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Thomas Midgley Jr e o preço do progresso

Ethyl
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Um único pesquisador ganhou fama por resolver problemas difíceis e, sem querer, plantou dois dos maiores desafios ambientais do século XX. Falo de Thomas Midgley Jr., engenheiro químico ligado ao laboratório de Charles F. Kettering na General Motors. Dois produtos que ele ajudou a colocar no mundo cruzaram fronteiras, entraram em casas e pulmões, e mexeram com estatísticas de saúde, educação e comportamento. O terceiro invento, um sistema de cordas para ajudá-lo a sair da cama quando já estava doente, virou ironia amarga: foi o mecanismo que o enredou e tirou sua vida. Como esse roteiro se construiu? O caminho passa por motores barulhentos, cristais minúsculos, partículas invisíveis e decisões corporativas embaladas por otimismo industrial.

Começo pela pergunta que incomoda: por que um aditivo considerado brilhante para acabar com a “batida” de motor virou sinônimo de veneno atmosférico? “Batida” é o apelido da detonação, quando a mistura ar-combustível se inflama antes da faísca por compressão elevada, gerando ondas de pressão desordenadas e ruído metálico. Isso rouba potência, piora consumo e danifica cilindros. Para domar o problema, a engenharia buscou ajuda na química.

A estratégia técnica se apoia na octanagem (resistência do combustível à autoignição). Na escala de referência, o isooctano ocupa o topo; o n-heptano, a base. Motores mais comprimidos rendem mais, desde que a mistura não se inflame sozinha antes da hora. Guarde a imagem simples: quanto maior a octanagem, menor a chance de detonação caótica dentro do cilindro.

No início do século XX, Detroit fervilhava. A adoção do arranque elétrico ganhou tração depois da morte do empresário Byron J. Carter, atingido por uma manivela ao tentar dar partida num carro, episódio que sensibilizou Henry M. Leland, da Cadillac, a buscar uma solução menos perigosa. O arranque elétrico de Kettering apareceu em 1912 no Cadillac Model 30 e elevou o patamar dos motores, ampliando compressão e, por tabela, a propensão à detonação. Começou a caça a aditivos “anti-batida”. Testaram cânfora, solventes diversos e etanol. O etanol funcionava, mas exigia proporções altas que não empolgavam os fabricantes.

A resposta que dominaria por décadas ganhou quatro sílabas: tetraetilchumbo (TEL). A molécula, com chumbo no centro, alterava a cinética da combustão e elevava octanagem em doses minúsculas. Barato, miscível, sem cheiro forte, parecia triunfo. Midgley demonstrou o efeito sob a tutela de Kettering; GM, Standard Oil e DuPont formaram a Ethyl Corporation para explorar o mercado. Em linguagem publicitária, era progresso. Em linguagem de saúde pública, a semente de um problema planetário.

Por que um metal tóxico se espalha tanto ao ser queimado? As partículas finas formadas na combustão viajam no ar, assentam no solo, entram em água e alimentos. O chumbo engana transportadores celulares por mimetizar o cálcio, acumula em ossos por anos e pode voltar à circulação em períodos de estresse fisiológico. No cérebro, afeta a bainha de mielina (revestimento isolante do axônio) e interfere em neurotransmissores. Em crianças, doses pequenas geram impactos grandes: atraso de linguagem, queda de desempenho escolar, mudanças de comportamento. A pergunta decisiva é direta: existe nível seguro? A resposta que a ciência consolidou é seca: não há nível seguro conhecido para crianças.

Esse veredito não veio por palpite. Veio do trabalho obstinado de outro cientista, Clair Cameron Patterson. Químico e geocronologista, ele dominava espectrometria de massa (instrumento que separa íons pela razão massa-carga) e queria responder uma pergunta ousada: qual a idade da Terra? Em geocronologia, certos minerais funcionam como relógios. O urânio decai até chumbo estável; a razão entre pai e filho revela tempo. Zircões — cristais que nascem com traços de urânio e zero chumbo — são ideais, pois qualquer chumbo medido depois veio do decaimento. No papel, era simples. No laboratório, as leituras de chumbo estavam absurdamente altas. O intruso não estava no cristal, estava em toda parte.

Para medir com precisão, Patterson teve de inventar a sala limpa moderna: ar filtrado, pressão positiva, superfícies lavadas, soldas sem chumbo, roupas integrais. Dentro desse casulo, o relógio das rochas voltou a funcionar. Como as rochas mais antigas da Terra foram recicladas por tectônica, a resposta veio dos meteoritos, irmãos de berçário do Sistema Solar: ~4,55 bilhões de anos. Com o método validado, Patterson virou a lente para o ambiente. Achou chumbo recente em excesso no oceano superficial. Depois leu a história em núcleos de gelo da Groenlândia e Antártica: picos ligados a mineração antiga e, no século XX, uma escalada compatível com a queima de combustíveis aditivados.

A partir daí, a pergunta social ficou inevitável: se o chumbo estava em todo lugar, o que ele fez conosco? Ossos e dentes modernos carregavam muito mais chumbo do que os de antepassados. Dentes de leite mostravam que níveis antigos, então considerados “aceitáveis”, já vinham associados a perda de QI e desvantagem escolar. Pesquisadores como Bruce P. Lanphear e David C. Bellinger ajudaram a quantificar o impacto cognitivo em faixas baixas de exposição, reforçando que a curva dose-resposta é traiçoeira. Políticas públicas foram apertando limites à medida que as evidências se acumulavam.

Outra frente que tocou sensibilidades foi a curva do crime. Em diversos países, a violência cresceu por duas décadas e depois caiu de modo acentuado. Análises de Rick Nevin, Jessica Wolpaw Reyes e outros mostraram que o desenho temporal lembra a trajetória do chumbo no sangue infantil, deslocada alguns anos. Ninguém sério reduz comportamento humano a um único elemento químico. Só que a hipótese ganhou plausibilidade biológica e estatística quando estudos com chumbo ósseo em adolescentes apontaram maior risco de delinquência em quem carregava mais metal no corpo.

Em adultos, o foco saiu do cérebro e foi parar no endotélio. O chumbo endurece artérias, induz inflamação, eleva pressão e favorece placas. Em análise de coorte, Lanphear e colaboradores estimaram centenas de milhares de mortes cardiovasculares anuais nos EUA atribuíveis a exposições consideradas “baixas”. Em série histórica, isso vira dezenas de milhões. No cenário global, relatórios de UNICEF/Pure Earth alertam que uma fração imensa de crianças ainda hoje apresenta concentrações preocupantes, muito por reciclagem inadequada de baterias e passivos industriais que teimam em ficar.

“Mas não era só melhorar motor?” A pergunta é justa. Midgley fez parte de uma façanha técnica real, com métricas de desempenho claras. O que não entrou na conta, na época, foi a toxicologia. Houve alertas iniciais, nomes como Alice Hamilton e Yandell Henderson advertiram nos anos 1920 sobre a periculosidade do TEL —, mas prevaleceu a visão tranquilizadora de Robert A. Kehoe, que defendia thresholds “seguros”. A história mostra como incentivos econômicos modulam o que escutamos. Um aditivo eficiente em traços rende patentes e margens generosas. Etanol seria alternativa em muitos cenários, só que menos lucrativa dentro daquela arquitetura industrial.

O mesmo Midgley assinou outro capítulo crucial: a era dos clorofluorcarbonetos (CFCs). Em busca de um gás refrigerante não inflamável e menos tóxico que as opções da época, a equipe de Kettering, com Midgley em papel central, introduziu moléculas estáveis e eficientes para geladeiras e sistemas de ar. Mais tarde, Mario J. Molina e F. Sherwood Rowland demonstraram que a estabilidade que parecia virtude na troposfera virava risco na estratosfera: sob ultravioleta, os CFCs liberam cloro reativo que catalisa a quebra do ozônio, a camada que filtra radiação nociva. A descoberta do “buraco” antártico por Joseph Farman, Brian Gardiner e Jonathan Shanklin transformou a química atmosférica em diplomacia. O Protocolo de Montreal entrou em cena, e a recuperação, lenta, já é mensurável.

Curioso notar a diferença de respostas. No caso dos CFCs, a reação global foi relativamente rápida depois que os mecanismos foram esclarecidos. No caso da gasolina com chumbo, a retirada levou décadas, com países em tempos distintos. O último combustível automotivo com chumbo caiu apenas em 2021. Ainda resta uma fonte ativa e relevante: a aviação a pistão, que usa gasolina 100LL. Estudos em comunidades ao redor de aeroportos mostram níveis sanguíneos mais altos em crianças expostas. A transição para combustíveis sem chumbo já tem via técnica, mas precisa acontecer de verdade.

