
O universo digital nos presenteia, a cada login, com um espelho multifacetado: ali, somos simultaneamente autor e ator, público e plateia. Essa experiência de criar um “eu” virtual não é trivial; é um laboratório comportamental em que testamos traços de personalidade, percebemos (observe como esse padrão emerge…) repercussões sociais e, por vezes, acolhemos versões de nós mesmos que o mundo “offline” não nos permitiria. Mas por que nos envolvemos tanto nessa construção? Qual é o papel psicológico dessa persona virtual e de que forma ela dialoga com quem somos quando desconectamos?
Logo de cara, vale deixar claro que a noção de identidade não é fixa. No passado, psicólogos falavam em Self (termo em inglês para si mesmo) como algo quase imutável, como se carregássemos um único “eu real”. Hoje, sabemos que nossa identidade é fluida. Somos mosaicos de experiências, crenças e expectativas, e cada contexto — da roda de amigos ao fórum especializado — pede uma coloração diferente. Quando entramos em um ambiente online, criamos um avatar ou perfil que pode aproximar-se do nosso eu “habitual” ou se distanciar por completo, abraçando uma versão idealizada, experimental ou até negativa.
Em estudos de ambientes altamente customizáveis, como jogos de mundo aberto e plataformas de avatares em 3D, observa-se que muitos usuários seguem a rota da “idealização”. É comum que, ao construir um personagem, o jogador realce traços positivos: olhos maiores, corpo tonificado, roupas estilosas. E não é só estético: traços de personalidade podem ser acentuados ali, no código — mais ousadia, mais sociabilidade, menos timidez. Esse comportamento ecoa um fenômeno batizado de Proteus Effect, que sugere que, ao adotar uma representação mais confiante, a pessoa pode levar esse viés para interações futuras, inclusive fora da tela. Eu tive algumas reflexões sobre isso quando criei, certa vez, um avatar metido a líder de clã em um jogo de fantasia mitológica. Primeiro achei besteira, mas percebi que, ao responder mensagens de guilda com tom mais assertivo, meu próprio discurso no trabalho ganhou outro contorno e, olha, nem foi intencional.
Mas nem todo mundo vai nessa de “self turbo”. Há quem explore o oposto: a versão negativa de si mesmo. Em vez de livrar-se de defeitos, o indivíduo conscientemente exagera aspectos menos desejáveis — raiva, sarcasmo, distanciamento. Isso pode ser visto como uma válvula de escape (um conceito que, em psicologia, chamado de “catarse”: liberação de emoções negativas num espaço seguro). Em alguns fóruns ou jogos, esse “eu-negativo” até diverte, mas há o perigo de reforçar padrões agressivos se a pessoa permanecer enclausurada em bolhas de conteúdo igualmente tóxico. A curto prazo dá alívio, mas e a longo prazo? Será que o online nos empurra a confirmar traços que no fundo gostaríamos de suavizar?
Voltando ao espectro intermediário, muitos optam por “turismo de identidade”: um passeio por possibilidades que não têm a ver nem com o real, nem com o ideal, mas com o exótico — ser um elfo filósofo, um cyborg melancólico, uma entidade misteriosa sem gênero definido. Isso amplia horizontes internos, exercita a empatia e permite refletir sobre limites entre persona e essência. Qualquer semelhança com aquele amigo de faculdade que, num role-play, se revelou poeta é pura coincidência (ou não…). Essa capacidade de experimentar “outros eus” sem risco é uma das forças do ambiente digital. E o mais curioso: às vezes a gente descobre talentos escondidos. Já vi alguns que mal falava em público ganhar desenvoltura ao representar um personagem carismático em podcasts de ficção colaborativa.
