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Como a água melhora seu dia

Água
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Há uma ideia que parece óbvia e, por isso mesmo, muita gente passa batido: quando alguém troca uma bebida açucarada por água, não está apenas “cortando açúcar”. Está mexendo em uma peça central do quebra-cabeça do apetite, do balanço energético e até do comportamento alimentar. É um detalhe de rotina — um copo no almoço, outro no meio da tarde — que reorganiza o dia por dentro. Vale a pena destrinchar esse mecanismo com calma, sem jargão desnecessário, mas com rigor.

Quero começar pela pergunta que costuma surgir primeiro: um copo faz diferença real ou é só moral da história? Em nutrição, os efeitos se acumulam em silenciosas somas diárias. Uma lata de 350 mL de refrigerante comum entrega algo em torno de 140 a 150 kcal, praticamente sem fibras, sem proteínas e sem gorduras saciantes. É energia “desancorada”, como alguns pesquisadores descrevem, porque chega rápida, em forma líquida, e não conversa direito com os sensores mecânicos e químicos que sinalizam saciedade no estômago e no intestino. Água, por sua vez, zera esse pacote calórico e, ainda por cima, ocupa volume que ajuda a reduzir o ritmo da refeição seguinte. No curto prazo, isso parece pouco. Em semanas, muda a curva.

Quando falamos de saciedade (a sensação de estar satisfeito) e apetite (o impulso de buscar comida), bebidas açucaradas acabam jogando num campo meio ingrato. Elas elevam a glicose rapidamente, provocam uma resposta de insulina, esfriam por um tempo a fome, mas não entregam os sinais mecânicos de “chega” que mastigar e deglutir um alimento sólido costuma gerar. Em linguagem simples: o corpo “marca um gol contra”. Bebe calorias, não percebe direito, e a contabilidade do dia fica bagunçada.

Água funciona diferente. Por não ter calorias, não aciona essa cascata glicose-insulina, e por ocupar espaço, ativa receptores de distensão gástrica que mandam recados para o hipotálamo, aquela central de comando onde apetite e gasto energético se negociam o tempo todo. É por isso que tomar um copo de água 15 a 30 minutos antes da refeição tende a suavizar a fome e a baixar o tamanho da porção que você naturalmente serviria. Não é truque mágico; é fisiologia aplicada.

Um ponto espinhoso entra aqui. Pode trocar bebida açucarada por diet ou zero? Muita gente consegue resultados positivos com essa estratégia, principalmente no começo. Em termos de calorias, a troca derruba a conta na mesma hora. Só que há dois detalhes para lembrar. Primeiro: o paladar segue educado para a sensação de muito doce, o que pode atrapalhar a reeducação do gosto nas refeições. Segundo: estudos comparando diretamente grupos “água” versus “diet” em programas de perda de peso mostram cenários mistos. Em alguns, quem bebeu versões adoçadas não calóricas perdeu peso até um pouco melhor; em outros, a água puxou junto escolhas alimentares mais sustentáveis, como aumento de frutas e hortaliças e melhora de marcadores metabólicos. Moral aqui: água é sempre uma aposta segura. Bebida diet pode ser um degrau útil, especialmente na transição, mas olhar o conjunto do prato continua decisivo.

Vamos fazer uma conta simples, do tipo que cabe no guardanapo. Se um copo de 240 mL de bebida açucarada carrega ~100 kcal e a pessoa troca esse copo por água todos os dias, são 700 kcal a menos por semana. Em um mês, cerca de 3.000 kcal. Num semestre, algo na casa de 18.000 a 20.000 kcal. O corpo não lê matemática como uma máquina — ele compensa, ajusta fome e gasto —, mas reduzir a pressão calórica líquida no longo prazo costuma aparar aquela tendência de ganho lento e contínuo de peso que tanta gente observa sem entender bem de onde veio.

O impacto relativo é maior justamente em quem “só” toma um copo por dia. Paradoxal? Nem tanto. Quem bebe um copo por dia, em geral, tem o resto das bebidas dentro de uma faixa aceitável. Ao tirar esse único copo, a proporção de energia que vem das bebidas cai para uma zona considerada saudável. Em quem bebe duas, três porções ou mais, a troca de apenas uma unidade ajuda, mas ainda fica faltando empurrar o padrão um degrau acima. É aquele caso clássico de “o primeiro passo dá o maior salto”.

Trocar por água tem benefícios fora da balança. Hidratação adequada sustenta desempenho cognitivo e físico, regula temperatura, favorece volume plasmático e facilita o trabalho de rins e intestino. Pessoas que bebem água de forma consistente tendem a relatar menos dores de cabeça, menos fadiga ao fim do dia e um humor mais estável. Às vezes, aquilo que a pessoa interpreta como “fome” às 17h é um corpo pedindo água e pausa.

“Preciso beber quantos litros?” Muda com clima, atividade física, dieta, medicamentos. Sinais simples ajudam: cor da urina (clara, tipo palha, em boa parte do dia), sede controlada, boca sem secura persistente. E uma dica prática: distribua água junto de rotinas fixas, acordar, meio da manhã, almoço, meio da tarde, jantar. Garrafa à vista vira hábito sem esforço heroico.

Existe uma dimensão psicológica discreta, mas muito valiosa. A decisão de pegar água no lugar do refrigerante treina agência: a sensação de que você governa o próprio ambiente alimentar. Isso costuma vazar para outras microdecisões, como servir menos molho açucarado em saladas, reduzir açúcar do café ao longo das semanas, ou até abandonar o hábito de suco no café da manhã porque a fruta inteira passou a satisfazer.

Há também um efeito de ritmo. Beber água faz você pausar e respirar, literalmente. Em refeições, o simples ritual de intercalar garfadas com goles lentos diminui a taxa de ingestão, tempo suficiente para os sinais de saciedade chegarem ao córtex e organizarem a resposta de “acho que já deu”. Quem come muito rápido vive em atraso metabólico: quando a mensagem de saciedade chega, já passou do ponto.

“E se eu só trocar aos finais de semana?” Não é tudo ou nada. Se as bebidas açucaradas entram principalmente em momentos sociais, pizza com amigos, churrasco, cinema, programe trocas nos dias úteis. Segunda a sexta com água, sábado com uma latinha, por exemplo. O saldo ainda tende a ser muito positivo. E existe uma saída intermediária que funciona bem: água com gás com uma rodela de limão. É festiva, tem crocância sensorial pela carbonatação e afasta aquele reflexo automático de pedir “o de sempre”.

Suco 100% fruta tem aura de saúde, e sim, é melhor que um refrigerante convencional em vários aspectos, mas também pode concentrar açúcar livre em grande volume. Para quem busca perder peso ou estabilizar a curva, vale priorizar a fruta inteira no dia a dia e deixar o suco para momentos pontuais. Segundo, chás e cafés prontos. A prateleira explodiu de opções “geladas”, “latte”, “mocca” e afins. Leia rótulos. Muitos desses produtos são, na prática, sobremesas líquidas com branding de cafeteria.