Volto ao laboratório de Patterson. A obsessão por medições limpas ensinou algo além da idade da Terra. O modo como perguntamos contamina o que respondemos. Quando limpamos o ruído, o sinal aparece. E o sinal, aqui, foi duro: um planeta recoberto por uma película de chumbo fabricada por decisão humana. Um geocientista que queria números confiáveis acabou armando o caso científico que ajudou a desintoxicar a atmosfera.

O recado é simples e incômodo, princípio da precaução (testar exaustivamente antes da adoção massiva), políticas que resistem a lobbies apressados e monitoramento epidemiológico atento. Quando uma curva insiste em subir — hospitalizações, biomarcadores, queixas em escolas —, a curiosidade científica precisa ter licença para refazer perguntas que incomodam.

E aquela terceira invenção? Já doente, Midgley montou um sistema de cordas e polias para se erguer da cama. Morreu enredado nele. Casualidade explica a tragédia, não explica os desastres químicos. A imagem, porém, funciona como metáfora: soluções engenhosas viram laços quando o todo fica fora de quadro. É injusto reduzir uma pessoa aos piores efeitos de suas criações, como é ingênuo celebrar só as vitórias técnicas. O saldo ético aparece quando externalidades entram na conta.

 Neurotoxicidade precoce esculpe trajetórias. Famílias, escolas e sistemas de justiça sentem o impacto de decisões tomadas décadas antes em conselhos de administração. O cérebro em desenvolvimento não negocia com moléculas que atrapalham sinapses; adapta-se como dá, a um custo que espalha desigualdade. Em certos lugares, esse dossiê ainda precisa ganhar voz política.

Quando uma solução parece perfeita, quem lucra e quem carrega o risco? Quando um produto exige nova infraestrutura de medição para revelar o dano, quem paga por ela? Quando os efeitos atravessam gerações, modelos de custo-benefício dão conta? Às vezes a resposta técnica existe, mas esbarra na dinâmica de poder previsível. Em outras, faltam dados. Incerteza não é permissão para paralisia; é convite para medir melhor.

Para fechar pelo ângulo que importa: não há dose segura de chumbo para crianças. Essa frase seca resume por que uma solução “genial” no curto prazo se converteu, décadas depois, em política pública no sentido oposto. Se o risco recai sobre cérebros em formação, a decisão precisa priorizar proteção ampla mesmo quando o custo imediato parece mais visível que o benefício. Progresso de verdade se mede por essa aritmética moral, uma lição que leva os nomes de Thomas Midgley Jr., Charles F. Kettering, Byron J. Carter e Clair C. Patterson, entre tantos outros que, por ação ou por teimosia científica, mudaram o curso da história.


Referências:

Charles F. Kettering and the Development of Tetraethyl Lead in the Context of Alternative Fuel Technologies — https://www.sae.org/publications/technical-papers/content/941942/

Standard Test Method for Research Octane Number of Spark-Ignition Engine Fuel — https://store.astm.org/d2699-21.html

Exposure to lead: a major public health concern: preventing disease through healthy environments — https://www.who.int/publications/i/item/9789240078130

A pharmacokinetic model of lead absorption and calcium competitive dynamics — https://www.nature.com/articles/s41598-019-50654-7.pdf

Intellectual Impairment in Children with Blood Lead Concentrations below 10 µg per Deciliter — https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa022848

The association between lead exposure and crime: A systematic review — https://journals.plos.org/globalpublichealth/article?id=10.1371%2Fjournal.pgph.0002177

Bone lead levels and delinquent behavior. — https://europepmc.org/article/MED/8569015

Thomas Midgley, Jr., and the invention of chlorofluorocabon refrigerants: It ain't necessarily so — https://www.ideals.illinois.edu/items/134735

Emoções e dinâmica social

Emoções
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Vamos falar de um tema que todo mundo vive na pele, mas raramente nomeia com precisão: como as emoções de uma pessoa mudam por causa das outras. Você conta uma notícia ruim, alguém do seu lado fica tenso, um terceiro tenta “levantar o astral” com uma piada — e, de repente, o clima de todo mundo já não é mais o mesmo. Isso tem nome, tem lógica e tem caminhos previsíveis. A pergunta que guia este texto é simples: o que acontece, emocionalmente, quando não atuamos “direto no alvo”, e sim por meio de outras pessoas?

Vou apresentar os conceitos centrais, mostrar onde eles aparecem na vida real e por que valem para famílias, escolas, empresas, esportes e até política. E, aos poucos, reforçar um ponto-chave: nem sempre o jeito mais eficaz de mexer com a emoção de alguém é falar com essa pessoa, às vezes, a via mais curta passa por um terceiro.

O que é regulação emocional interpessoal?

Comecemos pelo básico. Regulação emocional (ou emotion regulation) é o conjunto de processos pelos quais ajustamos o que sentimos, quando sentimos e como expressamos o que sentimos. Quando faço isso comigo mesmo, respiro fundo, mudo o foco, conto até dez, estou na esfera intrapessoal. Quando tento alterar o estado emocional de outra pessoa — confortando, animando, provocando, esfriando uma discussão, entro na regulação emocional interpessoal (REI).

Dois termos ajudam a organizar essa cena: agente e alvo. O agente é quem inicia uma ação para mudar a emoção de alguém, o alvo é quem tem a emoção mudada. Parece óbvio, certo? Só que a vida social raramente é só uma via de mão dupla. Em boa parte das situações, existe um terceiro na jogada, alguém que não é o alvo final, mas que pode ser tocado primeiro para, então, influenciar o alvo. É aqui que a conversa ganha profundidade.

Tradicionalmente, discute-se REI pensando no agente atuando direto no alvo. Vou consolar meu amigo? Eu falo com ele, uso meus recursos e pronto. Chamemos isso de self-based: eu, agente, uso a mim mesmo como meio para regular o outro.

Agora, considere duas variações que ampliam a lente e fazem mais justiça à vida real:

Other-based direta: o agente muda a emoção do terceiro, e esse terceiro, por sua vez, muda a emoção do alvo. Pense no técnico de um time que, percebendo a equipe abatida, primeiro trabalha o humor do capitão; o capitão, mais confiante, “contamina” positivamente o vestiário.
    
Other-based indireta: o agente muda a emoção do terceiro, e só o fato de o alvo testemunhar essa mudança já altera o seu estado. Imagine a aluna que, vendo a professora nervosa, decide alegrar um colega ao lado; a professora observa a cena, relaxa, e o clima da turma melhora sem ninguém ter “falado com a professora”.
    
Repare na lógica:
não se trata apenas de “quem é o alvo”, mas de qual caminho emocional percorremos. A mesma intenção — melhorar ou piorar um estado afetivo — pode seguir rotas diferentes. E rotas diferentes exigem habilidades, timing e ética diferentes.

Outro conceito simples, que evita confusão, é o de valência emocional (se uma emoção é agradável/positiva ou desagradável/negativa). Nem sempre a valência que induzimos no terceiro é a mesma que desejamos no alvo. Um exemplo cotidiano: alguém compra um presente “generoso” para o filho, não para alegrá-lo, mas para irritar o ex-parceiro — que se sente ultrapassado ou sabotado. A valência sobe no terceiro (criança feliz), cai no alvo (ex-parceiro irritado). O oposto também ocorre: pressionar uma equipe pode, por vezes, agradar uma chefia que valoriza “rigor”, ainda que colegas fiquem tensos. Essas assimetrias mostram como as redes emocionais comportam trajetórias não lineares.

Quando alguém tenta regular a emoção de outra pessoa, há sempre um motivo. Três rótulos didáticos ajudam:

Hedônico: o objetivo é mexer com o sentir pelo sentir — fazer alguém se sentir bem, ou mal, independentemente de metas posteriores.
    
Instrumental: o foco é um resultado prático que depende de um estado emocional; por exemplo, animar a equipe para melhorar o desempenho, ou constranger um colega para que ele recue de uma decisão.
    
Altruísta: o alvo se beneficia, mesmo que o processo seja desconfortável no curto prazo; um pai pode induzir preocupação no outro cuidador por acreditar que isso protegerá o filho.
    
Perceba a sutileza: piorar a emoção de alguém não é automaticamente “maligno” se o foco for proteger no longo prazo, e melhorar a emoção de alguém pode ser usado de modo insincero para tirar vantagem. A motivação dá cor ética à estratégia.

A linha entre regulação emocional interpessoal e manipulação pode parecer tênue, mas há diferenças claras quando você olha com lupa.

Objeto final: na REI, o objetivo declarado da ação é mudar a experiência emocional do outro; na manipulação, a emoção é mais um meio para mudar comportamento em benefício do manipulador.
    