Mas por que tanto interesse em reinventar-se? Parte da resposta está na segurança que o anonimato oferece. Quando ninguém sabe seu nome real, diminui a chance de julgamento imediato. Isso motiva explorarmos partes suprimidas, seja a faceta criativa, inquieta ou provocadora. Chama-se anonimato um “escudo psicossocial” (entenda: barreira invisível que protege o indivíduo do olhar crítico alheio). Com ele, experimentos de comportamento se tornam possíveis sem custos reputacionais. Porém, se abusarmos desse escudo, corremos o risco de dissociação, esquecer quem somos fora do teclado. Daí brota a pergunta retórica inevitável: quem me garante que, ao desconectar, ainda saberei voltar ao meu ponto de partida?
Aqui cabe um parêntese: cada plataforma tem suas próprias convenções, e nós nos adaptamos a elas. No LinkedIn, falamos de conquistas e projetos (postagens mais formais). No Instagram, exibimos momentos polidos, às vezes em slow motion, e nos preocupamos com “grid harmônico”. No Twitter, o jogo é de provocação e brevidade, quase um exercício de copywriting instantâneo. No TikTok, somos roteiristas de 15 segundos, ousando coreografias ou dublagens. Essa “performance adaptativa” não é artificialidade pura; é, em grande medida, política de discurso: escolhemos como nos posicionar diante de audiências específicas. Mas, convenhamos, seguir scripts invisíveis cansa. Quando o conteúdo que funcionou no Instagram vai mal num canal de texto livre, a frustração bate — e a gente percebe que não basta ser bom, tem que calibrar o figurino pro palco certo.
E o que isso diz sobre autenticidade? Será que existe um “eu autêntico” circulando na internet? A noção de Self autêntico talvez seja um mito. Melhor encarar a identidade como processo dinâmico — não um estado a ser alcançado. Honestidade não é prerrogativa de ausência de filtros, mas de coerência entre intenções e ações. Em outras palavras, ser autêntico online é escolher quando intensificar ou conter traços de acordo com objetivos e, ainda assim, sentir-se alinhado consigo mesmo. Se, por exemplo, seu objetivo ao postar é compartilhar conhecimento e, na prática, você se vê buscando curtidas fáceis, aí reside o conflito interno.
Você já esqueceu de quem era seu “eu offline” por passar horas ajustando filtros? Eu mesmo, certa vez, me deparei com um espelho no corredor do prédio e quase não me reconheci: carrego hoje menos rímel digital, mas acabei retardando o encontro comigo mesmo ao investir demais na imagem. Esses deslizes sutis mostram que, se não traçarmos limites, a construção digital pode consumir tempo e energia que seriam gastos em interações presenciais, leituras profundas ou até em momentos de ócio produtivo, aquele que gera insights sem intervenção de algoritmos.
E há benefícios concretos quando usamos bem essa plasticidade identitária. Profissionais que praticam oratória em avatares antes de subir ao palco real relatam ganhos de confiança. Estudantes que testam diferentes estilos de redação em blogs simulados aperfeiçoam a clareza e a persuasão. Grupos de apoio online permitem que pessoas em isolamento social encontrem acolhimento. Ou seja, o “eu virtual” pode ser uma ferramenta de aprimoramento (um conceito que economistas chamam de capital humano: recursos adquiridos que valorizam o indivíduo em diferentes esferas).
Mas atenção: esses ganhos dependem de uma postura consciente. Se entramos na lógica do “só quero ser popular”, acabamos refém de métricas alheias, alimentando ansiedade por validação constante. Alguém aí já sentiu aquela aceleração no peito quando recebe notificação de “novo seguidor”? É sinal de que delegamos a terceiros o papel de confirmar nosso valor. Alternativa mais saudável é encarar notificações como indicadores, não decretos, de relevância, sem transferir a elas o peso de nossa autoestima.
Poucas reflexões são lineares; a real experiência é cheia de idas e vindas. Passamos do deleite de criar um personagem invencível à nostalgia de uma mãe nos chamando para o almoço. Somos simultaneamente o arquiteto do código e a pessoa esperando respostas de e-mail. É nesse vaivém que mora a riqueza: usar a virtualidade como playground experimental, mas dar vistas d’olhos ocasionalmente para o terreno firme, onde pulsa nossa vida cotidiana, com seus sons, odores e toques.