É importante reconhecer que duas pessoas podem reagir de maneiras distintas à mesma intervenção. Quem tem um padrão alimentar muito centrado em amidos refinados e lanches ultraprocessados pode sentir fome aumentada ao cortar as calorias líquidas se não ajustar o prato principal. Nesse cenário, acompanhe a troca com reforço proteico e fibra: um almoço com feijão, arroz integral e uma porção generosa de salada; um lanche com iogurte natural e frutas oleaginosas. A água abre espaço para o corpo pedir comida de verdade. Se esse espaço é preenchido com qualidade, a saciedade se mantém.

Aqui retomo o ponto que destaquei antes, porque ele vale ouro: o primeiro copo trocado tem um efeito desproporcionalmente positivo quando o restante do padrão de bebidas está razoável. Isso significa que a intervenção mais eficaz possível, para muita gente, pode ser a menor em termos de esforço: escolher água naquele único momento do dia em que o açúcar líquido virou costume por inércia.

“Tudo isso por causa de bebidas?” Sim. O motivo é que calorias líquidas têm pouca barganha fisiológica. Calorias líquidas quase não negociam saciedade com o corpo porque escapam de três freios naturais: o mecânico, o químico e o hormonal. Sólidos distendem o estômago por mais tempo e mandam sinais via nervo vago; nutrientes “de verdade” (proteínas, gorduras e fibras) desaceleram o esvaziamento gástrico e chegam ao intestino em ritmo que mantém a conversa metabólica; e, nesse caminho, disparam hormônios que dizem “já está bom”. Aqui entram o GLP-1 (peptídeo semelhante ao glucagon-1, produzido por células L no intestino), que aumenta a saciedade, retarda o esvaziamento gástrico e potencializa a insulina após comer; o PYY (peptídeo YY, também de células L), que sobe no pós-prandial e reduz a fome agindo no cérebro e no eixo vago-intestinal; e a CCK (colecistocinina, liberada por células I no duodeno/jejuno quando detecta gorduras e proteínas), que contrai a vesícula, estimula enzimas pancreáticas e faz o estômago ir mais devagar. Não é demonização do doce no copo, é reconhecer que ele é um péssimo candidato para “preencher calorias do dia”; se for para comer calorias que contam, melhor que venham do prato, com mastigação, volume e nutrientes que convoquem esses hormônios para a conversa.

Existe um conceito chamado densidade energética (quantas calorias por grama de alimento). Alimentos com baixa densidade energética — verduras, legumes, sopas ralas — permitem que você coma volumes grandes com menos energia. Bebidas açucaradas são o oposto: densidade energética alta, saciedade baixa. Água, por definição, zera a equação.

Muitos estudos usam modelagem para estimar o que aconteceria com peso corporal e risco cardiometabólico se certas trocas se tornassem hábito. A ideia é cruzar consumo típico, valores calóricos e respostas observadas em ensaios clínicos, projetando efeitos para populações maiores. Esse tipo de exercício tem limites, gente não é planilha, cada um compensa de um jeito, mas é útil para pensar tendências. A tendência que aparece de forma consistente é clara: menos açúcar líquido, mais água, menor pressão calórica total, melhora no padrão de bebidas, e uma população com menos pessoas escorregando silenciosamente para a faixa de obesidade com o passar dos anos.

Se você gosta de métricas, uma forma simples de monitorar em casa é olhar a porcentagem de energia que vem de bebidas. Sem precisar calcular tudo: pergunte a si mesmo, em um dia típico, quantas bebidas com calorias entram? Se a resposta é “uma no almoço”, trocar por água já aproxima você de um patamar considerado adequado. Se a resposta é “três ou quatro ao longo do dia”, dá para começar tirando uma, depois duas, e gradualmente reconstruir o padrão.

“Água tem que ser sem graça?” Nem um pouco. Variação ajuda a sustentar hábito. Algumas ideias que funcionam bem:

Água com gás com rodelas de cítricos ou pedacinhos de pepino.

Infusões frias: hortelã, capim-cidreira, hibisco. Faça uma jarra e deixe na geladeira.

Gelo aromatizado: congele água com folhas de manjericão, lascas de gengibre, frutas em cubos.

Temperatura: no calor, gelada; em dias frios, água morna pode até relaxar a musculatura do esôfago e descer melhor.

O objetivo não é transformar água em sobremesa, e sim dar um toque sensorial que torne a escolha automática e prazerosa.

Crianças e adolescentes: "um parêntese necessário". O paladar aprende cedo. Em casas onde refrigerante “só no fim de semana”, a curva de preferência por doces no copo tende a vir mais comportada. Se o orçamento permitir, invista em garrafinhas bonitas para escola e atividades, e trate água como padrão, não como castigo. Uma regra simpática que vejo famílias adotando: “bebida doce é evento”, não rotina. Vale inclusive para sucos. A criança cresce sabendo que o normal é água, e que dizer “sim” a um refrigerante no aniversário do amigo não muda quem ela é.

E quem pratica atividade física? Durante treinos curtos a moderados, água atende muito bem. Bebidas esportivas com açúcar e eletrólitos fazem sentido em sessões longas, intensas, em calor forte ou para provas. Fora desses contextos, viram mais uma fonte silenciosa de açúcar na rotina. Uma alternativa inteligente para quem treina regularmente é ajustar o prato (mais carboidrato complexo no pré-treino, uma fonte de proteína no pós) e manter água no squeeze. Para pessoas muito suadas ou em ambientes muito quentes, reidratar com um pouco de sal na comida já repõe sódio de maneira suficiente.

“Troquei e me senti estranho”: o que observar nas primeiras semanas. Algumas pessoas relatam, nos primeiros dias de troca, uma espécie de “vazio” no meio da tarde, um incômodo na boca que não é bem sede nem fome. Faz sentido: você retirou um estímulo doce frequente. O paladar e o circuito de recompensa no cérebro levam um tempo para recalibrar. Duas estratégias ajudam:

Planejar substitutos: chá gelado sem açúcar, água com gás, café curto. Algo que ocupe a mão e a boca.

Ancorar com proteína e fibra: um punhado de castanhas, iogurte natural, fruta com casca. O corpo entende que não foi “punido”; foi alimentado de verdade.

Se houver dor de cabeça leve nos primeiros dias, aumente água de manhã e veja se não está acumulando jejum longo sem querer. Em geral, o corpo estabiliza rápido.

Não dá para fingir que tudo depende apenas da decisão da pessoa no caixa. Ambiente alimentar influencia enormemente. Preço de refrigerante versus água, disponibilidade de bebedouros, campanhas que glamurizam o consumo, marketing voltado a adolescentes — tudo isso pesa. Ainda assim, existe uma margem de ação individual muito poderosa. Quando alguém em casa passa a comprar fardo de água mineral ou adota filtro e enche garrafas, a família toda bebe mais água. Escolas com bebedouros visíveis e limpos fazem crianças beberem mais água. Restaurantes que perguntam “posso trazer água para a mesa?” já inclinam a noite para o lado certo.

“Mas eu gosto muito de refrigerante…” Ninguém precisa de identidade de ferro. Dá para gostar e reservar. Uma boa regra é delimitar ocasiões. Se o refrigerante está amarrado a pizza de sexta, mantenha esse afeto e ajuste o resto da semana. Muitas vezes, quando a pessoa desata o nó do consumo automático diário, o prazer daquele copo “especial” até aumenta.

