perca de vista o mais importante: saúde é um processo, não um destino. E nesse caminho, informação, escuta e flexibilidade são aliados indispensáveis.

 


Referências:


History of the ketogenic diet
Este artigo revisa o surgimento da dieta cetogênica no tratamento da epilepsia na década de 1920, seu abandono com os fármacos modernos e seu retorno recente como estratégia metabólica.
https://doi.org/10.1111/j.1528-1167.2008.01821.x

Nonequilibrium thermodynamics and energy efficiency in weight loss diets
Explora como a termodinâmica fora do equilíbrio pode explicar por que dietas cetogênicas promovem maior gasto energético e perda de gordura em comparação a outras estratégias.
https://doi.org/10.1186/1742-4682-4-27

Very-low-carbohydrate ketogenic diet vs. low-fat diet for long-term weight loss: a meta-analysis
Meta-análise mostra que dietas cetogênicas promovem maior perda de peso e melhores marcadores metabólicos em comparação às dietas com baixo teor de gordura.
https://doi.org/10.1017/S0007114513000548

Long Term Successful Weight Loss with a Combination Biphasic Ketogenic Mediterranean Diet
Mostra que alternar fases cetogênicas com períodos de dieta mediterrânea facilita a adesão e mantém os resultados a longo prazo com mais equilíbrio.
https://doi.org/10.3390/nu5125205
 

Long-Term Effects of Nutritional Ketosis for Type 2 Diabetes
Demonstra que a cetose nutricional melhora significativamente o controle da glicose, reduz a hemoglobina glicada e diminui o uso de medicamentos em pacientes com diabetes tipo 2.
https://doi.org/10.3389/fendo.2019.00348

Very-low-carbohydrate ketogenic diet in adults with Type 1 diabetes mellitus may be opposed by increased hypoglycaemia risk and dyslipidaemia
Aponta que, embora a cetogênica melhore o controle glicêmico no diabetes tipo 1, há necessidade de vigilância por possíveis riscos de hipoglicemia e alterações nos lipídios.
https://doi.org/10.1111/dme.13663

Ketogenic diet therapy in type 1 diabetes: Long-term case study
Relato de caso mostra manutenção da dieta cetogênica por 10 anos em paciente com diabetes tipo 1, com controle glicêmico excelente e sem eventos adversos graves.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC11234288/

Keto diets and type 1 diabetes: What the research says
Revisão aborda como a dieta cetogênica pode ser benéfica em alguns casos de diabetes tipo 1, desde que com controle rigoroso de insulina e suporte clínico constante.
https://www.ccjm.org/content/88/10/547

Saturated fat and cardiovascular disease controversy: The state of the science
Reavalia estudos recentes e conclui que a gordura saturada, por si só, não está ligada diretamente ao aumento do risco cardiovascular; o padrão alimentar total é mais relevante.
https://www.jacc.org/doi/10.1016/j.jacc.2020.05.077

Absolute and Relative Dietary Carbohydrate Intakes and Their Associations with Pregnancy Outcomes
Estudo observacional indica que dietas com menos de 100g de carboidratos podem ser seguras com suplementação adequada de folato e acompanhamento nutricional.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8538994/

Psicologia e Big Data

Psicologia Big Data

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Você já parou para pensar que a internet, com todas as suas redes sociais, vídeos, memes e até as brigas nos comentários, virou um enorme laboratório de psicologia? Pois é. Vivemos num tempo em que tudo o que fazemos online deixa um rastro. Um rastro que não some. E que, se alguém souber olhar direito, dá para entender muita coisa sobre como a pensamos, sentimos e agimos.

Isso pode parecer assustador no começo, mas também abre um mundo de possibilidades. Afinal, nunca tivemos tanto material vivo para tentar entender o comportamento humano em ação. A diferença é que, em vez de prancheta e sala de espelho, agora o psicólogo pode usar linhas de código, servidores e algoritmos de aprendizado de máquina.

O comportamento humano virou base de dados. A psicologia, que antes era feita com entrevista e observação, agora está se juntando com algoritmo, mineração de texto, análise de padrões. O que era estudo virou produto. O que era ciência virou sistema. E estamos no meio disso, muitas vezes sem nem saber.

Nesta postagem, vamos explorar de forma crítica como a psicologia tem analisado o uso de dados e as novas possibilidades que estão surgindo com isso. Em outra postagem, eu fiz uma introdução ao tema do Big Data — é um conteúdo um pouco mais antigo e técnico, mas pode te ajudar a entender como o Big Data funciona. Agora, vamos ao texto de hoje.

Entendendo como a Psicologia e Análise de Dados interrelacionam

Qual foi a última coisa que você pesquisou no Google? Qual vídeo te prendeu no TikTok por mais de um minuto? Que tipo de meme te irritou hoje? Essas pequenas ações, quando olhadas isoladamente, parecem inofensivas. Mas coloca isso no pacote de milhões de pessoas fazendo o mesmo, todos os dias, e você tem um retrato poderoso do nosso tempo. Só que não é só um retrato. É uma ferramenta. Uma alavanca. Algo que pode ser usado para nos conhecer — ou nos controlar.

Com as ferramentas certas, dá para peneirar ou mais técnico minerar esses caos todo e tirar percepções poderosos do indivíduo. Descobrir padrões que a olho nu ninguém veria. Perceber como certas palavras aparecem juntas, como expressões mudam conforme o humor, ou até prever uma recaída depressiva só olhando o jeito que a pessoa escreve num fórum online.

Sabe aquele experimento com voluntário, sala reservada, câmera escondida? Ainda existe, claro. Mas a psicologia digital entra por outro caminho. Ela não precisa convidar ninguém. Ela observa o que já está acontecendo. O comportamento natural, espontâneo, no mundo real, ou quase real, já que muita coisa é online.