Valência permitida:
a REI inclui melhora e piora do afeto; abordagens de manipulação tendem a explorar sobretudo piora para obter controle.
    
Repertório:
a REI admite estratégias adaptativas, como escuta ativa, validação e reforço de vínculos; manipulação privilegia táticas de pressão, culpa e distorção.
    
Arquitetura social: a REI descreve com naturalidade interações triádicas (agente–terceiro–alvo); classificações clássicas de manipulação focam em díades.
    
Intencionalidade: a REI pode ser sincera (cooperativa ou altruísta); manipulação, por definição, carrega intenção insincera e conflito de interesses.
    
Isso não quer dizer que não haja sobreposição. Se o agente quer que o alvo se sinta culpado para obedecer, e usa um terceiro como amplificador, a fronteira fica borrada. A diferença volta a emergir quando perguntamos: qual é a meta explícita — a emoção em si, ou um comportamento instrumentalizado por ela?

Quatro condições aparecem com frequência:

Barreiras contextuais: o agente não tem acesso direto ao alvo no ambiente onde a emoção se dá. Pais não entram na sala de aula; líderes nem sempre estão no chão de fábrica. A ponte vira o terceiro que está lá.
    
Distância psicológica: pouca intimidade, baixa confiança ou assimetria de poder. Falar diretamente pode soar invasivo ou arriscado; usar alguém de confiança do alvo aumenta a chance de adesão.
    
Cálculo de eficácia: mesmo que o contato direto seja possível, o agente avalia que o terceiro tem mais impacto. Em equipes, o capitão fala a língua do vestiário como ninguém; em famílias, irmãos se influenciam mais em certas idades do que os pais.
    
Difusão de responsabilidade: em contextos sensíveis, o agente não quer aparecer como a fonte da mudança emocional. Isso pode ser prudência política… ou covardia.

Note como esse quarto item tem cheiro de risco ético. Voltaremos a ele.

Atuar via terceiro exige representar dois estados emocionais ao mesmo tempo e antecipar como um afeta o outro. Isso convoca Teoria da Mente de segunda e terceira ordem (capacidade de atribuir estados mentais do tipo “eu acho que ele pensa que ela sente…”). Quem tem boa empatia cognitiva (tomar a perspectiva do outro) costuma se sair melhor nesse xadrez social.

Do ponto de vista do desenvolvimento, crianças pequenas já discriminam emoções básicas, mas só mais tarde consolidam raciocínios em cadeia sobre o que um sente por causa do que o outro sentiu. É nessa faixa que surge, por exemplo, a agressão relacional mediada por terceiros (espalhar um rumor via um amigo) — um uso sombrio da mesma habilidade de pensar em triângulos.

Traços de personalidade também modulam preferências estratégicas. Pessoas muito afáveis tendem a evitar confronto direto e podem preferir rotas indiretas quando há risco de conflito. Quem pontua alto em neuroticismo (maior sensibilidade à punição e à ameaça) pode recorrer à rota via terceiro para evitar embates frontais e diluir responsabilidade. Extrovertidos gostam de agir diretamente, recorrem a terceiros quando barreiras impedem o contato ou quando o terceiro é claramente o melhor canal. E há o lado escuro: níveis altos de maquiavelismo predispondo ao uso frio de terceiros para fins próprios.

Condições clínicas também importam. Dificuldades de leitura de emoções e de perspectiva social — como as observadas em alguns quadros do espectro autista — podem tornar mais custoso executar estratégias que dependem de monitorar dois estados emocionais em paralelo. Transtornos de personalidade com desconfiança crônica e viés de intenção hostil aumentam o risco de leituras distorcidas e táticas que machucam.

A REI raramente acontece em um único gesto. Em muitos episódios, o processo começa porque alguém compartilha sua emoção (uma espécie de “pedido de ajuda” afetivo). O agente tenta uma via direta; se percebe pouca tração, engata a via via-terceiro; às vezes combina as duas em polirregulação — várias estratégias, em sequência ou simultaneamente.

Aqui mora um risco. Usar muitas estratégias sem critério não melhora, por si só, a regulação. O agente pode se desgastar: monitorar estados emocionais múltiplos, atuar por canais indiretos, “carregar” o clima do grupo… tudo isso custa energia mental. É saudável aprender a encerrar o processo: parar quando a emoção-alvo foi atingida, quando os custos ultrapassam os ganhos, ou quando se percebe que a leitura do estado do outro estava errada. Parece simples, mas como medir sucesso? O jeito prático é combinar sinais observáveis (o alvo ficou mais calmo? retomou tarefas? mudou a expressão?) com checagens breves e não invasivas (“como você está se sentindo com isso agora?”), sem transformar a conversa num interrogatório.

Exemplos concretos (com dilemas reais):

Família  
Um padrasto quer que a parceira, mãe da adolescente, sinta-se menos tensa com a rotina. Em vez de discutir diretamente com a parceira, ele investe em momentos positivos com a enteada — passeios, conversas, apoio nos estudos. A mãe observa a filha mais tranquila e, por tabela, relaxa. Motivo hedônico com benefício colateral? Talvez. Motivo instrumental visando harmonia doméstica? Também. E há casos em que alguém mexe no humor de um filho para ferir o ex-parceiro — uma triangulação que piora o afeto do alvo por vias indiretas. A mesma arquitetura, intenções opostas.

Escola  
Um aluno percebe a tensão da professora antes da prova. Ele sabe que falar “calma, vai dar certo” pode soar condescendente. Então faz outra coisa: puxa um colega ansioso para um exercício rápido de respiração e concentração; a professora nota a melhoria de clima e desarma um pouco. Rota indireta via terceiro, motivação cooperativa.

Trabalho  
Uma analista quer que o gerente aceite um plano. Há duas rotas: ela arma um “one-on-one” e tenta convencê-lo diretamente, ou decide primeiro engajar colegas-chave, melhorando a confiança e o humor deles, para que as reuniões subam de temperatura positiva. Há também o mau uso: um funcionário, ressentido, enfatiza injustiças numa roda, alimenta o mau humor do grupo e deixa a chefia sob pressão. E há o oportunismo político: animar o “funcionário do mês” em público para sinalizar ao diretor “olha como cuido do clima”, sem verdadeiro cuidado com o time.

Esportes  
Treinadores experientes não falam só com a equipe. Trabalham o capitão, o goleiro, o assistente. Em dias decisivos, às vezes o discurso mais transformador não sai do técnico, e sim do atleta que o grupo reconhece como bússola emocional. Regular via terceiro é reconhecer quem tem licença social para mexer no clima.

Relações amorosas  

No início de um namoro, gestos generosos na frente do parceiro — ajudar um estranho, elogiar discretamente um colega — influenciam como o parceiro se sente sobre você. O triângulo aqui é agente–terceiro–alvo, com efeito indireto e normalmente positivo. Já provocar ciúme ao ex exibindo fotos com amigos pode ser a versão tóxica dessa arquitetura.

Sociedade e política  
Infelizmente, a engenharia emocional via terceiros também está nas estratégias mais duras. Violência contra civis para pressionar governos explora uma cadeia afetiva onde o terceiro sofre para que o alvo mude de curso. Não há justificativa ética aqui; há, sim, uma estrutura emocional reconhecível que ajuda a entender por que certos atos, mesmo condenáveis, são escolhidos.

Se você gosta de método, dá para modelar essas redes. Em laboratório, tarefas de delegação avaliam motivações: o agente não pode falar com o alvo, só com um terceiro; o desenho manipula recompensas para distinguir altruísmo de egoísmo. No dia a dia, amostragem ecológica (check-ins breves pelo celular ao longo do dia) revela quando escolhemos a rota via terceiro, com quais custos e com que taxa de sucesso.

Tudo isso parece técnico, mas tem um propósito simples: descrever, prever e, quando preciso, intervir. Se mapeio que a rota via terceiro é sempre usada para evitar conversa difícil, posso treinar habilidade de diálogo direto. Se percebo que um supervisor vive terceirizando “pressão” para líderes de célula, cabe conversar sobre responsabilidade.

Como navegar esses triângulos sem escorregar para manipulação, abuso de poder ou covardia? Um conjunto curto de perguntas funciona como checklist:

Qual é a emoção-alvo? Defina em termos concretos: menos ansiedade? mais esperança? menos raiva?
    
Por que essa emoção e por quê agora? Se a justificativa é instrumental, seja explícito consigo mesmo.
    
Quem é o terceiro certo — e por quê? Ele tem vínculo, confiança e autonomia para dizer não?
    
Quais são os riscos para cada ponta do triângulo? Pense em efeitos colaterais: ciúme, exclusão, culpa.
    
Como saberei que é hora de parar? Defina sinais de suficiência e sinais de desgaste.