E o futuro? As fronteiras entre real e virtual tendem a se dissolver: da realidade aumentada que projeta informações na rua ao metaverso que promete mundos inteiros para habitar. Nessa confluência, nossa capacidade de navegar identidades será ainda mais exigida. Quem sabe passaremos mais tempo em “eus estendidos” que em versões biológicas? Talvez avatars emocionais interajam entre si, independentemente de estarmos presentes. Se isso soa distante, lembre‑se: há dez anos ninguém imaginava um condomínio inteiro de reuniões por vídeo. Então cabe reforçar: cultivar flexibilidade (um atributo cognitivo que chamamos de plasticidade mental) será chave para manter coerência interna em múltiplos cenários, reais ou virtuais.
Referências:
The Proteus Effect: The Effect of Transformed Self-Representation on Behavior - O Efeito Proteus: O impacto da auto-representação transformada no comportamento. Mostra como avatares virtuais influenciam atitudes e ações reais dos usuários.
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1468-2958.2007.00299.x
Virtual Superheroes: Using Superpowers in Virtual Reality to Encourage Prosocial Behavior - Super-heróis virtuais: Usando superpoderes na realidade virtual para incentivar comportamentos pró-sociais. Explora como experiências virtuais com superpoderes podem aumentar empatia e ações altruístas no mundo real.
https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0055003
The Dark Triad and trait self-objectification as predictors of men’s use and self-presentation behaviors on social networking sites - A Tríade Sombria e a auto-objetificação como preditores do uso e comportamento de autopromoção de homens em redes sociais. Analisa traços de personalidade ligados a narcisismo, maquiavelismo e psicopatia no uso das redes.
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0191886914007259
The influence of self-discrepancy between the virtual and real selves in virtual communities - A influência da discrepância entre o eu virtual e o eu real em comunidades virtuais. Investiga como a diferença entre identidade digital e identidade real afeta emoções e engajamento.
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0747563212002580
The Ideal Self at Play: The Appeal of Video Games That Let You Be All You Can Be - O Eu Ideal em Jogo: O apelo de videogames que permitem ser tudo o que você pode ser. Estudo mostra como jogos que se alinham com o “eu ideal” aumentam prazer e envolvimento.
https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0956797611418676
Self-concept deficits in massively multiplayer online role-playing games addiction - Déficits no autoconceito em casos de vício em jogos de RPG online massivos. Mostra que lacunas no autoconhecimento estão relacionadas ao uso compulsivo desses ambientes.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23428827/
The psychological functions of avatars and alt(s): A qualitative study - As funções psicológicas de avatares e personagens alternativos: Um estudo qualitativo. Examina os múltiplos papéis que os avatares exercem no bem-estar, expressão e exploração de identidade.
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0747563213004287
Self-Presentation Theory: Self-Construction and Audience Pleasing - Teoria da Autopresentação: Autoconstrução e agrado à audiência. Fundamenta a ideia de que moldamos o comportamento com base nas expectativas percebidas dos outros.
https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4612-4634-3_4
Cyberspace romance: The psychology of online relationships - Romance no ciberespaço: A psicologia dos relacionamentos online. Analisa vínculos afetivos mediados por telas e suas particularidades emocionais.
https://psycnet.apa.org/record/2006-20070-000
Self-Concept Clarity and Online Self-Presentation in Adolescents - Clareza do autoconceito e autopresentação online em adolescentes. Explora como a estabilidade da autoimagem impacta o modo como jovens se mostram nas redes.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27830930/
The impact of eSports and online video gaming on lifestyle behaviours in youth: A systematic review - O impacto de eSports e jogos online no estilo de vida de jovens: Uma revisão sistemática. Mapeia como o engajamento com games digitais afeta saúde, rotina e socialização.
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0747563221002971
A plastic virtual self - Um eu virtual plástico. Estudo reflete sobre a maleabilidade da identidade digital e suas implicações para cognição, empatia e comportamento.
https://www.taylorfrancis.com/chapters/edit/10.4324/9780429321542-38/plastic-virtual-self-mel-slater-maria-sanchez-vives
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