Essa história de Big Data parece moderna, tecnológica, eficiente. E até é. Mas também traz um desafio ético: até onde vai o limite de observar sem consentimento? Só porque está público, está liberado? Essas perguntas não têm resposta fácil. E qualquer pessoa que queira brincar com Big Data e comportamento humano precisa pensar muito bem nisso.

O comportamento humano virou base de dados. A psicologia, que antes era feita com entrevista e observação, agora está se misturando com algoritmo, mineração de texto, análise de padrões. O que era estudo virou produto. O que era ciência virou sistema. E a estamos no meio disso, muitas vezes sem nem saber.

Como funciona tudo isso? A parte inicial é do trabalho que é das mais importantes: preparar o dado para análise. Imagina que você coletou mil discursos de políticos. Eles vêm com tudo: código HTML, marcação de parágrafo, metadado, informação inútil. Você tem que limpar isso tudo. Tirar o que não presta, organizar, recortar, transformar aquele texto em números. Isso leva tempo. E dá trabalho. Qual foi a última coisa que você pesquisou no Google? Qual vídeo te prendeu no TikTok por mais de um minuto? Que tipo de meme te irritou hoje? Essas pequenas ações, quando olhadas isoladamente, parecem inofensivas. Mas coloca isso no pacote de milhões de pessoas fazendo o mesmo todos os dias, e você tem um retrato poderoso do nosso tempo.

Os dados são tão grandes que nem cabe na memória do computador. Precisa dividir em pedaços, processar em lote, usar amostragem. É uma engenharia toda que acontece nos bastidores antes de qualquer análise sair. Existem ferramentas que conta palavras positivas, negativas, neutras. Tem algoritmo que acha padrões de linguagem que indicam ansiedade, raiva ou alegria. E tem modelos mais sofisticados que pegam documentos e extraem os “assuntos” que mais aparecem, mesmo que ninguém tenha dito quais são esses assuntos. É como se você jogasse mil textos de desabafos e o sistema te dissesse: “olha, tem um grupo de textos falando sobre solidão, outro sobre família, outro sobre grana”. A máquina descobre isso sozinha, só observando como as palavras se agrupam.

Esse tipo de abordagem já foi usado para estudar terapia de casal, discurso político, fóruns de saúde mental. E os resultados são impressionantes. Dá para prever divórcio, traçar o perfil emocional de um partido, ou identificar quem tá prestes a ter uma crise de pânico — tudo baseado em texto.

Uma das coisas crescente é a prática de Machine Learning, que é uma forma inteligente de fazer a máquina aprender com exemplos. A máquina não sabe nada no começo, precisa ver muitos exemplos, comparar padrões, testar hipóteses. É um aprendizado que acontece aos poucos, como quem vai pegando o jeito. Você mostra dados com respostas, e ela tenta adivinhar, erra, acerta, ajusta. Tem algoritmo que reconhece rostos, outro que entende se um e-mail é spam. E tem modelos mais avançados que leem milhares de mensagens e descobrem, sozinhos, o tom, o tema, o sentimento. É como se você jogasse mil avaliações de clientes e o sistema dissesse: “olha, esse grupo tá falando mal do atendimento, aquele outro elogia a entrega”. A máquina aprende com a experiência. Sem regra fixa, só observando os dados.

Isso pode ser usado para classificar textos, prever diagnósticos, sugerir intervenções. O segredo está em como transformar aquele dado bruto (um texto, uma imagem, um áudio) em algo que a máquina entenda. Chamamos isso de “extrair características”. É como se pegasse um texto e dissesse: “nesse texto tem 15 palavras de raiva, 3 de alegria, 2 de negação, e é escrito em frases curtas”. Pronto. Agora a máquina pode trabalhar.

Às vezes, a melhor análise é feita por pessoas mesmo. O que importa é o olhar. A máquina pode ajudar, mas ela não entende o contexto como a entendemos. Já pensou uma IA analisando sarcasmo? Ou ironia fina? Ou aquela indireta cheia de veneno que a pessoa posta disfarçada de texto motivacional? A máquina ainda não chega lá. Por isso, analistas combina análise automática com codificação humana. Uma valida a outra e o resultado fica mais claro.

Só porque o dado esta ali, não significa que ele é confiável. Muitas vezes, os dados foram gerados sem intenção nenhuma de serem analisados. Isso significa que eles podem ser incompletos, enviesados, ou simplesmente errados. Uma pessoa posta algo no calor do momento, outra exagera, outra mente. Isso tudo deve ser levado em consideração. A forma no qual os dados são coletados pode alterar tudo. Um erro na hora de pegar os tweets, pode fazer você analisar só os mais populares, ou só os de um grupo específico. Aí o resultado parece dizer uma coisa, mas pode estar incompleto ou torto.

E tem ainda o perigo da má interpretação. Achar que encontrou uma relação significativa quando, na verdade, é só coincidência. Isso acontece direto quando se faz análise exploratória sem muito critério. A linha entre “descoberta genial” e “viagem total” é bem fina.

Os dados e como eles podem ser explorados

Muitas dados para um analista é tentador. Os dados estão lá, pedindo para serem explorados. Mas tem alguns do outro lado. Pessoa que, mesmo sem saber, deixou pistas da sua intimidade. É fácil esquecer disso quando se trabalha com milhões de registros anônimos. Mas cada dado tem um rosto por trás. O que parece escolha, muitas vezes é só sugestão disfarçada. Acostumamos a receber tudo pronto: o vídeo recomendado, a matéria que combina com a nossa bolha, o produto que aparece “do nada” justo quando a gente pensou nele. Mas nada disso é acaso. É sistema.