Repare como a troca de uma única bebida reorganiza três camadas ao mesmo tempo:

Biológica: menos energia líquida de baixa saciedade, melhor sinalização de estômago e intestino, hidratação mais estável.

Comportamental: micro-decisões positivas em cascata, ritmo de refeição mais calmo, escolha padrão que facilita a próxima escolha.

Ambiental:
geladeira e mochila abastecidas de água, garrafa na mesa, menos exposição ao doce por inércia.

Quando essas camadas se alinham, o efeito “pareceu pouco” vira “caramba, eu emagreci sem sofrer” ou “parei de ter aquela fome doida às 5 da tarde”. Parece menor que mudanças grandiosas de dieta, mas altera a lógica do dia de um jeito que se paga.

Nem toda estratégia de saúde precisa ser épica para ser transformadora. Trocar um copo de bebida açucarada por água tem cara de gesto banal. Na prática, mexe com circuitos de apetite, com o jeito que você mastiga, com o ritmo da tarde e, aos poucos, com a balança e os exames. Não exige aplicativos, não pede balança de cozinha, não depende de suplementos. Pede só atenção ao que se tornou automático.

Se você chegou até aqui se perguntando “por onde começo?”, comece pelo copo mais fácil de trocar. O do almoço, talvez. Ou o do meio da tarde. Tome água com curiosidade, como quem testa uma hipótese sobre o próprio corpo. Repare no que muda em uma semana, depois em um mês. Você não precisa ganhar uma guerra cultural para sentir na pele que um hábito minúsculo reposiciona seu dia.


Referências:

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Vitamina B12 e deficiência mental

Vitamina B12
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Certa vez li um caso de um senhor de 72 anos que chegou confuso em um plantão médico noturno, relatando vozes distantes e um cansaço que não cabia num diagnóstico rápido de insônia. O hemograma não gritava anemia, o eletro não mostrava isquemia, mas algo naquele olhar vago, um vago que oscilava entre apatia e agitação, despertou algumas suspeitas nos médicos que poderia ser um problema de bioquímica. Um simples teste sérico confirmou: níveis de cobalamina lá embaixo. Três doses intramusculares depois, ele começou a recuperar frases inteiras, reconhecer a própria filha, lembrar o caminho de casa. Essa virada, quase cinematográfica, me faz até hoje perguntar: por que um micronutriente tão discreto consegue desconstruir, e reconstruir, os pilares da cognição?

Antes de mergulhar na fisiopatologia, convém posicionar o leitor em duas definições que frequentemente se misturam no linguajar cotidiano. Delirium (estado confusional agudo caracterizado por flutuação da consciência, desorientação e pensamento desorganizado) é diferente de demência (comprometimento cognitivo crônico, progressivo, sem alteração marcante do nível de consciência). Essa distinção não é mero preciosismo semântico; ela muda a direção da terapia e o prognóstico. A deficiência de vitamina B₁₂ costuma embaralhar essa fronteira ao provocar sintomas que lembram demência numa fase inicial, mas que, sob olhar atento, apresentam a volatilidade típica do delirium. O detalhe importante: delirium é potencialmente reversível, demência raramente o é.

Voltemos cem anos no tempo. Entre as décadas de 1910 e 1930, vários relatos de “languidez mental” foram atribuídos a uma doença então fatal: a anemia perniciosa. Sem exames laboratoriais precisos, médicos descreviam quadros que iam de irritabilidade branda a surtos psicóticos dignos de internação. Tratamentos rudimentares, como extratos de fígado, às vezes devolviam lucidez, provocando espanto nos hospitais. Naquela época, não se falava em cobalamina — falava-se em “fator antianêmico” — mas já se intuía que algo no metabolismo sanguíneo dialogava com a psique.

Décadas depois, quando a vitamina B₁₂ foi isolada e sua estrutura elucubrada, perceberam-se dois caminhos metabólicos críticos. O primeiro envolve a reciclagem de homocisteína em metionina, essencial para a produção de S-adenosil-metionina (molécula doadora de grupos metil que participa da metilação de DNA e neurotransmissores). Falhas nessa via alteram a síntese de monoaminas como serotonina e dopamina, duas interlocutoras diretas do humor. O segundo caminho diz respeito à conversão de metilmalonil-CoA em succinil-CoA, etapa importante para a manutenção da bainha de mielina. Quando o processo emperra, sobram ácidos orgânicos neurotóxicos e faltam blocos para a reparação das fibras nervosas. Resultado: lentidão do pensamento, parestesias e, em casos extremos, desmielinização da medula.

Talvez por isso a tríade clínica mais comum seja formada por depressão, delirium e psicose paranoia-like. A depressão aparece envolta em perda de interesse, fadiga que não melhora com repouso e um pessimismo quase químico. O delirium se manifesta em confusão súbita, inversão do ciclo sono-vigília, e memória de curto prazo volátil. Já a psicose costuma vir carregada de delírios persecutórios ou alucinações auditivas sutis, suficientes para rótulos precipitadamente esquizofrênicos se não se dosar a vitamina. Curiosamente, esses três quadros podem coexistir ou revezar-se no mesmo paciente, como se fossem capítulos de uma novela bioquímica.

Alguém poderia questionar: se a relação entre B₁₂ e neurocomportamento é tão marcante, por que nem todo idoso com depressão ou esquizofrenia responde a cobalamina? A resposta envolve uma nuance populacional. Muitos estudos de rastreamento em enfermarias psiquiátricas, realizados entre os anos 1960 e 1980, mostraram que menos de 3 % dos pacientes apresentavam hipovitaminose B₁₂ significativa. Dentro desse recorte, cerca de metade melhorava após reposição — especialmente aqueles com início agudo ou subagudo dos sintomas. Prescrições empíricas, sem diagnóstico bioquímico, acabavam criando a falsa percepção de ineficácia do nutriente.

Outro ponto de confusão: a presença ou ausência de macrocitose (eritrócitos aumentados, com volume corpuscular médio acima de 100 fL). Durante muito tempo, médicos tomavam macrocitose como requisito para suspeitar de déficit de B₁₂. Com a popularização de alimentos fortificados com ácido fólico, muitos pacientes passaram a exibir um hemograma “normal” mesmo com reservas de cobalamina em queda. Essa máscara hematológica afasta a investigação bioquímica, perpetuando sintomas cognitivos. Daí a relevância de marcadores mais sensíveis, como ácido metilmalônico e homocisteína plasmática, que se acumulam antes mesmo de qualquer alteração na série vermelha.

Olho clínico também faz diferença, quando alguém apresenta declínio cognitivo lento, arrastado, sem flutuação, sem melhoras com repouso, a hipótese de demência primária — Doença de Alzheimer, corpos de Lewy, demência vascular — deve liderar a lista. Já uma progressão rápida, acompanhada de ataxia, incontinência ou parestesias, acende a lâmpada da B₁₂. Em consultório médicos costumam perguntar: houve perda de peso recente? Cirurgias gástricas? Uso crônico de metformina ou inibidores de bomba de prótons? Essas pistas apontam para má-absorção ou consumo reduzido.

