
Quando mergulho no passado distanciado de milhões de anos e reflito sobre o que de fato nos faz humanos, percebo que não foi apenas a evolução do corpo, mas uma espécie de processo contínuo de desenvolvimento do corpo e cérebro relacionado a cognição. Em cada lasca de pedra lascada por mãos ancestrais, em cada artesanato rudimentar, vejo não somente ferramentas, mas pistas de como nosso jeito de pensar foi se desdobrando, ganhando camadas, abrindo caminhos que nos levariam a imaginar coisas que jamais existiram.
Logo no início dessa jornada, nosso cérebro era moldada pelos desafios de simplesmente manipular objetos. Antes de sermos quais somos hoje, primatas já usavam as mãos para abrir nozes, sustentar gravetos e brincar com pedrinhas. Foi a partir desse manuseio rotineiro que surgiram os primeiros lampejos de “técnica”: não bastava apenas golpear, era preciso escolher onde golpear, calcular ângulos e até prever qual lasca poderia surgir. Com o tempo, essas decisões simples se tornaram sistemáticas, dando origem a lâminas, pontas e raspadores. Cada nova lasca foi um pequeno ensaio do que viria a se tornar planejamento e organização hierárquica de tarefas.
Percebo que não houve um grande salto de inteligência num piscar de olhos, mas sim um acúmulo gradual de competências técnicas que se apoiavam umas nas outras. Aquela rede primitiva de neurônios voltada ao manuseio de objetos ganhou força e se especializou, adaptando-se para fazer as pontas mais afiadas, as bordas mais uniformes. Ao longo de um milhão e meio de anos, as tantas gerações de hominídeos, cada uma carregando em seu DNA e em seu corpo a herança de práticas de seus antecessores, impulsionaram o refinamento dessas habilidades. Não foi um “clique”, foi um processo passo a passo, camada sobre camada de tentativas, erros e acertos.
Essa evolução técnica, por sua vez, se entrelaçou de modo profundo com a nossa capacidade de perceber o espaço de forma cada vez mais complexa. No começo, bastava diferenciar dentro e fora, cima e baixo, proximidade e afastamento, sistemas que muitos animais também dominam. Mas nós fomos além e começamos a visualizar o mundo como um grande tabuleiro em três dimensões, capaz de ser reinterpretado sob ângulos diversos. Foi nesse ponto que nasceu o que hoje chamamos de percepção alocêntrica, aquela que nos permite criar mapas mentais de territórios, planejar rotas alternativas e até imaginar lugares que nunca vimos.
Lembro-me de pensar em como nossa vida cotidiana depende desse tipo de raciocínio, quando pego uma bússola ou uso o GPS, não estou fazendo nada mais do que aproveitar habilidades que nasceram quando alguém, há centenas de milhares de anos, percebeu que podia lascar uma pedra para se defender e, em seguida, olhar ao redor e dizer “por ali deve haver água”. Aos poucos, essas competências espaciais ampliaram nosso alcance, permitindo migrações pelo planeta, descobertas de novos habitats e, por fim, trilhas invisíveis que se tornaram estradas e ferrovias.
Mas cognitivamente ainda havia um campo enorme a explorar: aquele que envolve como entendemos o outro. Ao observar nossos iguais, chimpanzés e bonobos já mostram um entendimento rudimentar de intenções alheias, mas o que desenvolvemos foi algo mais profundo. Começamos a antecipar desejos, entender crenças, até falsas crenças e nos comunicar não apenas por gestos, mas por símbolos.
Quando reflito sobre isso, sinto um arrepio ao imaginar que, muito antes de haver escrita, já existia em nossas cabeças uma hierarquia de intenções, eu sei o que tu sabes, eu sei que tu sabes que eu sei, e por aí vai. Essa “teoria da mente” foi crescendo em camadas, primeiro, sabíamos que os outros tinham objetivos, logo em seguida, aprendemos a ensinar; mais adiante, fomos capazes de usar sinais que representavam ideias distantes no tempo e no espaço.
A engrenagem social, a necessidade de manipular alianças, trocar favores e transmitir saberes, pressionou nossa seleção natural para ampliar essas competências. Quando nossos antepassados se reuniam em bandos, não bastava acertar um machado de pedra, era preciso coordenar a caçada, repartir o alimento e ensinar o passo a passo da fabricação da ferramenta para o aprendiz. Esse ciclo de ensinar-aprender-tecer relações impulsionou uma ampliação constante de como entendíamos a mente do outro.
Aquele momento em que alguém, já dominando a fabricação de pontas de flecha, percebeu que era melhor deixar várias armadilhas armadas em série, vigiá-las de longe, voltar periodicamente para checar e, ao mesmo tempo, organizar a partilha da caça. Isso exigia segurar na mente todo esse processo, ignorar distrações do ambiente, manter registro do que já havia sido feito e antecipar o que seguiria. E não se tratava de um talento de poucas pessoas: evidentemente, cânceres como a construção de grandes armadilhas, a confecção de redes ou mesmo a adoção dos primeiros sinais gravados em ossos, mostraram que estávamos criando extensões culturais para nossa memória.