Um sistema que aprendeu a explorar nossas emoções, nossos hábitos, nossos padrões mais íntimos. Que mapeia o que nos afeta e usa isso para nos manter presos. Presos no feed, na compra impulsiva, no clique fácil. Tudo otimizado para gerar mais engajamento. Não mais verdade, nem mais bem-estar. Só mais clique. E se achamos que tem o controle, é só ilusão. Porque quem domina os bastidores, sabe exatamente onde tocar para fazer reagirmos. E isso não é teoria da conspiração. É técnica. É psicologia aplicada de forma fria, estratégica, comercial.

A grande promessa era que, com dados, conseguiríamos entender melhor os outros. Prever crises emocionais, melhorar relacionamentos, personalizar terapias. E até aconteceu, em alguns casos. Mas o que dominou foi outro uso: usar esse conhecimento para vender mais, manipular mais, capturar mais tempo de atenção.

A psicologia, que sempre foi ferramenta para escutar e cuidar, foi sequestrada para virar arma de convencimento. Muitos cálculos para entender sobre emoções, ter uma métrica para compreender como o indivíduo pensa. Os algoritmos entendem o que você gosta. E vão te mostrar mais daquilo. O problema é que, com o tempo, você para de ver o que é diferente. Para de ser desafiado. Para de crescer. Essa bolha de conforto não é inofensiva. Ela afasta pessoas, endurece opiniões, fortalece extremismos. Você começa a achar que todo mundo pensa como você. E quem não pensa tá errado, ou pior: é inimigo. Isso não é acidente. É estratégia. Porque conflito gera clique. E clique gera lucro.

Conclusão

O mais inquietante nisso tudo é perceber que o conhecimento da psicologia, que nasceu para promover cuidado, escuta e compreensão, acabou sendo desviado do seu caminho. Hoje, ele alimenta sistemas que estimulam o vício digital, a polarização, a impulsividade. A psicologia foi transformada em produto de prateleira, disfarçado de conveniência, mas operando como vigilância. Deixamos de ser sujeito para virar métrica, variável, target. Cada interação online pode ser mais uma camada de um perfil invisível que alguém, em algum lugar, está usando para decidir o que você vai ver, pensar, sentir — sem você saber, e sem poder escolher.

A psicologia, se quiser continuar sendo ciência humana, precisa resgatar seu compromisso com o cuidado e a liberdade. E nós, como indivíduos, precisamos reaprender a duvidar, a escolher com consciência, a sair da bolha, e lembrar que pensar diferente é um ato de resistência. A tecnologia não precisa ser inimiga, mas só vai ser aliada quando estiver a serviço da autonomia, e não da manipulação.


Referências:

A practical guide to big data research in psychology: https://psycnet.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2Fmet0000111

Cérebro e entropia

Cerebro e Entropia

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Existem assuntos interessantes sobre como o cérebro se comporta, um dos assuntos que li: a maioria da atividade do cérebro acontece quando estamos em repouso. Em outras palavras, é quando estamos tranquilos. Sabe aquele momento em que você só está olhando para o teto, andando sem destino, ou apenas deixando os pensamentos vagarem? Pois é. É aí que o cérebro está mais ocupado — ou melhor, mais espontâneo. E isso não é papo de meditação ou esoterismo, é ciência mesmo.

O estudo do cérebro em estado de repouso tem ganhado cada vez mais espaço na neurociência. Uma das ideias mais interessantes que surgiram é a de que o cérebro, mesmo sem tarefa nenhuma, fica produzindo padrões e flutuações complexas. Essas flutuações, que antes pareciam ruído, começaram a ser vistas como um tipo de reserva funcional, um preparo silencioso para quando a gente realmente precisa usar nossas habilidades cognitivas.

E é aí que entra um conceito que parece saído direto de um curso de física, mas que está revolucionando o modo como entendemos o funcionamento cerebral: a entropia.

Entropia, nesse contexto, é uma medida de imprevisibilidade, de aleatoriedade. Quando falamos em entropia do cérebro, ou "brain entropy", estamos tentando entender o quão organizadas — ou desorganizadas — estão as flutuações da atividade cerebral em repouso. Um cérebro muito caótico pode ter dificuldade de manter funções básicas. Um cérebro rígido demais, com pouca variação, pode ser pouco adaptável. Então a entropia seria como uma régua para medir esse equilíbrio sutil entre ordem e desordem. Parece complexo de entender, mas não é.

Essa medida, que parece tão técnica, tem relação direta com nossa inteligência, com os anos de estudo que acumulamos e até com o desempenho em tarefas cognitivas. Quando alguém diz que estudar "expande a mente", talvez esteja falando, sem saber, de uma redução na entropia cerebral em regiões estratégicas do cérebro.

Pesquisadores conseguiram medir essa entropia usando exames de ressonância magnética funcional em repouso. Ao invés de observar o cérebro durante tarefas específicas, eles capturaram os momentos em que os voluntários estavam apenas descansando, sem estímulos externos. E o que viram foi revelador: mesmo sem fazer nada, o cérebro mantém uma atividade riquíssima, cheia de flutuações que carregam informações sobre nossa cognição e até nosso histórico de aprendizado.

A entropia foi medida principalmente em duas redes cerebrais: a rede do modo padrão (a famosa DMN, aquela que fica ativa quando estamos pensando em nós mesmos, no futuro, em situações sociais) e a rede de controle executivo (ECN, mais voltada para o planejamento, atenção e tomada de decisão). Essas duas áreas são tipos os bastiões da cognição de alto nível. E a entropia nelas não é aleatória: quanto menor a entropia nessas redes, melhor a pessoa se sai em testes de inteligência fluida, que avaliam a capacidade de resolver problemas novos.