Em ambientes de liderança, um princípio ajuda: não terceirize dor que você mesmo não está disposto a suportar. Se a estratégia envolve pressionar alguém por vias indiretas, pergunte-se se você assumiria essa pressão de forma honesta, cara a cara. Se a resposta for não, é provável que você esteja apenas evitando responsabilidade.

Lá no início, eu disse que nem sempre o atalho para mudar uma emoção é “falar com quem sente”. Vale reforçar, agora por outro ângulo: em redes humanas, a credibilidade e a proximidade não são uniformes. A voz do capitão vale mais do que a do técnico em certas horas; o sorriso entre irmãos abre portas que sermões de pais não abrem; um colega respeitado acalma a equipe de um jeito que e-mails da gerência jamais conseguem. Reconhecer isso não é abdicar do diálogo direto; é escolher o canal certo para o objetivo certo, com responsabilidade.

Aplicando no dia a dia:

Famílias: se a conversa direta está travada, combine com quem a pessoa confia um gesto de cuidado observável. O alvo precisa “ver” a emoção do terceiro para sentir o efeito indireto. Evite usar filhos como mensageiros de recados conflituosos; crianças não são suportes de adultice.
    
Sala de aula: que tal formar “pares de apoio” para os minutos antes de provas? Alunos ajudam colegas a regular a ativação; docentes ganham um clima de base mais estável para começar.
    
Empresas: identifique pivôs emocionais — pessoas que modulam o humor coletivo. Treine essas pessoas em escuta, validação e feedback. Desaconselhe delegar bronca; prefira clareza direta e respeito.
    
Esportes: cultive rituais que passam pelo terceiro certo (o capitão, a veterana, o assistente). Rituais são atalhos emocionais que não dependem de discursos longos.
    
Você com você: antes de “mexer” com o clima via terceiros, pergunte se o que te move é cuidado ou conveniência. A resposta muda tudo.

Supor leitura perfeita de emoções:
vi um rosto neutro e chamei de “raiva”; atuei via terceiro e criei confusão. Vacina: perguntas curtas de checagem antes de agir.
    
Confundir cooperação com conluio: usar um terceiro para criar clima contra alguém corrói confiança. Vacina: mantenha intenção declarável — se você teria vergonha de revelar sua estratégia, ela provavelmente está errada.
    
Viciar na rota indireta:
sempre que há desconforto, você ergue um triângulo. Vacina: pratique conversas difíceis com tempo e regra de segurança (sem respostas imediatas, com opção de pausa).
    
Ignorar custo do provedor: quem regula o outro paga pedágio emocional. Vacina: rodízio de responsabilidades, pausas, supervisão, espaços de descarga afetiva.
    
Viver em sociedade é viver em redes de influência emocional. A REI mostra que não se trata só de “ajudar ou atrapalhar” sentimentos do outro; trata-se de desenhar caminhos por onde essas mudanças viajam. Há a rota direta, com sua honestidade e fricção; há as rotas via terceiros, com sua potência e suas tentações. Dominar esse mapa dá poder, mas um poder que pede cuidado: intenções claras, respeito às pessoas que compõem o triângulo, prontidão para parar quando a linha entre cuidado e manipulação começa a sumir.

Se você reparar, hoje mesmo verá esses triângulos em ação: um colega que anima o grupo para, de tabela, aliviar a chefia; um irmão que consola outro para acalmar um pai; um treinador que escolhe a atleta certa para acender o espírito do time. Diante disso, faça duas perguntas simples: qual emoção está em jogo? por qual caminho ela está viajando? Só de responder honestamente, você já começou a regular melhor.

 


Referências:

Niven, K., Totterdell, P., & Holman, D. (2009). A classification of controlled interpersonal affect regulation strategies. — Uma classificação de estratégias controladas de regulação interpessoal do afeto: propõe uma taxonomia de como as pessoas tentam mudar as emoções de outras (por exemplo, consolar, animar, provocar), diferenciando intenções, táticas e contextos, e discutindo efeitos sobre quem regula e sobre o alvo. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19653772/

Niven, K. (2017). The four key characteristics of interpersonal emotion regulation. — As quatro características-chave da regulação emocional interpessoal: sintetiza quatro propriedades centrais (agência, alvo, intenção e estratégia) para organizar pesquisas sobre como influenciamos emoções alheias e como medir esse processo com mais precisão. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28950980/

Nozaki, Y., & Mikolajczak, M. (2020). Extrinsic emotion regulation. — Regulação emocional extrínseca: revisão conceitual que define a regulação das emoções de outrem, mapeia benefícios e custos para quem regula e para o alvo, e discute quando e por que as pessoas escolhem intervenir no estado afetivo de outras. https://psycnet.apa.org/record/2020-03346-002

Netzer, L., Van Kleef, G. A., & Tamir, M. (2015). Interpersonal instrumental emotion regulation. — Regulação emocional instrumental interpessoal: examina situações em que mudamos emoções de outra pessoa para atingir metas práticas (por exemplo, desempenho, cooperação), mostrando quando isso é eficaz e os riscos éticos envolvidos. https://psycnet.apa.org/record/2015-10022-016

Overall, N. C., Fletcher, G. J., Simpson, J. A., & Sibley, C. G. (2009). Regulating partners in intimate relationships: The costs and benefits of different communication strategies. — Regular parceiros em relacionamentos íntimos: custos e benefícios de diferentes estratégias de comunicação: testa como táticas de “puxar para cima” ou “pressionar” o parceiro afetam satisfação, conflito e mudanças comportamentais ao longo do tempo. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19254108/

Campo, M., Sánchez, X., Ferrand, C., Rosnet, É., Friesen, A. P., & Lane, A. M. (2016). Interpersonal emotion regulation in team sport: Mechanisms and reasons to regulate teammates’ emotions examined. — Regulação emocional interpessoal no esporte de equipe: mecanismos e motivos para regular emoções de colegas: mapeia por que atletas tentam alterar o clima afetivo de companheiros (ex.: foco, confiança) e como fazem isso antes e durante competições. https://insight.cumbria.ac.uk/id/eprint/2050/1/Sanchez_InterpersonalEmotionRegulation.pdf

Cohen, N., & Arbel, R. (2020). On the benefits and costs of extrinsic emotion regulation to the provider: Toward a neurobehavioral model. — Sobre benefícios e custos da regulação emocional extrínseca para quem regula: rumo a um modelo neurocomportamental: propõe um quadro que integra recompensa/empatia e esforço/esgotamento, prevendo quando ajudar emocionalmente os outros energiza ou drena o provedor. https://psycnet.apa.org/record/2020-62451-002

Barclay, P. (2010). Altruism as a courtship display: Some effects of third-party generosity on audience perceptions. — Altruísmo como exibição de corte: efeitos da generosidade com terceiros na percepção da audiência: mostra que atos generosos diante de observadores elevam status e confiabilidade atribuídos ao agente, revelando uma via social de “sinalização” emocional. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19397845/

López-Pérez, B., Howells, L., & Gummerum, M. (2017). Cruel to be kind: Factors underlying altruistic efforts to worsen another person’s mood. — Cruel para ser gentil: fatores por trás de esforços altruístas para piorar o humor de alguém: demonstra quando pessoas, por cuidado, induzem sentimentos negativos de curto prazo (p. ex., culpa, preocupação) visando um bem maior para o alvo. https://pearl.plymouth.ac.uk/cgi/viewcontent.cgi?article=1779&context=psy-research

López-Pérez, B., Wilson, E., Dellaria, G., & Gummerum, M. (2016). Developmental differences in children’s interpersonal emotion regulation. — Diferenças desenvolvimentais na regulação emocional interpessoal de crianças: documenta como crianças de idades distintas tentam mudar emoções de colegas, e como compreensão emocional e linguagem preveem o repertório usado. https://psycnet.apa.org/record/2016-35457-001

Osterhaus, C., & Koerber, S. (2021). The Development of Advanced Theory of Mind in Middle Childhood: A longitudinal study from age 5 to 10 years. — O desenvolvimento da Teoria da Mente avançada na infância média: estudo longitudinal dos 5 aos 10 anos: traça a evolução de inferências de segunda ordem sobre crenças e intenções, base para raciocinar “o que A pensa que B sente”. https://srcd.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/cdev.13627

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Lee, J. Y. S., & Imuta, K. (2021). Lying and Theory of Mind: A Meta-Analysis. — Mentira e Teoria da Mente: uma meta-análise: sintetiza evidências de que avanços em Teoria da Mente estão ligados à capacidade de enganar e detectar enganos, indicando sofisticação social crescente. https://srcd.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/cdev.13535