Aqui, uma reflexão útil: a cobalamina não é sintetizada por plantas nem animais; quem a produz são bactérias. Herbívoros resolvem o impasse abrigando esses microrganismos em compartimentos digestivos; nós dependemos de fontes animais ou suplementos. Vegetarianos estritos, se não lançarem mão de alimentos fortificados, podem levar anos até manifestar neuropatia ou alterações de humor. Isso porque o fígado armazena alguns miligramas de reserva, suficientes para cobrir um jejum prolongado de ingestão. O problema é que, quando os níveis caem, a curva de recuperação neuronal nem sempre acompanha a velocidade de reposição sérica. Por isso, intervenções precoces colhem resultados mais dramáticos.

Chama atenção o predomínio de casos de lentidão do pensamento — “slow cerebration”, expressão usada em relatos clássicos — que lembram um computador travado por falta de RAM. Pacientes descrevem dificuldade para encontrar palavras, executar tarefas sequenciais, acompanhar diálogos. Às vezes atribuem o fenômeno à idade ou ao estresse, retardando a busca de assistência. Quando, meses depois, recebem B₁₂, costumam recuperar velocidade de processamento, mas relatam que encaminhar documentos, pagar contas ou ler um romance ainda exige esforço extra. Esse hiato sugere que parte do dano sináptico, se prolongado, pode se tornar irreversível.

Voltando à fronteira entre diagnóstico, vale perguntar: compensa um médico dosar B₁₂ em todo paciente psiquiátrico? Alguns médicos arguirão que o custo-benefício é baixo. Outros, que a natureza insidiosa da deficiência e a segurança da reposição justificam o rastreio amplo. Num estudo prospectivo dos anos 1970, pacientes com anemia perniciosa receberam tratamento parenteral e foram acompanhados por seis semanas. A maioria mostrou melhora no humor, mas apenas o grupo com queixas de memória colheu ganhos expressivos em testes cognitivos. Aqui repousa uma mensagem: nem todos os componentes psiquiátricos respondem com a mesma velocidade, pelo que li em alguns artigos. Sintomas negativos, como apatia, costumam ceder mais lentamente que alucinações. Esse delay pode levar familiares a subestimar a eficácia inicial, interrompendo o esquema.

Outro achado intrigante emerge quando se observa a frequência de mania secundária ao déficit. Embora rara, existe descrição de euforia desproporcional, fuga de ideias e gasto excessivo que se dissolvem após reposição de cobalamina. Essa reversão lembra quadros tireotóxicos, reforçando a ideia de que a neuroquímica pode imitar transtornos primários do humor. A observação adiciona uma camada prática: antes de rotular um episódio maníaco isolado em idade avançada como transtorno bipolar tardio, vale checar vitaminas, hormônios e possíveis metais pesados.

Nessa altura, talvez o leitor esteja se perguntando: por que então a deficiência de B₁₂ raramente aparece como causa de demência estabelecida? Duas hipóteses competem. A primeira sustenta que o déficit atua como gatilho de descompensação, agravando processos degenerativos já em curso e mascarando a reversibilidade. A segunda argumenta que, sem intervenção rápida, a neurodegeneração provocada pela falta de mielina ultrapassa o ponto de retorno. As duas ideias não se excluem. Ambas reforçam a importância de vigilância clínica antes que mudanças epigenéticas e axonais se consolidem.

Entre 1990 e a primeira década dos anos 2000, técnicas de espectrometria avançaram, permitindo quantificar ácido metilmalônico com maior precisão. Estudos mostraram que indivíduos com valores elevados, mesmo dentro da faixa “limítrofe” de B₁₂, tinham risco maior de declínio cognitivo em cinco anos. Esses resultados empurraram a discussão para o conceito de “deficiência funcional” — níveis séricos normais, mas insuficientes para suprir a demanda celular. Ainda não há consenso sobre o ponto de corte ideal, porém emerge a noção de que a tabela de referência talvez precise de revisão, considerando diferenças genéticas na afinidade do transportador transcobalamina.

Enquanto a ciência afina parâmetros, a decisão prática continua recair sobre o clínico. Eu costumo iniciar reposição intramuscular semanal por quatro semanas, depois mensal, quando encontro B₁₂ abaixo de 250 pg/mL acompanhada de sintomas neurológicos. Se não houver resposta perceptível após três meses e o MMA estiver normal, reconsidero o diagnóstico. Essa estratégia, embora empírica, evita a armadilha de tratar apenas números. Afinal, medicina é a arte de integrar dados objetivos ao enredo subjetivo do paciente.

A essa altura, cabe reforçar — discretamente — o ponto que abri lá no início: sintomas cognitivos flutuantes merecem investigação laboratorial detalhada. Essa repetição, embora sutil, procura fixar a prioridade sem recorrer a truques conclusivos.

No cotidiano, histórias de recuperação parcial são mais comuns do que reviravoltas de filme. Lembro de uma professora aposentada que escrevia crônicas e, de repente, começou a trocar letras, confundir vozes narrativas, perder o fio da meada. Exames revelaram B₁₂ em 180 pg/mL. A reposição restaurou boa parte da fluência, mas não apagou totalmente os lapsos semânticos. Ela retomou as crônicas, agora com auxílio de um grupo de revisão, argumentando que cada errinho lembrava o valor da vitamina. Esse testemunho ressalta a dimensão humana: mesmo quando a ciência entrega a solução, o desfecho inclui adaptação, paciência e reinvenção da própria identidade.

Outro caso ilustra a versatilidade clínica: um paciente vegetariano de longa data, adepto de maratonas urbanas, apresentou parestesias nos pés e ataques de pânico. Pensou que fosse overtraining ou ansiedade corporativa. A dosagem de cobalamina em 90 pg/mL e MMA elevado respondeu rápido às injeções, mas o medo de recaída o motivou a rever a dieta e iniciar suplementação sublingual. Hoje, ele corre menos, medita mais e mantém diário alimentar. A experiência sugere que a vitamina pode ser gatilho para mudanças comportamentais sustentáveis.

Chegamos, assim, ao entrelaçamento final de argumentos. A deficiência de vitamina B₁₂ não é vilã universal das doenças psiquiátricas nem heroína que cura todos os quadros confusos. Ela se comporta como um módulo metabólico que, quando falha, desorganiza sinapses, atrasa potenciais de ação, distorce neurotransmissores. Em cérebros predispostos, esse desequilíbrio vira porta de entrada para depressão, delírios, mania; em cérebros já fragilizados por degeneração, acrescenta uma camada de névoa que dá a impressão de avanço demencial. Identificar esse componente exige escuta clínica, bom senso no rastreio e agilidade na correção.

Pergunto, então, ao leitor que chegou até aqui: quando foi a última vez que você ouviu falar da importância de uma simples injeção vitamínica numa história de hospital? Em tempos de sequenciamento genético e terapias biológicas, pode soar banal. Mas a biologia raramente esquece suas regras básicas. Um átomo de cobalto no centro de um anel corrinoide ainda decide se um idoso vai reconhecer ou não o filho no corredor. Se isso não desperta fascínio — e certa humildade — talvez valha reler os primeiros parágrafos deste texto.