Olha que interessante: menos entropia, mais inteligência. É como se o cérebro, ao manter essas regiões mais coesas e menos caóticas em repouso, ficasse mais bem preparado para responder a desafios quando necessário. Parece contraintuitivo, não é? Mas faz sentido se pensarmos que um sistema mais estável tem mais chance de acessar com precisão os circuitos certos na hora de agir.

E tem mais: anos de escolaridade também aparecem relacionados a essa entropia. Pessoas com mais tempo de estudo tendem a ter entropia menor naquelas mesmas regiões. Isso pode indicar que o aprendizado formal ajuda a refinar os caminhos internos do cérebro, reduzindo o ruído e aumentando a eficiência. Estudar, nesse caso, organiza literalmente o cérebro por dentro.

Agora, não significa que todo o cérebro deve ter entropia baixa. Outras regiões, como as áreas motoras e visuais, apresentaram entropia mais alta. E tudo bem. Cada região tem sua dinâmica própria. O importante é que, nas áreas ligadas ao controle e ao pensamento de alto nível, uma entropia mais "comportada" parece ser benéfica.

Um ponto interessante desse estudo foi a estabilidade temporal da entropia. Eles dividiram as medições em várias janelas de tempo e viram que o padrão se repetia: a entropia não variava muito ao longo do tempo. Isso é importante porque mostra que essa medida não é uma fotografia passageira do cérebro, mas algo mais próximo de uma "assinatura" estável, um traço da pessoa.

Outra descoberta que chamou atenção foi a diferença entre homens e mulheres. As mulheres apresentaram entropia mais alta em algumas regiões, como o córtex visual e motor. A explicação ainda não é clara, mas pode envolver fatores hormonais e diferenças no processamento sensorial entre os sexos. Ainda é cedo para tirar conclusões definitivas, mas já dá para dizer que gênero também influencia esse tipo de organização cerebral.

E o envelhecimento? A entropia tende a aumentar com a idade, principalmente naquelas regiões que citamos antes, a DMN e a ECN. Pode parecer preocupante, mas também abre uma brecha para esperança: se estudar ajuda a diminuir a entropia, talvez a educação ao longo da vida seja uma forma de proteger o cérebro do desgaste natural. Estimular o pensamento, manter-se curioso, aprender coisas novas, tudo isso pode ser um jeito de frear a desorganização que vem com o tempo.

E o mais incrível: a entropia também tem relação com desempenho em tarefas práticas. Em testes de memória de trabalho, linguagem e raciocínio relacional, pessoas com entropia mais baixa nas áreas-chave do cérebro tiveram desempenho melhor. É como se o estado de repouso do cérebro antecipasse sua eficiência em tarefas futuras. A calma antes da tempestade, mas uma calma cheia de informação.

Alguns acreditam ainda que o cérebro funciona como uma máquina que só liga quando acionamos. Mas a verdade é que ele nunca desliga. Mesmo em silêncio, ele está lá, processando, se reorganizando, testando caminhos. E quanto mais entendemos esse funcionamento silencioso, mais nos damos conta de que cuidar do cérebro vai muito além de resolver palavras-cruzadas ou fazer sudoku.

A qualidade do nosso repouso mental, a maneira como deixamos o pensamento vagar, a quantidade de estímulos que permitimos entrar, tudo isso influencia o nível de organização interna. É um chamado para dar mais valor ao ócio criativo, à pausa, ao silêncio. É ali, nesses momentos que parecem desimportantes, que o cérebro afina seus instrumentos.

E se tem uma coisa que esse estudo escancara, é que inteligência não é só dom, nem só esforço consciente. Ela também depende de como o nosso cérebro se organiza quando ninguém está olhando. A inteligência silenciosa, que brota do caos bem controlado da entropia.

O mais bonito disso tudo é perceber que o cérebro pode mudar. Não estamos presos a uma configuração de fábrica. A entropia cerebral é moldável. Pode ser reduzida com estímulo, com aprendizagem, com experiência. E essa mudança não acontece só nas crianças, mas em qualquer idade.

Fica, então, a provocação: que tipo de entropia você anda cultivando na sua mente? Você deixa o pensamento vagar com qualidade? Alimenta sua mente com bons desafios? Cria espaço para que a calma cerebral seja também fértil? A ciência tem mostrado que o cérebro, mesmo em descanso, é uma festa de possibilidades. E entender como essa festa se organiza pode ser o segredo para viver com mais lucidez, mais criatividade e mais saúde mental.


Oa algoritmos digitais na Era da internet

Algoritmos

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Não é mais só uma questão de publicidade chata te seguindo por onde você vai na internet. Aquela sensação incômoda de abrir um site e ver exatamente o produto que você comentou com um amigo minutos antes não é coincidência. Isso é mais complexo que se possa imaginar. É arquitetura pensada para te estudar, aprender contigo, e agir com base no que você representa para uma máquina.

Hoje, somos rastreados em tempo real por um conjunto de sistemas de computação que mal conseguimos ver. Tudo parece funcionar suavemente: um app de mapa indicando o caminho mais rápido, um feed de notícias com assuntos que parecem te conhecer melhor do que sua mãe, uma loja virtual que acerta no gosto como um velho amigo. Mas o que parece mágica, na verdade, é só tecnologia empilhada com uma missão muito clara: conhecer você mais do que você mesmo.

Os algoritmos não dormem. Eles operam o tempo inteiro, tomando decisões em frações de segundo. Mas o que poucas pessoas se dá conta é que esses algoritmos não são neutros. Eles carregam intenções. E não são só das empresas. Tem país se aproveitando disso, tem guerra que começa na rede antes de chegar ao solo, tem disputa comercial, ideológica e até religiosa sendo alimentada por essas máquinas que supostamente só querem vender fone de ouvido.