Pons, F., Lawson, J., Harris, P. L., & De Rosnay, M. (2003). Individual differences in children’s emotion understanding: Effects of age and language. — Diferenças individuais no entendimento de emoções em crianças: efeitos da idade e da linguagem: mostra que crescimento em vocabulário emocional e maturação cognitiva melhoram a leitura e explicação de estados afetivos. https://psycnet.apa.org/record/2003-99730-006

Archer, J., & Coyne, S. M. (2005). An integrated review of indirect, relational, and social aggression. — Uma revisão integrada de agressão indireta, relacional e social: consolida evidências de formas não físicas de agressão (rumores, exclusão), discutindo mecanismos, gênero e implicações sociais. https://journals.sagepub.com/doi/10.1207/s15327957pspr0903_2?url_ver=Z39.88-2003&rfr_id=ori:rid:crossref.org&rfr_dat=cr_pub%20%200pubmed

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Leidner, R. (1999). Emotional labor in service work. — Trabalho emocional no setor de serviços: descreve como ocupações de atendimento demandam manejo sistemático de sentimentos/expressões, com consequências para bem-estar e controle organizacional. https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/000271629956100106

Lively, K. J. (2000). Reciprocal emotion management. — Gestão recíproca de emoções: explora como membros de equipes e supervisores regulam as emoções uns dos outros no trabalho, destacando trocas afetivas que sustentam coordenação e normas. https://psycnet.apa.org/record/2000-13742-002

Bedi, A. (2019). No Herd for Black Sheep: A Meta-Analytic Review of the Predictors and Outcomes of Workplace Ostracism. — Sem rebanho para a ovelha negra: meta-análise de preditores e desfechos do ostracismo no trabalho: aponta fatores que levam à exclusão social no ambiente laboral e os impactos sobre saúde, desempenho e rotatividade. https://iaap-journals.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/apps.12238

Apostolou, M. (2013). Do as We Wish: Parental Tactics of Mate Choice Manipulation. — Faça como queremos: táticas parentais de manipulação da escolha de parceiros: investiga estratégias pelas quais pais tentam influenciar, direta ou indiretamente, as escolhas afetivas dos filhos. https://psycnet.apa.org/record/2014-02049-003

Baker, A. J. L. (2005). The Long-Term Effects of Parental Alienation on Adult Children: A Qualitative Research Study. — Efeitos de longo prazo da alienação parental em filhos adultos: estudo qualitativo: documenta impactos duradouros de práticas de alienação nas relações e saúde psicológica dos filhos quando adultos. https://psycnet.apa.org/record/2005-07652-002

Barber, B. K., & Buehler, C. (1996). Family cohesion and enmeshment: Different constructs, different effects. — Coesão familiar e enredamento: construtos diferentes, efeitos diferentes: diferencia vínculos saudáveis de padrões de “fusão” prejudicial, relacionando cada um a desfechos de ajuste. https://psycnet.apa.org/record/1997-41406-013

Bachand, C. R. (2017). Bullying in Sports: the definition depends on who you ask. — Bullying no esporte: a definição depende de quem responde: discute como atletas, técnicos e gestores divergem na definição de bullying esportivo e o que isso implica para prevenção e intervenção. https://thesportjournal.org/article/bullying-in-sports-the-definition-depends-on-who-you-ask/

Niven, K., Macdonald, I. A., & Holman, D. (2012). You spin me right round: Cross-Relationship Variability in interpersonal emotion regulation. — Você me gira por completo: variabilidade entre relações na regulação emocional interpessoal: mostra que as pessoas mudam seu jeito de regular emoções de outros conforme o tipo de relação (parceiro, amigo, colega), com efeitos distintos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23060849/

Tamir, M. (2015). Why do people regulate their emotions? A taxonomy of motives in emotion regulation. — Por que as pessoas regulam suas emoções? Uma taxonomia de motivos: organiza motivos hedônicos, instrumentais e pró-sociais para regular emoções, lançando base para prever escolhas estratégicas. https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1088868315586325

Austin, E., & O’Donnell, M. (2013). Development and preliminary validation of a scale to assess managing the emotions of others. — Desenvolvimento e validação preliminar de uma escala para avaliar o gerenciamento das emoções de outros: apresenta o MEOS, instrumento para medir diferenças individuais na propensão a regular emoções alheias por táticas variadas. https://www.pure.ed.ac.uk/ws/portalfiles/portal/14842070/Development_and_preliminary_validation_of_a_scale_to_assess_managing_the_emotions_of_others.pdf

Reeck, C., Ames, D. R., & Ochsner, K. N. (2016). The Social Regulation of Emotion: An Integrative, Cross-Disciplinary Model. — A regulação social da emoção: um modelo integrativo e transdisciplinar: propõe um arcabouço que conecta processos individuais e sociais de regulação, mapeando alvos, canais e resultados. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26564248/

Crick, N. R., & Grotpeter, J. K. (1995). Relational Aggression, Gender, and Social-Psychological Adjustment. — Agressão relacional, gênero e ajustamento psicossocial: introduz o conceito de agressão relacional e associa padrões de exclusão/rumores a indicadores de ajuste em meninos e meninas. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/7789197/

Ganong, L. H., Coleman, M., Fine, M. A., & Martin, P. Y. (1999). Stepparents’ Affinity-Seeking and Affinity-Maintaining Strategies with Stepchildren. — Estratégias de busca e manutenção de afinidade de padrastos com enteados: descreve táticas que padrastos usam para construir vínculo e como o contexto familiar facilita ou dificulta esse processo. https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/019251399020003001

Ganor, B. (2004). Terrorism as a strategy of psychological warfare. — Terrorismo como estratégia de guerra psicológica: discute como violência contra terceiros busca coagir alvos políticos por meio de impacto emocional na população. https://psycnet.apa.org/record/2005-04703-004

 

Como os líderes se comportam

Lider
Ouça o artigo:

Por que alguns líderes ásperos parecem ídolos estratégicos enquanto outros soam como tiranos improváveis? Essa pergunta ressurge sempre que um gestor ergue a voz numa reunião ou dispara e-mails recheados de ultimatos. Não há resposta única, mas um recorte recente da psicologia social ajuda a mapear o terreno: nossa visão de mundo competitiva ou cooperativa colore cada julgamento que fazemos sobre autoridade, competência e, sobretudo, antagonismo.

Antagonismo, tecnicamente, descreve condutas coercitivas (chantagem, intimidação, ameaças veladas) voltadas a obter resultados instrumentais. Afabilidade, no polo oposto, abarca comportamentos calorosos, colaborativos, empáticos. Entre esses extremos há gradações, porém o debate que interessa emerge quando alguém demonstra frieza incisiva: seria essa dureza sinal de competência ou simples grosseria?

Aqui entra a competitive worldview, CWV (visão de mundo competitiva). Pesquisadores definem CWV como o conjunto estável de crenças que retrata a sociedade como “selva de rivalidades” na qual o mais forte leva vantagem. Quem pontua alto nessa métrica costuma esperar disputas renhidas por status e recursos; quem pontua baixo enxerga cooperação e benefício mútuo como trilhos predominantes.

Sete estudos independentes, envolvendo mais de dois mil participantes, cruzaram essas variáveis. Primeiro, voluntários classificavam o impacto provável de gestos agressivos típicos (“repreender publicamente”, “impor ultimatos”, “expor falhas alheias”) no êxito de um profissional. Indivíduos com CWV elevada julgaram tais atos menos prejudiciais e, às vezes, moderadamente úteis para “fazer as coisas acontecerem”. Já quem via o mundo como espaço cooperativo percebeu forte dano reputacional.

Em seguida, surgiram cenários fictícios: gerentes que interpelavam colegas ou subordinados. Em versões afáveis, o chefe sorria, reconhecia esforços, ponderava sugestões; nas versões antagonistas, interrompia, ironizava, ameaçava cortar verbas. A cada leitura, participantes estimavam duas dimensões do gestor: competência geral e eficácia como líder. A interação foi cristalina:

Quanto maior a CWV do avaliador, mais positivo o juízo sobre o chefe agressivo.

Quanto menor a CWV, mais negativo o juízo — e maior a admiração pelo chefe cordial.

Não é que o comportamento em si mude, o que varia é a moldura interpretativa. Quem espera uma arena de confronto tende a pressupor que bons estrategistas farão uso, quando preciso, de pressão aberta. Quem espera colaboração enxerga esse mesmo arrojo como incompetência social mascarada de força.

Pesquisadores mediram percepção de impacto (o quanto um ato ajuda ou atrapalha) antes de pedir notas sobre competência. Essa pista sugere um encadeamento: visão de mundo → atribuição de impacto → julgamento de capacidade. Em outras palavras, se acho que ameaçar colegas acelera resultados, naturalmente atribuo sagacidade a quem ameaça com desenvoltura.