Esses registros externos eram uma revolução na vida dos primeiros seres. Ao riscar três sulcos num bastão de osso, alguém libertava a própria memória de ter que contar cada item internamente. Uma sequência que seria difícil de reter em pensamento passou a existir ali, gravada. Foi o embrião de sistemas de numeração, calendários e, por fim, da matemática.
Ao juntar tudo isso, técnica apurada, percepção espacial refinada, teoria da mente complexa e funções executivas robustas, amplificadas por suportes culturais, construímos o que chamamos de “cognição humana”. E então, sem grandes saltos repentinos, sem pontos de ruptura espantosos, cruzamos fronteiras que jamais teriam sido possíveis apenas com instintos. Esse processo todo foi muito mais do que o crescimento de voluma cerebral. Foi, sobretudo, uma coevolução: nossos cérebros se moldaram pelas ferramentas que fabricamos, pelos grupos que formamos, pelos símbolos que inventamos. Ferramentas e cultura não foram meros instrumentos, mas verdadeiros parceiros nessa história. É um lembrete de que pensar não é apenas um ato interno, mas uma experiência que ganha forma fora de nós, nas pedras, nas marcas, nos traços, numa linha que, há 3,3 milhões de anos, começou com a primeira lasca não intencional e que hoje se desdobra em infinitas possibilidades.
Referências:
Primate cognition – Este livro apresenta uma análise aprofundada das capacidades cognitivas de primatas não humanos, explorando seus processos de percepção, memória e resolução de problemas por meio de experimentos controlados que revelam semelhanças e diferenças com a cognição humana. https://global.oup.com/academic/product/primate-cognition-9780195106244?cc=br&lang=en&
Tool use in animals: cognition and ecology – Coletânea de estudos que investiga o uso de ferramentas em diversas espécies animais, examinando como fatores ambientais e ecológicos influenciam a capacidade de manipular objetos e solucionar desafios por meio de inovações comportamentais. https://www.cambridge.org/core/books/tool-use-in-animals/92A8F1B3D5631E6D59985126BDA96EED
“An ape’s view of the Oldowan” revisited – Artigo que reexamina a fabricação de ferramentas líticas pelos primeiros hominídeos, comparando sua técnica com a de grandes símios modernos para compreender o grau de intencionalidade, habilidades motoras e planejamento envolvidos. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/evan.20323
A comparative study of the stone tool-making skills of Pan, Australopithecus, and Homo sapiens – Capítulo que compara a destreza na produção de lascas de pedra entre chimpanzés, australopitecos e humanos modernos, demonstrando como o refinamento das estratégias de lascamento evoluiu ao longo de milhões de anos. https://www.researchgate.net/publication/324043374_A_comparative_study_of_the_Stone_Tool-Making_Skills_of_Pan_Australopithecus_and_Homo_sapiens
Reduction sequences in the manufacture of Mousterian implements in France – Estudo etnográfico sobre as etapas de redução de blocos de silex na indústria musteriense, detalhando o fluxo de trabalho, os padrões repetitivos de percussão e as decisões técnicas tomadas para obter lâminas e raspadores eficientes. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4613-1817-0_3
Geometric morphometrics and paleoneurology: brain shape evolution in the genus Homo – Pesquisa que utiliza técnicas de morfometria geométrica para analisar alterações no formato craniano de diferentes espécies do gênero Homo, relacionando essas mudanças anatômicas com o desenvolvimento de regiões cerebrais ligadas ao raciocínio espacial. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248404001149
The hunter-gatherer theory of sex differences in spatial abilities: data from 40 countries – Trabalho que compila dados de quarenta nações para testar a hipótese de que diferenças de gênero em habilidades espaciais refletem adaptações de caçadores e coletoras, avaliando desempenho em tarefas de rotação mental. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17351740/
Humans have evolved specialized skills of social cognition: the cultural intelligence hypothesis – Artigo que propõe que os seres humanos desenvolveram competências sociais únicas, derivadas da pressão seletiva por cooperação e transmissão cultural, permitindo compreensão avançada de intenções, ensino e aprendizagem coletiva. https://www.science.org/doi/10.1126/science.1146282
How to learn about teaching: an evolutionary framework for the study of teaching behavior in humans and other animals – Este texto define um modelo evolutivo para investigar o comportamento de ensino em humanos e animais, discutindo critérios que distinguem ensino intencional de simples facilitação e seu impacto na transmissão de conhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24856634/
Working memory – Capítulo seminal que apresenta o conceito de memória de trabalho como sistema de armazenamento temporário e de controle atencional, explicando suas componentes centrais, mecanismos de manutenção de informações e implicações para tarefas complexas de raciocínio. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0079742108604521
What does the retrosplenial cortex do? – Revisão que sintetiza evidências sobre o papel do córtex retrosplenial na memória espacial e na navegação, descrevendo como essa região integra informações sensoriais e contextuais para apoiar o mapeamento de ambientes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19812579/
Cognitive aspects of Upper Paleolithic engraving – Estudo que analisa as marcas gravadas em ossos e pedras do Paleolítico Superior, interpretando essas notações como extensões externas da memória e sistemas iniciais de registro numérico e calendárico. https://www.jstor.org/stable/2740829
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