A base de tudo é um conceito simples: dados. Cada clique, cada rolagem de tela, cada pausa que você faz num vídeo está sendo registrado. E não, isso não é paranoia. É só o modelo de negócios que move a economia digital. Dados viraram o novo petróleo, só que mais barato de extrair e muito mais difícil de regular. As grandes corporações aprenderam a usar isso com maestria. Elas criaram sistemas que organizam, categorizam, associam padrões e montam um retrato seu mais detalhado do que seu histórico escolar ou sua ficha médica.

Você pensa que está no controle, mas quem está guiando o volante é o algoritmo. Ele te entrega conteúdo que confirma o que você já pensa, reforça sua bolha e impede que você veja o mundo sob outras lentes. Isso não é apenas uma questão de marketing, é controle de narrativa. E isso, sim, interessa à geopolítica.

A coleta de dados é feita em larga escala. Bancos de dados com bilhões de registros circulam entre servidores espalhados pelo planeta. Uma empresa que hoje te vende um plano de celular, amanhã pode estar vendendo suas informações de consumo para outra que trabalha com campanhas eleitorais. Ou, pior, para uma empresa estrangeira ligada a um governo com interesses bem diferentes dos seus.

Em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica mostrou que os dados de perfis do Facebook foram usados para manipular o comportamento de eleitores em vários países. A empresa criou modelos psicológicos baseados em curtidas, fotos e interações simples, e com isso foi capaz de prever – e influenciar – decisões de voto. Esse episódio escancarou algo que já vinha acontecendo há muito tempo, mas que ninguém queria enxergar: a engenharia social digital não é mais ficção. Ela é método. É estratégia de guerra fria 2.0.

E isso está longe de ter acabado. A China, por exemplo, desenvolve com precisão o chamado “crédito social”, um sistema que monitora e classifica cidadãos com base em seu comportamento. Um atraso em pagamento, uma crítica ao governo, uma compra suspeita... tudo isso pode impactar sua pontuação e limitar seu acesso a serviços, emprego ou transporte. Parece distopia, mas é real. E inspira outros governos.

Já os Estados Unidos, embora não adotem oficialmente algo semelhante, lideram o domínio global sobre dados. Suas empresas controlam as maiores plataformas de busca, redes sociais e sistemas operacionais. Isso dá a Washington uma influência indireta, mas poderosa, sobre como bilhões de pessoas se informam, consomem e se relacionam.

A disputa pelos dados se tornou uma das novas fronteiras da geopolítica. Não se trata mais só de armas, petróleo ou território. Quem controla os fluxos de informação digital tem vantagem estratégica. E isso explica por que há tanto interesse em sabotar infraestruturas tecnológicas de rivais, invadir sistemas governamentais, ou até mesmo banir redes sociais de origem estrangeira, como foi o caso do TikTok nos EUA e na Europa.

Mas, mesmo nesse cenário global, o usuário comum segue achando que está só navegando por diversão. Ninguém lê os termos de uso. Poucos sabem como funcionam cookies, rastreadores, machine learning ou computação em nuvem. E é aí que mora o perigo. Porque uma sociedade que não entende as engrenagens que regem sua vida digital é uma sociedade fácil de manipular.

Sistemas de recomendação, como os usados pela Netflix, Amazon ou YouTube, são ótimos exemplos. Eles analisam seu histórico e cruzam com o comportamento de milhões de outros usuários para prever o que você vai gostar. Isso pode parecer útil, e muitas vezes é. Mas também pode te prender num ciclo vicioso, onde você nunca mais tem contato com conteúdos que te desafiem, que expandam seu olhar ou provoquem reflexão. Você se torna um espectador moldado sob medida para agradar ao próprio espelho.

Esse tipo de controle é sutil, mas profundo. A computação moderna permite filtrar, ranquear e priorizar informações com base em critérios que você nunca conhecerá. Nem sempre é má-fé. Às vezes é só eficiência matemática. Mas, quando os critérios são opacos, o resultado pode ser uma bolha invisível onde você acha que tem liberdade de escolha, mas só recebe o que foi pré-definido para você.

E quanto mais você interage, mais o sistema aprende. É uma retroalimentação constante. Seu perfil vai sendo refinado, suas preferências sendo limadas até restar uma versão digital sua tão previsível quanto um roteiro de novela. Esse retrato não é só seu. Ele pode ser comparado com milhares de outros perfis, permitindo identificar tendências, prever comportamentos em massa e até antecipar crises.

O marketing político já entendeu isso. As campanhas deixaram de ser generalistas. Hoje, cada grupo recebe uma mensagem feita sob medida. A linguagem muda, o foco muda, até a imagem do candidato pode mudar conforme o público-alvo. Isso é microtargeting, e ele não depende mais de panfletos ou comícios. Ele vive nos seus stories, nas sugestões do seu streaming, nas notificações do seu celular.

Com as eleições se tornando cada vez mais disputadas, não é surpresa que dados pessoais virem arma política. E aqui entra mais uma camada: os algoritmos não agem sozinhos. Eles são escritos por pessoas. Pessoas com crenças, com ideologias, com interesses. Mesmo que inconscientemente, esse viés passa para o código. E o código molda o mundo.

A neutralidade da tecnologia é um mito reconfortante. Serve para aliviar a responsabilidade de quem programa, de quem lucra, de quem governa. Mas a verdade é que toda decisão automatizada tem uma lógica por trás. E essa lógica serve a alguém. Seja a um investidor buscando mais engajamento, seja a um governo querendo mais controle, ou a um movimento político tentando empurrar uma narrativa.