Enquanto a comunidade científica debate novos biomarcadores e recomendações populacionais, uma atitude permanece inquestionável: diante de qualquer alteração aguda de comportamento, olhar para a bioquímica não faz mal. Trazer à tona a possibilidade de um déficit silencioso, investigar causas de má-absorção, revisar medicamentos que interferem na fisiologia gástrica, tudo isso compõe um mosaico de cuidado que ultrapassa a sofisticação de protocolos. A medicina, afinal, continua uma conversa, às vezes dura, às vezes delicada, entre curiosidade e evidência.

Fica a pergunta final: será que a próxima fronteira na prevenção de transtornos cognitivos não passa pelo prato? Talvez não encontremos respostas completas tão cedo, mas cada caso revertido lembra que nutrir sinapses é tarefa diária, microscópica e, para nossa sorte, acessível. 

 


Referências:

Organic psychosis without anemia or spinal-cord symptoms in patients with vitamin B12 deficiency - Psicose orgânica sem anemia ou sintomas medulares em pacientes com deficiência de vitamina B12: relato de casos que descreve reversão de sintomas psicóticos (delírios, alucinações, lentificação cognitiva) após reposição de cobalamina, reforçando a importância de investigar a vitamina em quadros de psicose atípica. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6849439/

The neuropsychiatry of megaloblastic anaemia - Neuropsiquiatria da anemia megaloblástica: revisão clínica com ênfase nos mecanismos pelos quais a carência de B12 ou folato leva a alterações de humor, confusão e neuropatia, contrastando perfis hematológicos e neuropsiquiátricos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6253016/

Pernicious anemia in the demented patient without anemia or macrocytosis — A case for early recognition - Anemia perniciosa em paciente com demência sem anemia ou macrocitose — um argumento para reconhecimento precoce: dois relatos que demonstram demência potencialmente reversível quando a deficiência de B12 é detectada antes de alterações hematológicas clássicas. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3722679/

Macrocytosis, mild anemia, and delay in the diagnosis of pernicious anemia - Macrocitose, anemia leve e atraso no diagnóstico de anemia perniciosa: estudo de coorte que demonstra como pequenas alterações eritrocitárias podem mascarar hipovitaminose B12, resultando em apresentação neuropsiquiátrica sem sinais hematológicos evidentes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/760683/

Nervous and mental manifestations of pre-pernicious anemia - Manifestações nervosas e mentais da anemia pré-perniciosa: estudo de 1905 descrevendo alterações cognitivas e irritabilidade em pacientes ainda sem anemia, apontando que o sistema nervoso é mais sensível à falta de B12 que o sangue. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/454510

Psychiatric syndromes due to avitaminosis B12 with normal blood and marrow - Síndromes psiquiátricas por avitaminose B12 com sangue e medula normais: série de casos evidenciando que testes hematológicos normais não excluem deficiência, salientando a necessidade de dosagem sérica na avaliação psiquiátrica. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/%28SICI%291099-1166%28199805%2913%3A5%3C295%3A%3AAID-GPS801%3E3.0.CO%3B2-1

“Mini-Mental State”: A practical method for grading the cognitive state of patients for the clinician - Mini-Mental State: método prático de graduação do estado cognitivo: artigo que introduz teste breve capaz de monitorar melhora cognitiva após reposição de B12 em estudos posteriores. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/0022395675900266?via%3Dihub

Outcome of investigation of patients with presenile dementia - Desfecho da investigação de pacientes com demência pré-senil: trabalho que inclui rastreio de B12, mostrando baixa prevalência de casos reversíveis, fundamentando políticas de triagem seletiva. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC1788994/

Dementia in elderly outpatients: a prospective study - Demência em pacientes ambulatoriais idosos: estudo prospectivo: coorte de 107 idosos que avaliou múltiplas causas de déficit cognitivo, encontrando hipovitaminose B12 rara porém tratável, recomendando investigação bioquímica quando há sinais hematológicos ou clínicos sugestivos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6696360/

The nervous symptoms in pernicious anemia: an analysis of one hundred and fifty cases - Sintomas nervosos na anemia perniciosa: análise de 150 casos: levantamento de 1919 que quantifica parestesias, ataxia e alterações mentais, reforçando a heterogeneidade neurológica da carência de B12. https://www.proquest.com/openview/59e138ee3a424b2fba15591e64133851/1

Cerebral manifestations of vitamin B12 deficiency - Manifestações cerebrais da deficiência de vitamina B12: série de 1956 que correlaciona alterações no EEG, confusão e delírios com níveis séricos baixos, mostrando reversibilidade parcial após tratamento. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/326204

Hallucinations and Vitamin B12 Deficiency: A Systematic Review - Alucinações e deficiência de vitamina B12 : A deficiência de vitamina B12 está associada principalmente à anemia perniciosa, polineuropatia e doença da medula espinhal, mas publicações sobre sua associação com alucinações estão aumentando. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11651228/

Screening of psychiatric patients for hypovitaminosis B12 - Triagem de pacientes psiquiátricos para hipovitaminose B12: estudo de 1969 com 1.004 internações que encontrou poucos casos de deficiência verdadeira e benefício terapêutico limitado, questionando a eficácia do rastreio em massa. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC1984345/

Low serum cobalamin levels in primary degenerative dementia: do some patients harbor atypical cobalamin deficiency states? - Baixos níveis de cobalamina na demência degenerativa primária: haveria estados atípicos de deficiência? análise de 1987 que sugere subtipo de demência relacionado a B12, motivando pesquisas sobre marcadores mais sensíveis como ácido metilmalônico. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3827417/

Hipóxia e envelhecimento

Respiração
Ouça o artigo:

Respirar fundo é um gesto tão corriqueiro que quase some do nosso radar sensorial. Ainda assim, o oxigênio que invade os pulmões e o que falta quando inspiramos meio apressados ou subimos uma ladeira íngreme, esconde uma chave bioquímica capaz de mexer nos ponteiros do envelhecimento. Quando descobri isso num daqueles finais de tarde em que insisto em revisar artigos científicos ao som de um jazz tímido, fiquei imaginando: e se modulássemos a sensação de pouco oxigênio (hipóxia), não como um sufoco, mas como um estímulo calculado? Será que seria possível empurrar a velhice alguns passos para frente sem pagar o preço de doenças secundárias?

A hipótese não surgiu do nada. Hoje, quem estuda longevidade tropeça cedo ou tarde no verme transparente Caenorhabditis elegans — esse nematoide de um milímetro que adora viver em placas de ágar e cabe numa colher de chá aos milhões. Pareceu‑me estranho, no início, que um organismo tão simples pudesse revelar segredos sobre nossa própria cronologia celular, mas a lógica é sólida: quase 60 % dos genes de envelhecimento que valem para nós surgem, de forma ancestral, nessas criaturinhas. O detalhe provocador é que, em C. elegans, estabilizar uma proteína chamada HIF‑1 (sigla de Hypoxia‑Inducible Factor 1, ou “fator induzível por hipóxia”, um fator de transcrição que liga baixa disponibilidade de oxigênio a mudanças na expressão gênica) prolonga a vida em mais de 25 %. Não se trata de mágica: o próprio HIF‑1 ativa programas de sobrevivência que ajustam metabolismo, proteostase, termo que designa a manutenção da integridade das proteínas intracelulares e até a forma como neurônios conversam.