Não faltam exemplos concretos. O caso de uma gerente de restaurante que proibiu faltas médicas sem laudo circulou na imprensa com reações opostas — louvor à disciplina, repúdio à insensibilidade. O estudo replicou essa clivagem: participantes descreviam a cena e depois avaliavam a gerente. As notas divergiram conforme o grau de CWV, replicando o padrão experimental.

Outro recorte curioso: quando convidados a lembrar CEOs de sucesso, indivíduos com CWV alta retro-inferiram que esses líderes foram agressivos na escalada profissional. A inferência é curiosa, quase uma racionalização retrospectiva: “se chegou ao topo, provavelmente bateu forte nos degraus anteriores”.

Resultados finais analisaram funcionários em atividade. Sob supervisores antagonistas, empregados com CWV alta relatavam motivação e satisfação razoáveis. Já colegas de CWV baixa acumulavam exaustão e desejo de migrar de trabalho. A mensagem implícita: culturas empresariais toleram — ou até promovem — chefias duras quando boa parte do quadro compartilha a lente competitiva.

Vale lembrar que teorias evolucionistas enxergam a competição como motor de seleção em recursos escassos. Talvez a CWV reflita variações individuais na expectativa de escassez. Quem cresceu em contextos onde oportunidades pareciam limitadas, possivelmente internalizou regras de “lutar ou minguar”. Por conseguinte, interpreta dureza como vigilância adaptativa, não como falha de empatia. Essa hipótese não invalida os dados; amplia o pano de fundo.

Voltemos ao ponto inicial e reformulemos: quando o antagonismo sinaliza perícia? Nem sempre. Os mesmos estudos revelam um “prêmio de afiliação” no agregado; líderes afáveis ainda costumam receber melhores notas médias. A CWV, porém, atua como regulador de tolerância: nos polos competitivos, o prêmio encolhe drasticamente.

Já notamos que a moldura competitiva dita juízos, mas fica fácil esquecer que ela também medeia autopercepções. Funcionários que creem na selva corporativa tendem a normalizar pequenos abusos que sofreram, atribuindo-os a “normas do jogo”. Essa naturalização prolonga ciclos de toxicidade organizacional, impedindo correções simples — feedbacks empáticos, treinamentos de comunicação, revisão de metas.

Os pesquisadores foram honestos sobre fronteiras do trabalho: amostras online estadunidenses predominam, dados comportamentais escasseiam, contextos extra-corporativos ficaram à margem. Há espaço para comparações interculturais — imaginemos culturas onde harmonia coletiva é bandeira nacional: a aversão a chefes rudes talvez dispare. Outra frente promissora: rastrear mudanças de CWV ao longo da carreira. Será que profissionais cínicos começaram idealistas e foram se adaptando, ou já ingressam convictos na “lei da selva”?

Surge, então, a pergunta final que cada leitor pode fazer a si mesmo: “Em que medida enxergo meu ambiente profissional como arena ou como comunidade?” Essa resposta silenciosa filtra, sem que percebamos, cada elogio ou reprovação lançada a quem lidera. Talvez aí resida o poder oculto da pesquisa: revelar que, antes de condenar ou ovacionar o gestor de voz áspera, vale ajustar as próprias lentes e checar se o vidro está, de fato, limpo — ou apenas moldado por antigas batalhas internas.

Sentir-se instigado por essa constatação pode ser o primeiro passo para uma cultura onde competência não precise mascarar-se de grosseria. Afinal, escolher nossas lentes pode ser tão importante quanto escolher nossos líderes.



Referência:

Savvy or savage? How worldviews shape appraisals of antagonistic leaders. - As teorias existentes apresentam uma abordagem mista sobre como as visões dos observadores sobre o antagonismo de uma pessoa-alvo se relacionam com suas percepções sobre a competência geral e a eficácia da liderança da pessoa-alvo. Argumentamos que, em vez de ser universal, a relação entre essas percepções varia de acordo com as visões de mundo idiossincráticas dos observadores. https://psycnet.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2Fpspa0000456


Rituais de banquete durante o Neolítico no sudoeste asiático

Neurobiologia do sono
Ouça o artigo:

Quando pensamos no surgimento da agricultura, é comum imaginar campos cultivados, sementes semeadas e animais domesticados por vizinhanças próximas. Mas e se eu dissesse que, já lá pelos idos de 9.600 a.C., pessoas cruzavam montanhas carregando presas inteiras de porcos‑selvagens para celebrar ritos coletivos? Pois foi exatamente isso que a combinação de técnicas microscópicas e geoquímicas revelou na Ásia, um sítio do Neolítico Inicial no Irã ocidental. O incrível esforço de transportar animais de áreas distantes não serviu apenas ao apetite: reforçou laços sociais, expressou crenças e, sem que percebêssemos, lançou as bases para a gestão de rebanhos milênios antes do advento das fazendas modernas.

É fácil supor que, num mundo pré‑agrícola, cada comunidade caçava em seu quintal, consumia ali mesmo e deixava os rastros no solo local. Mas o local contava outra história. Num edifício semicircular, provavelmente usado como espaço público, pesquisadores encontraram restos de dezenove porcos‑selvagens cuidadosamente empilhados num poço — cerca de 700 kg de carne. Para alimentar 350 a 1.200 adultos num único banquete (ou talvez armazenar parte da carne para consumo futuro), era preciso não só habilidade no abate e preparo (observe como o processo de salga ou desidratação exige controle de fluxo de ar, temperatura e umidade) mas, sobretudo, planejamento logístico: onde encontrar tantos animais e como trazê‑los até ali?

Eu tive algumas reflexões enquanto lia os detalhes do estudo, especialmente quando percebi que não se tratava de mero quantitativo: havia um componente simbólico, quase performático, na ação de reunir aqueles corpos. A arqueologia costuma enfatizar a subsistência, mas aqui ficamos diante de algo mais profundo. Qual era o significado de levar carne fresca — ou mesmo crânios, caso tivessem sido preservados — de porcos, espécies não‑domesticadas e raramente caçadas na região, para um sítio distante? Será que cada animal representava um voto de união entre grupos espalhados pelos vales e montanhas?

Para descobrir, os cientistas recorreram a duas ferramentas poderosas. Primeiro, a histologia dentária: ao fatiar molas de porcos em lâminas finíssimas (~50 µm) e examinar as linhas de crescimento do esmalte (os chamados lamináceos diários), determinaram quanto tempo levou para formar cada porção do dente (esse ritmo de extensão de esmalte, medido em micrômetros por dia, indica períodos de 6 a 12 meses de desenvolvimento). Em seguida, partiram para a geoquímica: usando microsonda de íons (SHRIMP‑SI), mediram variações semanais no fosfato dentário, que refletem a água ingerida (e, portanto, a estação do ano e a altitude de cada local). Paralelamente, com laser‑ablação e espectrometria de massas, mapearam as proporções, um marcador do tipo de rocha e solo onde o animal viveu.

Quatro dos cinco dentes analisados exibiam assinaturas isotópicas (tanto de oxigênio quanto de estrôncio) compatíveis com áreas situadas a dezenas de quilômetros de distância do local de origem. Um boi‑porco (batizado de ASB449 pelos pesquisadores) era ligeiramente mais “local”, mas os demais vieram de terras distintas, cada qual com perfil geoquímico próprio. Não havia uniformidade de procedência: os animais não faziam parte de um mesmo grupo familiar (somente um ninho de porcos solenóide seria caçado em massa ali perto). Ao contrário, cada espécime carregava histórias de nascimento em estações diferentes, alguns nascidos na primavera, outros no fim de verão, e de forrageamento em ecossistemas variados, como sugerem picos de bário (Ba) associados a hábitos alimentares ou a mudanças sazonais de pastagem.

Um detalhe me pegou de surpresa: para transportar porcos inteiros, mortos e eviscerados, seria preciso desbravar trilhas montanhosas com um peso considerável. Estimou‑se que, mesmo em terreno plano, percorrer 70 km a pé, a distância mínima até regiões com valores distintos, levaria ao menos um dia inteiro de caminhada. Em altitudes elevadas, o trajeto ficaria mais lento e exaustivo. As opções eram: caçadores viajando longe para abater e trazer as carcaças; grupos de caçadores distintos contribuindo com troféus; ou até pessoas consumindo carne em lugares remotos e depois levando só os crânios como oferenda ritual. Em qualquer cenário, havia um esforço monumental, quase hercúleo, envolvido.