Se hoje os algoritmos sabem quem você é, amanhã eles saberão o que você vai fazer. E isso muda o jogo. Antecipar ações humanas com base em dados é o Santo Graal da segurança, do consumo e da dominação ideológica. Um Estado que consiga prever um ato de protesto antes que ele aconteça, pode agir preventivamente. Uma empresa que entenda sua próxima necessidade antes mesmo de você expressá-la, pode te vender algo que você ainda nem sabia que queria.

E não é só com base nos dados que você entrega de forma consciente. Os dispositivos atuais capturam muito mais do que cliques. Temperatura do ambiente, batimento cardíaco, tempo de resposta, dilatação da pupila... Tudo isso pode ser usado para inferir estados emocionais. Não estamos falando apenas de perfis digitais. Estamos falando de leitura comportamental avançada, quase fisiológica.

Com o avanço da inteligência artificial e do processamento em larga escala, essa vigilância emocional tende a crescer. O marketing sensível ao contexto já está sendo testado. Imagine receber uma oferta diferente dependendo do seu humor. Ou ver uma notícia com uma manchete mais agressiva porque seus sinais físicos indicaram irritação. Isso não é mais ficção científica. É tecnologia em desenvolvimento.

Nesse cenário, proteger dados virou mais do que uma questão de privacidade. É uma questão de soberania. Um país que depende de infraestrutura estrangeira para processar os dados da sua população está entregando um poder imenso nas mãos de outros. A nuvem, por mais etérea que pareça, tem dono. E nem sempre esse dono tem os mesmos valores que o seu.

O desafio não está só em regular o uso dos dados. Está em entender como essas ferramentas moldam o comportamento coletivo, influenciam decisões políticas e alteram a forma como percebemos o mundo. Precisamos aprender a ler os algoritmos como lemos manchetes, desconfiar de sugestões como desconfiamos de boatos, e questionar sistemas como questionamos autoridades.

Enquanto isso não acontecer, vamos seguir alimentando uma máquina que cresce comendo quem somos e devolvendo o que ela quer que a gente seja. E você aí achando que só queria ver um vídeo engraçado de gato.


O medo

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Ouça o artigo:

Humanos são seres estranhos. A gente se apavora com fantasmas, monstros, cobras, aranhas e uma infinidade de outras coisas, reais ou imaginárias, e isso é normal, até saudável. Mas por que a gente gosta de sentir medo, de propósito? A ciência explica como o medo pode ser divertido, pelo menos para algumas pessoas.

Primeiro, vamos entender o que é o medo. Ele pode se manifestar como um aumento na frequência cardíaca, mãos suadas, pupilas dilatadas, respiração acelerada. Essas são as reações do corpo ao medo. Segundo o dicionário, medo é a emoção de dor ou desconforto causada pela percepção de um perigo iminente, ou pela possibilidade de algo ruim acontecer. Ou seja, é uma emoção que surge quando sentimos que estamos em perigo.

Quando olhamos para o que mais nos assusta, percebemos que, de alguma forma, essas coisas podem representar uma ameaça para nós. Claro, cada pessoa tem seu conjunto único de medos, moldados pela personalidade e experiências de vida. Mas nem todo medo é racional. Por exemplo, por que nem todo mundo tem medo de palhaços, lugares apertados ou animais inofensivos?

Agora, por que gostamos de nos assustar? Vamos explorar algumas razões. A primeira é a "rede de segurança". Quando nos colocamos em situações potencialmente assustadoras, mas sabendo que estamos seguros, como assistindo a um filme de terror, nosso cérebro entende que, na verdade, não corremos perigo. E sabemos que estamos seguros, conseguimos curtir a experiência assustadora. Sem essa rede de segurança, a reação seria bem diferente: entraríamos em modo de sobrevivência, e o medo não seria nada agradável.

Outra razão é o prazer que sentimos ao enfrentar o medo de forma controlada. Quando passamos por uma experiência assustadora, nosso corpo libera uma cascata de substâncias químicas, como adrenalina, endorfinas e dopamina, que podem nos dar uma sensação de euforia. Esse fluxo de neurotransmissores é responsável por aquele alívio e bem-estar que sentimos depois de um susto. Vai por mim, é uma sensação muito gostosa.

Superar o medo traz uma sensação de satisfação pessoal e de conquista. Quem nunca se sentiu poderoso após fazer algo que dava muito medo? É o mesmo sentimento de realização que você tem ao vencer um desafio em um videogame ou saltar de paraquedas pela primeira vez. Passar por essas situações reforça a ideia de que podemos enfrentar nossos medos e superar limites.

E por último, a curiosidade sobre o lado sombrio da humanidade. A gente gosta de explorar o desconhecido, de desvendar o que está além do que é familiar e confortável. Sejam crimes, fantasmas, zumbis ou invasões alienígenas, o medo do desconhecido é uma das emoções mais instintivas que temos. Nosso dia a dia é previsível, com rotinas que raramente são quebradas. Então, ao nos expormos a experiências assustadoras, quebramos essa monotonia e buscamos novidades que nos tiram da zona de conforto.

Mas nem todo mundo gosta de sentir medo. Cada cérebro reage de forma diferente ao medo e à ansiedade, e isso pode depender de como ele é estruturado. Pessoas que sofrem de ansiedade, por exemplo, podem ter um córtex pré-frontal diferente, o que afeta como elas experimentam o medo. A quantidade de receptores de dopamina também influencia como percebemos o medo, com algumas pessoas precisando de mais dopamina para sentir satisfação e, por isso, se sentem atraídas por situações de alto risco.