Quando falamos em hipóxia, muita gente logo associa ao Everest ou a mergulhos radicais. Mas, em laboratório, bastam algumas manipulações genéticas ou a redução de oxigênio no ambiente para que o sistema acostumado a 21 % de O₂ (fórmula química do gás oxigênio, indispensável para respiração aeróbica) receba o recado: “há pouco ar”. Às vezes, esse estresse leve provoca o que chamamos de hormese — fenômeno no qual uma pequena dose de um fator estressor melhora a resistência global do organismo. A beleza está justamente nessa dualidade — dose certa como remédio, dose errada como veneno.

Só que, nos mamíferos, mexer no caminho da hipóxia dá tanto benefício quanto dor de cabeça. Células cancerígenas se aproveitam da mesma rota, ativam HIF‑1 e criam vasos sanguíneos extras para alimentar tumores. Era preciso, então, fatiar o roteiro, descobrir quais passos da dança celular entregam longevidade sem acionar processos perigosos.

A pista mais recente veio de um mapa neural desenhado justamente no C. elegans. Em vez de olhar o organismo inteiro afogado em genes ativados, pesquisadores decidiram perguntar: que neurônios disparam primeiro quando o oxigênio cai? A resposta aponta para um trio aparentemente modesto de células sensoriais chamadas ADF — sigla que, no jargão do verme, se refere a Amphid Dorsal F, neurônios quimiossensoriais produtores de serotonina. A serotonina, tal como no nosso cérebro, regula humor, apetite e, surpresa, expectativa de vida. Ao estabilizar HIF‑1 só nesses ADF, a curva de sobrevivência alonga em um quarto — quase o mesmo ganho de mexer no corpo todo. Palavra‑chave: especificidade.

Por que serotonina faria diferença? A pista encadeia‑se num circuito reminiscentemente poético. ADF solta serotonina que se liga ao receptor SER‑7 (abreviação de SERotonin receptor 7, pertencente à família dos GPCRs, ou G‑protein‑coupled receptors, receptores acoplados à proteína G que transmitem sinais para dentro da célula) no neurônio RIS — Ring Interneuron S — famoso por gerar um estado análogo ao sono no verme. RIS, por sua vez, produz GABA (ácido gama‑aminobutírico, principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso) e esse GABA modula a liberação de peptídeos e outros mensageiros que alcançam o intestino do animal. Lá, outro gene, fmo‑2 — flavina mono‑oxigenase 2, enzima de desintoxicação ligada à defesa contra radicais livres — entra em cena, neutralizando espécies reativas e coroando o efeito anti‑envelhecimento.

Percebe o compasso? Hipóxia → HIF‑1 em ADF → serotonina → SER‑7 em RIS → GABA + peptídeos → fmo‑2 no intestino → vida longa. Um encanamento bioquímico que lembra aqueles aquedutos romanos: a água (informação) passa de um reservatório a outro até irrigar a lavoura metabólica.

Só que o enredo guarda reviravoltas. Outro mensageiro, tiramina (amina biogênica considerada equivalente invertebrado da nossa adrenalina), entra pelo flanco. Produzida no neurônio RIM (Ring Interneuron M), essa amina se liga ao receptor TYRA‑3 (TYRAmine receptor 3, outro GPCR) altamente expresso nas células BAG — Bilateral Amphid Gas‑sensing neurons, sensores de baixo oxigênio e alto CO₂ (dióxido de carbono). Quando bloqueamos tiramina, o prolongamento de vida some. Aqui não falamos de deleção grosseira; basta inibir apenas a via RIM‑TYRA‑3 para que o animal volte à curva de sobrevivência comum. Será que algo semelhante ocorre em nós, onde adrenalina participa do estresse crônico e até da cardioproteção? Abro um portal de investigação translacional.

Para apimentar, surge um neuropeptídeo até então sem fama: NLP‑17 (sigla de Neuro‑Like Peptide 17, uma pequena cadeia de aminoácidos produzida em vesículas densas, conjuntos de transporte para mensageiros de grande porte). Esse peptídeo conversa com receptores NPR‑37 e NPR‑43 (ambos Neuropeptide Receptors, membros da família dos GPCRs). Quando cortaram nlp‑17, a tal longevidade induzida pela hipóxia perdeu o brilho. Tenho para mim que peptídeos funcionam como notas de rodapé refinando a mensagem química, reforçam ou atenuam, dependendo do contexto.

Alguns poderão reclamar: “Mas isso é verme; qual o valor para um senhor de 70 anos com artrose e pressão alta?” Justa interrogação. A convergência evolutiva, entretanto, é gritante. HIF‑1 existe em nossas células, a cascata serotonérgica‑GABAérgica ecoa no córtex, e a tiramina dá lugar à adrenalina no sistema nervoso simpático. A diferença reside nas quantidades, na duração e na localização. Um fármaco que estabilize HIF‑1 apenas em neurônios selecionados poderia, em tese, ativar rotas de limpeza de proteínas sem empurrar células epiteliais para a proliferação desenfreada. O desafio tecnológico é atingir microrregiões do sistema nervoso sem efeitos colaterais, algo que nanotecnologia e vetores virais de última geração começam a prometer.

Há um segundo obstáculo. Em C. elegans, as células do intestino não recebem sinapses diretas; sinais chegam via fluido pseudocelômico, o líquido que banha a cavidade corporal do verme. Em mamíferos, tecidos periféricos dialogam com o cérebro através de hormônios sistêmicos, nervo vago e citocinas inflamatórias. Precisamos provar que modular neurônios sensores de O₂ altera, digamos, a FMO homóloga humana ou vias antioxidantes equivalentes. Só então migraríamos dos tubos de ensaio para a clínica.

Dito isso, a noção de que pequenos pulsos de hipóxia controlada podem ensinar o organismo a lidar melhor com estresses maiores não é mais exótica. Atletas de elite utilizam tendências de treinamento em altitude intermitente. Pacientes com apneia leve obtêm adaptações hematológicas. Resta separar o que é resposta cardiopulmonar de curto prazo daquilo que toca, de fato, no relógio epigenético (conjunto de marcas químicas no DNA e nas proteínas que modulam a expressão gênica ao longo da vida).

Será que estamos programados para sobreviver a flutuações? A vida evoluiu em ambientes instáveis, desde marés às alternâncias dia‑noite. Talvez a constância de oxigênio e calorias que conquistamos pós‑revolução industrial prive o corpo de gatilhos para manutenção profunda. Há quem defenda dietas que simulam escassez, jejuns, banhos frios. A hipóxia vem somar‑se a esse repertório de estresses positivos.