Você pode se perguntar: “Por que tanto empenho em caçar um animal perigoso e inusitado, e não escolher uma presa mais comum, como cabras montesas ou cervos?” (pergunta retórica, mas relevante). A resposta talvez esteja no valor simbólico do porco‑selvagem: feroz, imprevisível, associado a territórios selvagens e, portanto, a forças da natureza. Ao integrar esses animais num banquete público, as comunidades não apenas supriam a fome; afirmavam poder, memória compartilhada e crenças sobre a conexão entre humanos, animais e paisagens. Cada osso colocado ali representava uma história de travessia, de aliança e de domínio sobre espaços distantes.

O caráter performático desses rituais, aliás, ecoa práticas etnográficas de sociedades caçadoras e agrícolas: em muitos grupos, caçar não é só coletar alimento, mas uma interação relacional com o animal, um diálogo que envolve respeito, oferendas (por vezes objetos cerimoniais colocados sobre o cadáver), rituais de desmembramento e devolução de ossos ao ambiente como gesto de reciprocidade. Não diferente, no Neolítico Inicial, “bater o ponto” numa celebração com porcos não se limitava ao paladar: era uma afirmação de redes sociais, alianças e visões de mundo.

E há, claro, todo um pano de fundo tecnológico: aplicar métodos histológicos a dentes de javali, afinar técnicas de microdrilling e análises in situ, construir mapas isotópicos de amplas regiões usando bancos de dados geológicos e plantas modernas, tudo isso para contar uma história que, a princípio, poderia parecer óbvia: “caçaram e comeram juntos”. Mas foi justamente ali, no detalhe dos isótopos e no formato de cada lâmina de esmalte, que emergiu a complexidade do gesto humano.

A pesquisa mostra que o Neolítico foi muito mais do que semear trigo e domesticar bode. Foi inventar maneiras de se conectar, com o outro, com o animal, com o território. Foi traduzir a paisagem em símbolos e carregá-los no corpo de um porco, a pé, por vales e montanhas, para celebrar, mim, um senso de pertencimento. Talvez seja esse o legado mais duradouro: a noção de que ritos de comunhão se constroem não apenas com pão e vinho, mas com o sacrifício de esforços físicos, histórias cruzadas e a crença de que atravessar distâncias aproxima tribos.


Referência:

Transport of animals underpinned ritual feasting at the onset of the Neolithic in southwestern Asia. https://www.nature.com/articles/s43247-025-02501-z

A beleza das borboletas

Ouça o artigo:

Trabalhando com o laboratório Patel do Marine Biological Laboratory da Universidade de Chicago, a artista e cineasta norte-americana Kristina Dutton criou uma série de filmes que destacam a extraordinária beleza e diversidade das asas de borboletas e mariposas, conhecidas cientificamente como Lepidoptera. Utilizando uma coleção impressionante de cerca de 50 mil espécimes, Dutton explora artisticamente os detalhes surpreendentes dessas asas, revelando aspectos visuais que normalmente escapam aos olhos humanos. Vale a pena ver ele.

Esse trabalho não é apenas uma expressão artística, mas também reflete uma importante conexão com estudos científicos recentes. Pesquisas têm demonstrado como as estruturas microscópicas das asas das borboletas desempenham funções muito além da estética. Por exemplo, as nanostruturas presentes nas asas são capazes de manipular a luz de maneiras específicas, produzindo cores vibrantes por interferência de luz, um fenômeno conhecido como coloração estrutural. Um artigo publicado na revista Science Advances por Wilts e colaboradores em 2017(1), detalha como essas nanostruturas podem gerar fenômenos ópticos como a iridescência nas asas das borboletas.

Outro estudo notável, divulgado na revista Nature Communications em 2020 por pesquisadores da Universidade Duke (Davis e colaboradores)(2), revela como algumas estruturas nanométricas ultra-negras são usadas pelas borboletas para absorver quase completamente a luz incidente, contribuindo para camuflagem e proteção contra predadores.

Essas descobertas científicas destacam a complexidade funcional dessas pequenas estruturas que, apesar do tamanho reduzido, desempenham papéis vitais na sobrevivência e evolução desses insetos.

Ao trazer esses detalhes científicos através de uma perspectiva artística, Dutton proporciona uma visão integrada sobre o universo das Lepidoptera. Ela combina beleza visual com ciência criando uma narrativa envolvente que expande o entendimento e a apreciação das maravilhas da natureza que frequentemente permanecem ocultas aos nossos olhos.



Referências:

1 - Butterfly gyroid nanostructures as a time-frozen glimpse of intracellular membrane development. Autores: Bodo D. Wilts, Benjamin Apeleo Zubiri, Michael A. Klatt, Benjamin Butz, Michael G. Fischer, Stephen T. Kelly, Erdmann Spiecker, Ullrich Steiner, Gerd E. Schröder-Turk. Este estudo revelou a presença de estruturas nanoscópicas chamadas giroides nas escamas das asas da borboleta Thecla opisena. Essas estruturas tridimensionais altamente organizadas são responsáveis por cores estruturais específicas e oferecem uma visão congelada do desenvolvimento de membranas intracelulares. https://www.science.org/doi/full/10.1126/sciadv.1603119

2 - Diverse nanostructures underlie thin ultra-black scales in butterflies, Autores: Alexander L. Davis, H. Frederik Nijhout, Sönke Johnsen. Este estudo examinou uma variedade de espécies de borboletas para entender como elas produzem colorações ultra-negras. Utilizando microscopia eletrônica de varredura e modelagem óptica, os pesquisadores descobriram que diferentes nanostruturas, como trabéculas expandidas e cristas, reduzem significativamente a refletância da luz, resultando em uma aparência extremamente negra. https://www.nature.com/articles/s41467-020-15033-1




Comportamento do cérebro e mudança

Cérebro, evolução, comportamento

Ouça o artigo:

O ser humano é, em muitos aspectos, imprevisível. Sua jornada pela vida pode ser alterada por detalhes que escapam à percepção. Tudo é um conjunto de fatores que pode influenciar ele. Desde o nascimento, não emerge como uma tábua em branco, mas sim com sinais iniciais de comportamento que refletem padrões inscritos em seu código genético. Isso é algo que desperta curiosidade e fascínio ao mesmo tempo. Basta observar organismos simples, como bactérias ou vírus, que seguem comportamentos fixos, orientados pela lógica da sobrevivência e da reprodução. No ser humano, entretanto, há um salto de complexidade. Ele pensa, elabora raciocínios, cria estruturas simbólicas, transforma o instinto em linguagem e cultura. Seu cérebro não apenas responde ao ambiente, ele antecipa, projeta e reconstrói. Essa capacidade de abstração e adaptação é uma das razões pelas quais conseguiu dominar o planeta.

Os estudos da psicologia comportamental ajudaram a clarear o entendimento sobre como esse comportamento é moldado com o tempo. B. F. Skinner, destacou o papel do ambiente e do reforço nas escolhas e reações de um indivíduo. O comportamento, segundo esse olhar, é consequência direta das consequências que ele produz. Um ato recompensado tende a se repetir. Um ato punido ou ignorado tende a desaparecer. Mas isso não quer dizer que o ser humano seja um robô condicionado. Ao contrário, o ser humano é moldado por camadas que se entrelaçam: genética, ambiente, memória, cultura, afetos e história pessoal. É justamente esse cruzamento de forças que o torna tão fascinante.

O cérebro humano, diferente de qualquer outro órgão, não apenas responde ao mundo externo, ele o antecipa, simula, questiona e até o nega. Essa habilidade de criar realidades internas, de imaginar possibilidades, de desenvolver moral, arte e ciência, fez com que o Homo sapiens se destacasse entre todas as espécies. A plasticidade cerebral, essa capacidade de se adaptar, é um dos grandes segredos dessa dominância. A cada experiência, o cérebro literalmente se transforma, conectando novos neurônios, fortalecendo circuitos, apagando caminhos pouco utilizados. Essa maleabilidade, documentada por centenas de pesquisas em neurociência comportamental, é o que possibilita mudanças profundas em nossas atitudes, mesmo diante de padrões antigos e arraigados.

Há algo de profundamente inquietante em perceber como detalhes do ambiente podem alterar estados emocionais, decisões e percepções. Uma simples mudança na temperatura da sala, um tom diferente de voz, uma memória evocada de forma inesperada já pode mudar todo o percurso do pensamento de alguém. Isso não é misticismo, é o que os estudos mais recentes sobre processamento inconsciente têm demonstrado com precisão. O ser humano está sempre sendo atravessada por informações que escapam ao controle consciente. É como se estivéssemos numa estrada, mas com várias mãos invisíveis ajustando a direção do volante sem que se perceba.