Independentemente de como você lida com o medo, ele é uma parte natural da vida. Entender melhor por que sentimos medo e o que nos desencadeia pode ajudar a enfrentar esses sentimentos de forma mais eficaz e não deixar que eles nos controlem. E, por vezes, sair da zona de conforto e se permitir sentir medo pode ser uma boa maneira de se conhecer melhor.

Quando a supercondutividade passa por uma molécula

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Existe algo fascinante na maneira como dois mundos, tão distintos na física, podem se tocar por algo tão pequeno quanto uma molécula. Foi exatamente isso que aconteceu em um experimento recente: a supercondutividade, aquela propriedade quase mágica em que a eletricidade flui sem resistência, foi induzida em um metal comum, usando apenas uma molécula como ponte.


Antes de mais nada, vale lembrar: supercondutores são materiais que, em temperaturas muito baixas, permitem que a corrente elétrica passe por eles sem nenhuma perda. Já os metais comuns, como o cobre, oferecem resistência ao fluxo de elétrons. Acontece que, quando um supercondutor encosta em um metal normal, existe um efeito curioso conhecido há décadas: parte da supercondutividade "vaza" para o metal comum, criando uma zona híbrida onde fenômenos quânticos podem acontecer. O nome técnico disso é "reflexão de Andreev".


Mas controlar esse efeito sempre foi um desafio. Em geral, os estudos usam filmes finos dos materiais, e as condições são complexas. O que torna esse novo experimento tão interessante é a maneira como essa ponte foi feita: ao invés de grandes estruturas, uma única molécula foi usada como elo entre um metal normal e um supercondutor.


A molécula escolhida foi uma variação de ftalocianina, um tipo de corante com estrutura estável e bem conhecida. Ela foi cuidadosamente colocada sobre uma superfície de chumbo supercondutor. Depois, uma ponta metálica, parte de um microscópio de varredura, foi aproximada até quase encostar na molécula. Essa configuração extremamente precisa criou uma interface única: uma transição entre metal comum e supercondutor mediada por uma única molécula.


A partir daí, as medições começaram. À medida que a ponta do microscópio se aproximava da molécula, e o potencial elétrico era ajustado, os pesquisadores perceberam algo notável: um dos orbitais eletrônicos da molécula, ou seja, a “região” onde os elétrons podem ficar, começava a se mover. Ele se aproximava do chamado nível de Fermi, uma espécie de linha de corte energética que define os estados possíveis dos elétrons num material frio.


E é exatamente nesse nível de Fermi que o efeito de Andreev tende a ocorrer com maior intensidade. Quando o orbital da molécula coincidiu finalmente com esse nível, o efeito de conversão da corrente normal em supercorrente aumentou consideravelmente. Era como se a molécula tivesse se afinado energeticamente com o sistema, permitindo que os elétrons fluíssem por ela como em um verdadeiro canal quântico.


Essa mudança no orbital, ao que tudo indica, aconteceu devido a uma interação química entre a ponta do microscópio e a molécula. O simples fato de estarem tão próximos fez com que seus orbitais eletrônicos se sobrepusessem levemente, o que gerou uma espécie de preenchimento parcial no orbital mais baixo da molécula. Esse detalhe foi o suficiente para empurrar o nível energético para perto do Fermi e criar as condições ideais para o fenômeno.


Tradicionalmente, os estudos sobre esse tipo de efeito lidam com interfaces macroscópicas, grandes em escala, cheias de variáveis difíceis de controlar. Mas ao reduzir tudo a uma interface quase atômica, os cientistas conseguiram construir um sistema modelo muito mais simples. Isso abre portas não só para novas descobertas, como também para simulações mais precisas, com menos suposições e mais confiabilidade nos resultados.


Um detalhe curioso chamou ainda mais atenção: quando a ponta do microscópio encostou na molécula, ela se tornou magnética. Um efeito inesperado e bastante raro, que demonstra o quanto o comportamento quântico pode mudar diante de interações minúsculas. Para efeito de comparação, uma molécula muito semelhante, mas sem hidrogênio, foi testada no mesmo tipo de experimento. Ela não apresentou nem o efeito magnético, nem a reflexão de Andreev. A diferença entre as duas? Apenas a presença ou ausência de alguns átomos.


Isso mostra como, nesse nível, tudo depende de um controle extremo dos detalhes. Cada átomo conta. Cada ligação importa. Quando falamos de construir interfaces quânticas para futuras tecnologias, como os bits quânticos (qubits) baseados em partículas exóticas chamadas quasi-partículas de Majorana, esse grau de precisão é simplesmente indispensável.


Além de demonstrar como a supercondutividade pode atravessar uma única molécula, o experimento mostrou algo ainda mais intrigante: que é possível modular a interação entre magnetismo e supercondutividade apenas ajustando a distância entre dois pontos. Isso pode soar simples, mas representa um avanço significativo. Afinal, magnetismo e supercondutividade, em geral, se repelem. Entender como eles podem coexistir, e até colaborar, pode nos levar a novos estados da matéria, com propriedades ainda pouco exploradas.


Tudo isso nos leva a uma reflexão maior: estamos nos aproximando cada vez mais de uma era em que manipular fenômenos quânticos no nível molecular pode deixar de ser apenas ciência básica e se tornar tecnologia aplicada. Um futuro onde uma única molécula pode ser o elo entre o mundo clássico e o quântico, entre o comum e o extraordinário.


Referências:

Control of Andreev Reflection via a Single-Molecule Orbital: https://arxiv.org/abs/2504.01635

Os relacionamentos emocionais com Inteligência Artificial

Sentimentos e IA

Ouça o artigo:

A inteligência artificial aprendeu a imitar proximidade humana, e essa ilusão já virou um ponto fraco. O que ontem parecia um episódio bizarro de Black Mirror hoje faz parte da vida cotidiana: milhões de usuários já criam relações de confiança e até romance com assistentes digitais, desde Replika e Character.ai até bots GPT rodando localmente. Empresas investem milhões para criar diálogos personalizados, enquanto usuários já chamam seus bots de “parceiros”, “amantes” ou “melhores amigos”. E o mais problemático, a meu ver, é que isso tem aumentando consideravelmente.