Volto à parte técnica para não perder o fio. Na experiência com C. elegans, eliminar o gene unc‑31 — cujo produto protéico, UNC‑31 (UNCoordinated 31), é fundamental para embalar neuropeptídeos em vesículas de secreção — destrói o ganho de longevidade induzido por HIF‑1. Em outras palavras, a conversa química precisa sair intacta do cérebro do verme. Imagine, por analogia, se cortássemos em humanos a exocitose (processo de liberação vesicular) controlada em neurônios catecolaminérgicos: placebo nenhum repararia o estrago.

Outra peça intrigante são os neurônios URX, PQR e AQR — respectivamente URicross lateral, Posterior Quadrant Right e Anterior Quadrant Right, sentinelas de oxigênio elevado. Quando esses neurônios são ablatados (destruídos experimentalmente), também desaparece o efeito protetor. É como se fosse preciso comparar sinais de “excesso” e “escassez” para calibrar o termostato interno do envelhecimento. Isto me lembra um dilema cotidiano: só valorizamos o silêncio depois do barulho, e talvez as células só entendam a graça do oxigênio pleno depois de sentir‑lhe a falta.

Prosseguindo, os cientistas verificaram que RIS — o tal neurônio com receptor SER‑7 — dispara ondas de atividade semelhantes a sono (estado fisiológico de repouso neural e metabólico) em quase todos os filamentos da árvore da vida. Quem diria que dormir bem ou, no caso do verme, entrar num “torpor” controlado, poderia ser parte da receita antienvelhecimento? Em humanos, privação de sono encurta telômeros (pontas protetoras dos cromossomos); reforça‑se assim a ponte entre redes neurais e cronômetros biológicos.

Chego então a um ponto operacional. Como traduzir tudo isso em estratégia farmacológica concreta? Uma rota seria ativar levemente HIF‑1 usando inibidores de PHDs — Prolyl‑Hydroxylase Domain enzymes (enzimas prólil‑hidroxilases que, em condições normais, marcam HIF para degradação). Já existem fármacos desse tipo aprovados para anemia renal crônica. A prudência exige delimitar dose, tempo e, talvez, associação com moduladores de serotonina ou agonistas seletivos de 5‑HT₇ (abreviação de 5‑Hydroxytryptamine receptor 7, subtipo de receptor de serotonina humano homólogo ao SER‑7). Outra linha vislumbra análogos de tiramina que consigam sinalizar via receptores adrenérgicos sem provocar taquicardia.

Entretanto, qualquer tentativa precisará considerar o mosaico de tecidos e a heterogeneidade da população idosa. Influências de sexo, microbioma, histórico de tabagismo, polimorfismos (variações genéticas) em receptores… a lista de variáveis parece infinita. Ainda assim, negar‑se a tentar seria desperdiçar o insight precioso de que o envelhecimento, outrora visto como entropia inevitável, responde a interruptores neuronais.

Tenho a impressão de que, daqui a algumas décadas, clínicas de medicina preventiva aplicarão sessões breves de oxigênio reduzido combinadas a drogas moduladoras de neurotransmissores, tudo monitorado por biomarcadores sanguíneos de estresse oxidativo. Talvez façamos isso durante a soneca da tarde, evocando involuntariamente o RIS do nosso distante primo verme. Engraçado como a biologia repete padrões.

Preciso reforçar um ponto já mencionado: a via do neuropeptídeo NLP‑17 alarga a comunicação entre cérebro e intestino. Em mamíferos, peptídeos intestinais como GLP‑1 (Glucagon‑Like Peptide 1, hormônio incretina que estimula secreção de insulina) e PYY (Peptide YY, peptídeo que sinaliza saciedade) mandam recados ao sistema nervoso sobre digestão e metabolismo. Alguns deles, inclusive, viram alvo de remédio para diabetes e obesidade. Se surgisse um “NLP‑17‑like” circulante em humanos, ajustável via agonistas artificiais, teríamos mais uma barbante para puxar.

Em circunstâncias de pouca disponibilidade de oxigênio, uma sequência específica de luzes acende: serotonina em ADF, GABA em RIS, tiramina no circuito RIM‑BAG, peptídeos emergindo em ondas. Cada relé altera o fluxo de energia, recicla proteínas danificadas, recalibra o metabolismo. A tarefa dos próximos anos será pressionar os botões corretos sem disparar alarmes perigosos. Terei o maior prazer em voltar aqui, talvez já com cabelos brancos extras, para comentar como a engenharia biológica conseguiu afinar essa sinfonia. Até lá, vale a pena respirar fundo, sentir o ar entrar — quem sabe com menos pressa —, e lembrar que, em escala microscópica, esse simples gesto conversa com o tempo que nos habita.


Referências:

The hypoxic response extends lifespan through a bioaminergic and peptidergic neural circuit - https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2025.05.04.652087v1

Um entendimento da neurobiologia do sono

Neurobiologia do sono
Ouça o artigo:

Imagine-se deitado numa noite comum, os olhos focados no teto, enquanto a mente se recusa a aportar no porto tranquilo do sono. Talvez você já tenha sentido essa frustração, como se um interruptor interno tivesse queimado, deixando seu cérebro em vigília constante. Nesse cenário, a neurobiologia do sono se revela não apenas fascinante, mas essencial para compreendermos por que algumas noites escorregam pelo nosso controle e outras nos envolvem em um abraço reparador.

O sono é um fenômeno multifacetado: não se resume a fechar os olhos e, pronto, entrar em um estado de inatividade. É um processo ativo, orquestrado por redes neuronais específicas e moduladores químicos, que se alternam entre fases distintas — o sono de ondas lentas (o tal do slow wave sleep, marcado por ondas delta) e o sono REM (rapid eye movement), onde os sonhos costumam emergir. Cada ciclo dura em média noventa minutos, e a sequência ideal varia de quatro a seis ciclos por noite. Mas por que, afinal, nos afastamos do padrão ideal?

Em primeiro lugar, é preciso considerar o papel do ritmo circadiano (o “relógio biológico” que regula praticamente tudo em nosso corpo). Esse relógio reside no núcleo supraquiasmático (SCN, uma pequena região do hipotálamo) e recebe informações luminosas diretamente da retina. Quando a luz cai, dizemos ao SCN que é dia; no escuro, ele libera sinais químicos — por exemplo, melatonina (um indutor de sono produzido pela glândula pineal) — para avisar que a hora de descansar se aproxima. Esse mecanismo é tão primoroso que regula também a liberação de hormônios como o cortisol (o qual, quando em excesso à noite, atrapalha o adormecer, pois atua como acelerador do sistema de alerta).

Mas há um segundo ator no palco: a homeostase do sono. Imagine um contador interno que vai registrando, em cada minuto acordado, uma “dívida de sono”. Quanto mais tempo ficamos sem dormir, maior essa dívida e, portanto, maior o impulso para dormir profundo (o sono de ondas lentas). O compostor bioquímico desse mecanismo se chama adenosina (um neuromodulador que impede a disparada excessiva de neurônios, promovendo descanso). À medida que nos mantemos despertos, níveis crescentes de adenosina se acumulam no cérebro, sinalizando aquela famosa sonolência tarde da tarde. Quando finalmente deitamos a cabeça, a adenosina age: reduz a excitabilidade neural e facilita a transição para o sono.

