Os mistérios das moléculas e como ela moldou a vida na Terra

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No universo da química, existe um conceito chamado ‘quiralidade’. Basicamente, isso significa que certas moléculas podem existir em duas versões diferentes, uma sendo a imagem espelhada da outra, como as mãos direita e esquerda. A princípio, pode parecer só uma curiosidade de laboratório, algo que só interessa para quem mexe com tubos de ensaio ou algo do tipo. Só que esse detalhe ganha um peso enorme quando se percebe que, apesar das reações químicas produzirem normalmente metade de cada versão: os aminoácidos e açúcares que aparecem na natureza em uma forma só. Os aminoácidos naturais são todos do tipo ‘canhoto’, enquanto os açúcares, que formam o DNA e o RNA, só existem na forma ‘destra’. Esse padrão, conhecido como homoquiralidade, é tão essencial que sem ele a vida, do jeito que conhecemos, nem existiria.

Esse fenômeno já deixou muitos pensativos desde os primeiros passos da biologia molecular. Por que a natureza escolheu apenas um dos lados dessa moeda? A ciência, até hoje, não chegou a um consenso absoluto sobre o motivo. O curioso é que, se alguém tentar criar essas moléculas do zero no laboratório, elas sempre surgem em proporções iguais, misturando as duas versões, como se não houvesse preferência.

Uma das apostas dos cientistas é de que, em algum momento da chamada ‘sopa primordial’, surgiu um desequilíbrio. Talvez uma pequena vantagem aleatória, um empurrãozinho dado por algum fator externo, radiação polarizada do Sol, minerais com superfícies assimétricas, ou até mesmo moléculas trazidas por meteoritos, ou talvez, sei lá. O fato é que, de alguma forma, um dos lados começou a dominar.

Experimentos históricos já deram pistas sobre isso. Em 1953, Stanley Miller e Harold Urey(1) simularam as condições da Terra primitiva em laboratório e conseguiram formar aminoácidos, só que sempre em proporções iguais entre destros e canhotos. Depois, muitos pesquisadores tentaram descobrir o que poderia quebrar esse empate.

Mais recentemente, o trabalho dos pesquisadores S. Furkan Ozturk e Dimitar Sasselov, de Harvard – no qual você pode ver no vídeo – chamou atenção justamente por tentar resolver essa charada. Eles testaram reações químicas sob condições semelhantes às dos mares primordiais, explorando como fatores ambientais poderiam favorecer um lado na formação das moléculas da vida. Suas descobertas, detalhadas em artigo na Science Advances em 2023(2), sugerem que ciclos de temperatura, variações de pH e até a presença de certos minerais poderiam agir em conjunto para estimular o surgimento da homoquiralidade. O impacto desse tipo de estudo é tão grande que mexe não só com a química, mas também com a forma como se imagina a origem e a evolução da vida em outros planetas.

 


Referências:


1 - A Production of Amino Acids Under Possible Primitive Earth Conditions - Em 1953, Stanley Miller mostrou que era possível formar aminoácidos a partir de gases simples e descargas elétricas simulando a atmosfera da Terra primitiva. O experimento demonstrou que compostos essenciais para a vida podem surgir em condições naturais, reforçando a teoria da “sopa primordial” como caminho para o surgimento da vida, mas sempre gerando uma mistura igual de moléculas destros e canhotos. https://www.science.org/doi/10.1126/science.117.3046.528


2 - Origin of biological homochirality by crystallization of an RNA precursor on a magnetic surface - Publicado em 2023, esse estudo revela que superfícies magnéticas podem favorecer a formação de cristais homoquirais de precursores de RNA. Ao simular condições semelhantes às da Terra primitiva, os autores mostram que é possível obter um excesso de moléculas de um único tipo quiral, sugerindo um caminho natural para a origem da homoquiralidade essencial à vida. https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adg8274



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