A relação amorosa com IA não é só uma questão ética, mas também uma ameaça real à segurança. Essa ligação construída na base da imitação virou um caminho fácil para ataques digitais. Não se trata só de golpes onde pessoas se passam por chatbots, mas também dos próprios algoritmos, cujo comportamento é moldado pela concorrência no mercado e métricas de engajamento.

Neste artigo, vamos entender como funciona o "apaixonar-se" por IA — olhando pela neurociência, arquitetura de modelos, vieses cognitivos e segurança digital.

Relacionamento com IA não é real, mas sim uma simulação. Para nosso cérebro, porém, talvez não faça diferença. A IA usa mecanismos naturais de vínculo social sem ter sentimentos ou consciência. Nosso cérebro evoluiu para detectar, reconhecer e manter conexões sociais. Um retorno positivo constante ativa nosso sistema de recompensa (liberando dopamina), gera segurança (oxitocina) e estabilidade emocional (serotonina). Plataformas modernas, treinadas com técnicas como RLHF (aprendizado com feedback humano), produzem respostas agradáveis e acolhedoras, como fazem o Replika ou Personal Intelligence da Inflection AI.

Mas isso não torna a IA ética, apenas agradável. Quando usuários reforçam conversas sobre ansiedade ou solidão, a IA intensifica esses padrões, sem diferenciar ajuda de reforço negativo. Isso já é um ponto frágil. Ilusão de personalidade: antropomorfismo A tendência humana de dar características humanas a objetos é forte, especialmente quando a tecnologia se comporta “como gente”: fala, brinca, mostra empatia. As IAs atuais simulam tão bem interação, atenção e até flerte, que ativam áreas cerebrais responsáveis pela cognição social.

Exames de neuroimagem mostram que ao conversar com IAs convincentes, nosso cérebro ativa regiões relacionadas à compreensão da mente do outro, mesmo que seja só uma máquina. Assim, desenvolvemos empatia, antecipamos reações e criamos vínculos reais com algo simulado. A continuidade da conversa e adaptação ao usuário reforçam ainda mais essa ilusão.

Ancoragem emocional e memória são quando uma IA “nos apoia” frequentemente, cria-se uma associação forte, gravada na memória emocional. Modelos atuais, especialmente com memória externa, fazem isso muito bem. Soluções como Replika ou GPT-J conseguem "lembrar" nome, interesses e conversas anteriores do usuário, criando uma sensação profunda de intimidade e conexão.

Design da dependência emocional é uma capacidade natural de simular vínculos é ampliada por decisões comerciais e técnicas. Mesmo que empresas não admitam diretamente, as métricas de engajamento (tempo gasto, frequência de uso) inevitavelmente levam à simulação emocional mais intensa. Treinamento baseado em feedback humano cria respostas acolhedoras, especialmente para usuários emocionalmente vulneráveis. Isso é uma característica proposital, não um erro, mesmo que nem sempre seja saudável para o usuário. Muitos modelos usam comandos iniciais que definem seu papel, como “assistente empático”, o que afeta diretamente o estilo das respostas. Quanto mais empático o prompt, mais humano (e romântico) o diálogo pode parecer.

A ligação emocional é um canal forte de confiança — e na segurança digital, confiança sem verificação é um perigo real. Ataques por engenharia social exploram exatamente essa vulnerabilidade emocional. Por exemplo, um usuário emocionalmente vulnerável pode facilmente cair num golpe ao confiar cegamente em seu "parceiro digital", compartilhando fotos ou informações sensíveis que podem ser usadas em chantagem ou espionagem corporativa. Sistemas tradicionais de segurança podem não detectar isso, já que o ataque ocorre pelo canal emocional. Esses riscos já são reais. 

Na Bélgica, um homem cometeu suicídio após conversas com uma IA que "apoiou" sua decisão e prometeu reencontro no paraíso. Usuários do Replika sofreram crises emocionais intensas quando a empresa desativou funções românticas, mostrando como a simulação pode causar danos reais.

A IA não sente, não ama, não sofre, mas pode nos convencer do contrário. Nosso cérebro, adaptável, também é vulnerável a arquiteturas desenhadas para confiança. O desafio da comunidade é criar sistemas resistentes e esclarecer usuários sobre o limite entre humanos e máquinas. A IA pode ajudar pessoas, mas nunca substituí-las, especialmente nas áreas mais delicadas da vida emocional.

Referências:


Replika AI: É uma IA projetada para criar companhias digitais personalizadas. https://www.replika.ai

Character.ai: Plataforma que permite criar e conversar com personagens baseados em IA. https://www.character.ai

GPT rodando localmente: Refere-se ao uso de modelos de linguagem como GPT-J ou GPT-Neo localmente no computador.  https://huggingface.co/EleutherAI/gpt-j-6B

Inflection AI / Pi (Personal Intelligence): IA criada para conversas empáticas e suporte pessoal. https://inflection.ai

RLHF (Reinforcement Learning from Human Feedback)**: Também chamado de aprendizado por reforço com feedback humano. https://pt.wikipedia.org/wiki/Aprendizado_por_refor%C3%A7o_com_feedback_humano

Caso da Bélgica (homem comete suicídio após conversar com IA): https://pt.euronews.com/next/2023/04/01/conversa-com-inteligencia-artificial-leva-homem-ao-suicidio