O comportamento de reprodução e sobrevivência observado em vírus, bactérias e outros organismos simples, de certa forma, também habita o ser humano. Mas nele, esse impulso primitivo é temperado por uma camada densa de significados. O desejo de sobrevivência pode se transformar em arte, em ciência, em religião. O impulso reprodutivo pode dar origem a famílias, narrativas, mitologias inteiras. Esse é um ponto fundamental que diferencia os seres humanos: sua capacidade de simbolizar, de transformar pulsões biológicas em construções culturais complexas. Como mostra o estudo publicado na PLOS(1), o cérebro humano é equipado com redes altamente desenvolvidas para processar símbolos, linguagem e abstrações, algo praticamente inexistente em outras espécies.

Outra pesquisa interessante, publicada na Frontiers in Human Neuroscience(2), mostra como o comportamento humano não é apenas influenciado por fatores genéticos ou sociais isoladamente, mas por uma dança contínua entre predisposição e aprendizado. Essa interação dinâmica ajuda a entender porque pessoas com histórias semelhantes escolhem caminhos tão distintos. A mesma experiência pode gerar resultados opostos dependendo do estado mental, do contexto e da estrutura emocional de quem a vive.

Talvez seja por isso que muitas vezes se observa seres humanos agindo contra seus próprios interesses conscientes. O cérebro está em guerra interna, a parte mais racional e lógica tenta tomar o controle, enquanto camadas mais profundas, conectadas ao medo, ao desejo e à memória afetiva, puxam para outros lados. A psicologia comportamental explica parte disso mostrando como comportamentos podem ser reforçados por recompensas que nem sempre são boas a longo prazo. Comer algo por impulso, explodir em raiva, sabotar um projeto importante, tudo isso pode ser resultado de padrões aprendidos e reforçados ao longo dos anos, mesmo que gerem sofrimento depois.

Mas o que talvez mais impressione é perceber que o cérebro é capaz de reprogramar seus próprios circuitos ao longo da vida. A neuroplasticidade, hoje amplamente reconhecida e respaldada por estudos como o publicado pela Nature(3), demonstra que, por meio da prática contínua, do esforço deliberado e da intenção clara, é possível provocar alterações estruturais em regiões cerebrais associadas à persistência e à autorregulação. Essas mudanças não são apenas funcionais, mas envolvem uma reorganização profunda que pode tocar inclusive aspectos do comportamento e da personalidade.

A imprevisibilidade do ser humano talvez não esteja no caos, mas na complexidade. Ele não é imprevisível por ser irracional, mas por ser influenciado por tantas camadas que se torna quase impossível prever qual delas irá se manifestar em cada situação. O ambiente influencia profundamente a expressão de emoções. Pensar sobre tudo isso deixa uma sensação estranha. Há uma ilusão de controle que frequentemente é desmontada quando se observa com mais calma como se forma o comportamento. Cada decisão tomada, cada gesto e cada reação carrega consigo histórias anteriores, traços herdados e impulsos que nem sempre passam pela luz da razão. Mas isso não significa que se está condenado ao determinismo. Significa apenas que a consciência é um processo mais profundo do que parece.

Os velhos debates entre natureza e cultura, instinto e aprendizado, ainda são válidos, mas já não se apresentam como opostos excludentes. Eles se entrelaçam, se complementam, se corrigem mutuamente. Ninguém nasce um ser pronto. Mas também ninguém nasce vazio. Há direções, há inclinações, há sementes que esperam o solo certo para brotar. E é nesse encontro entre o biológico e o simbólico que o ser humano se torna o que é. Capaz de construir pontes e destruir cidades, de criar beleza e praticar crueldades, de repetir padrões antigos e, com esforço, quebrá-los.


Referências:

 

1 - The Human Connectome: A Structural Description of the Human Brain - Este estudo discute como as redes de conexões do cérebro humano (o chamado connectome) são organizadas de maneira complexa, oferecendo uma base estrutural para funções cognitivas superiores, como linguagem, simbolização e abstração. Ele apresenta dados e teorias que reforçam exatamente a ideia de que o cérebro humano possui uma arquitetura diferenciada em relação a outras espécies, sendo especializado em transformar informação em representações simbólicas — como ocorre com linguagem, arte, lógica e cultura. https://journals.plos.org/ploscompbiol/article?id=10.1371/journal.pcbi.0010042

2 - Superior Pattern Processing is the Essence of the Evolved Human Brain - Este artigo argumenta que o que diferencia o cérebro humano é sua capacidade superior de processar padrões complexos. Essa habilidade permite a construção de estruturas cognitivas como linguagem, música, matemática e crenças abstratas. O artigo enfatiza a coevolução entre predisposição genética e aprendizado como chave para entender o comportamento humano https://www.frontiersin.org/journals/neuroscience/articles/10.3389/fnins.2014.00265/full

3 - Plastic frontal pole cortex structure related to individual persistence in goal-directed behavior - Este estudo investigou como a persistência em comportamentos orientados por objetivos está relacionada a mudanças estruturais no córtex do polo frontal (FPC). Os pesquisadores descobriram que indivíduos que demonstraram maior persistência em tarefas cognitivas, de linguagem e motoras apresentaram alterações neuroplásticas significativas no FPC após o treinamento. https://www.nature.com/articles/s42003-020-0930-4

Um pouco sobre Guerras Híbridas

 


 

Ouça o artigo:

Você já ouviu falar em "conflitos híbridos" ou "guerra da informação"? Parece coisa de filme de espionagem e ficção científica, não é? Mas acredite, isso está sendo uma realidade e está acontecendo em nossa sociedade. Vamos analisar esse tema e entender o que está acontecendo em nossa sociedade.

Os conflitos híbridos são o tipo de guerra moderna que mistura várias formas de confronto, tanto militar quanto não militar. Com o desenvolvimento de nossa tecnologia, e o surgimento da computação, as guerras se tornaram algo diferente, não é mais direta em um campo de batalha e sim na base da informação. Hoje, ela envolve desde ciberataques, até propaganda na mídia social.  Vamos imaginar a situação: além dos tanques e soldados, temos hackers invadindo sistemas e infraestrutura de governos, fake news espalhando desinformação e até empresas sendo usadas como ferramenta de influência. É um tipo de grande tabuleiro de xadrez, onde cada peça tem um importante papel e o jogo é muito mais complexo do que se imagina. Parece teoria da conspiração? Sim, mas é a realidade que está acontecendo.

O termo “hibridismo” não é novo, mas ganhou um novo sentido nos últimos anos. Em tempos antigos a guerra era no campo de batalha, era confronto direito, ou era “guerra” ou “paz". Agora com toda a tecnologia, e globalização, a linha entre esses dois estados ficou bem mais borrada. Esse conceito de ” guerras híbridas" é uma resposta rápida a esse processo de guerras modernas.

Agora, vamos falar das chamadas "revoluções coloridas". Esse termo é usado para descrever uma série de protestos que ocorreram em países da antiga União Soviética, como a Revolução Laranja na Ucrânia. Esses movimentos foram vistos pela Rússia como uma forma de guerra híbrida, onde a subversão política e os protestos populares se misturam com táticas militares encobertas. Para os russos, essas revoluções são um exemplo clássico de como o Ocidente, especialmente os EUA, utiliza essas táticas híbridas para desestabilizar governos que não são seus aliados. Eles veem isso como uma ameaça direta e um novo tipo de guerra que vai além dos métodos tradicionais.

Falando na Rússia, eles têm uma abordagem bem única sobre tudo isso. O pensamento militar russo é muito influenciado pela experiência soviética. Eles desenvolveram uma doutrina que combina métodos militares e não militares para alcançar objetivos políticos e militares sem recorrer à guerra aberta. A Rússia tem usado essas táticas de forma bem eficaz, como vimos na anexação da Crimeia e nos conflitos no leste da Ucrânia. Usando uma mistura de forças regulares e irregulares, propaganda e ciberataques, eles conseguiram atingir seus objetivos sem desencadear uma guerra total.

No mundo de hoje, a guerra da informação é uma parte importante dos conflitos híbridos. É tudo sobre controlar a narrativa e influenciar corações e mentes. Com a internet e as mídias sociais, a manipulação de informações se tornou uma ferramenta poderosa e perigosa. Indo para os EUA, podemos ver eles usando todo o seu potencial informacional para influenciar a opinião pública mundial sobre a Rússia no conflito da Rússia X Ucrânia. Várias empresas de mídia e propaganda, diferentes narrativas a fim de influenciar tanto a opinião pública de fora ou de dentro da Rússia.

Então, meu caro leitor, entender os conflitos híbridos e a guerra da informação é essencial para compreendermos a dinâmica do mundo atual. Não é mais apenas sobre quem tem o maior exército ou as melhores armas, mas sobre quem pode controlar a narrativa e influenciar as mentes das pessoas. Vivemos em uma Era onde a informação é poder, e saber como ela é usada pode nos ajudar a navegar melhor por esse cenário complicado.