Porém, no mundo real, nossa “dívida” nem sempre é paga. Há fatores ambientais, como luzes artificiais e ruídos, e fatores internos, como estresse, ansiedade, mudanças hormonais e condições patológicas. Insônia, por exemplo, é definida como dificuldade para iniciar, manter ou obter sono reparador, mesmo com oportunidade adequada. E mais: pessoas com insônia crônica costumam apresentar hiperarousal (hiperestimulação fisiológica) — ou seja, o corpo “se recusa” a desacelerar. Em vez de detectar o acúmulo de adenosina e convidar ao descanso, o organismo segue em alerta máximo, como se algo ainda estivesse por acontecer.

Existe um conjunto de neurotransmissores, corticotropina (CRH), noradrenalina, dopamina — que participam do circuito de estresse e emoção. Quando esses mensageiros estão em alta, o sono sofre um boicote: áreas do sistema límbico, responsáveis pelas emoções e memória, incham de atividade, liberando adrenalina e mantendo o córtex pré-frontal (centro de cognição) em estado de vigília leve ou até moderada. Resultado: insônia de manutenção, fragmentada, com despertares frequentes, sono superficial e sensação de cansaço no dia seguinte.

Eu tive algumas reflexões quando observava algumas pessoas com insônia primária: muitos relatam se sentir “ligados” até horas após deitar, incapazes de desligar pensamentos sobre prazos, responsabilidades e até lembranças de conversas antigas. É como se o cérebro adotasse um modo sicronizado com o estresse. Essa analogia com circuitos elétricos nem sempre é perfeita, mas ilustra a dificuldade de modular adequadamente a energia interna. Em estágio ideal, o hipotálamo anterior ventrolateral (VLPO) — composto por neurônios galaninérgicos e GABAérgicos — atua como um freio: ao ativar-se, ele inibe grupos neuronais responsáveis pela vigília (monoaminas do tronco cerebral). Porém, na insônia, a interação entre VLPO e essas regiões de vigília parece enfraquecida, e o freio não segurar o acelerador.

Vale observar como certos animais compartilham mecanismos básicos de sono. Em Drosophila melanogaster (a mosca-da-fruta), variantes genéticas afetam diretamente padrões de descanso, apontando para a importância de genes e proteínas no processo. Os chamados clock genes (genes do relógio) compõem o mecanismo de feedback molecular que regula o ciclo circadiano. Em mamíferos, proteínas semelhantes desempenham papel análogo no núcleo supraquiasmático, reforçando a tese de que dormir é uma necessidade tão antiga quanto a própria vida complexa.

Retornando ao assunto humano, surge a hipótese de que tratamentos eficazes (terapia cognitivo-comportamental para insônia ou uso de agonistas adrenérgicos específicos) podem “recalibrar” esses circuitos. Estudos indicam que terapias podem diminuir níveis de cortisol noturno e reduzir atividade no córtex pré-frontal dorsal, facilitando a ativação apropriada do VLPO. Será que, então, a insônia poderia ser encarada como uma disfunção reversível dos sistemas de regulação de sono? Os resultados iniciais apontam para sim, mas precisamos de pesquisas com monitoramento neurobiológico detalhado, como EEG de alta densidade e ressonância magnética funcional.

Mas não é só o estresse que mexe com nosso descanso. Mudanças na arquitetura do sono ocorrem naturalmente com a idade: o sono de ondas lentas diminui, a eficiência do sono cai e os despertares noturnos aumentam. Hormônios como estradiol e progesterona (nas mulheres pós-menopausa) e a queda de melatonina impactam profundamente essa dinâmica. Já nos jovens, fatores de desenvolvimento neural podem interferir, provocando atrasos na fase de sono (o famoso “jet lag social” dos adolescentes, que levam o sono para tarde da noite e têm dificuldade de acordar cedo).

Em paralelo, há uma interação intrigante entre emoção e sono. O sistema límbico, especialmente a amígdala, modular o sono e a vigília. Experiências aversivas (condicionamento de medo) podem causar insônia transitória ou até crônica, pois ressonam em circuitos de memória emocional. E se olharmos para doenças neurológicas, notamos que regiões como o hipotálamo lateral (onde se localizam neurônios de hipócretina/orexina) estão envolvidas tanto no controle de apetite quanto na regulação do ciclo sono-vigília. Na narcolepsia, deficiência de orexina resulta em excesso de sono diurno, já na insônia primária essa substância pode estar em desequilíbrio inverso, promovendo hiperativação.

Passado, presente e futuro se mesclam quando consideramos que tratamentos farmacológicos antigos (benzodiazepínicos) atuam de forma geral no GABA, enquanto terapias emergentes buscam alvo em receptores específicos de melatonina (MT1/MT2), antagonistas de CRH ou mesmo moduladores de orexina. O panorama abre caminho a um modelo mais granular de intervenção, focado em fenótipos — ou seja, marcadores objetivos de diferentes subtipos de insônia. Identificar biomarcadores no EEG, na resposta ao MSLT (teste de latência múltipla de sono) ou em perfis metabólicos pode permitir terapias personalizadas.

Aliás, lembre-se do que eu disse sobre a hiperativação: ela não é somente uma queixa subjetiva. Estudos mostram que pacientes com insônia apresentam aumento de atividade do sistema nervoso simpático (SNS), medido por frequência cardíaca elevada e níveis de catecolaminas no sangue. Esse estado de “alerta interno” é contraproducente para o adormecer e pode contribuir para comorbidades como depressão e ansiedade, além de risco cardiovascular elevado.

Outra perspectiva que merece destaque é a epigenética do sono. Fatores ambientais — estresse crônico, padrões irregulares de luz — podem alterar a metilação de genes relacionados ao ritmo circadiano, impactando a expressão de clock genes. Isso sugere que a insônia não é apenas disfunção temporária, mas pode envolver mudanças duradouras no genoma neuronal, de difícil reversão sem intervenções adequadas.

E onde entra nossa vida cotidiana? Rotinas irregulares, uso de eletrônicos antes de dormir e o estilo de vida 24/7 elevam o nível de ativação e perturbam a coordenação entre ritmo circadiano e homeostase do sono. Há, então, um componente comportamental tão influente quanto o biológico. Diminuir a exposição à luz azul, manter horários consistentes de sono e praticar técnicas de relaxamento são estratégias simples, mas poderosas para restabelecer o equilíbrio.

Voltando ao terreno das pesquisas: um ponto de inflexão futuro será o uso de neuroimagem integrada com machine learning para mapear padrões individuais de sono. Imagine um aplicativo que, ao cruzar dados de smartwatch com perfis de EEG domiciliar, indique o melhor momento para dormir ou sugira intervenções farmacológicas pontuais — tudo baseado em dados reais, não em protocolos genéricos.

Concluindo esta viagem pela neurobiologia do sono, fica claro que a complexidade do tema desafia simplicidades. Não há uma única porta de entrada para o descanso — são muitas chaves, trocadas em sincronia: relógio interno, contador de dívida de sono, neurotransmissores de estresse, circuitos emocionais, hormônios e nossas escolhas diárias. E, apesar de toda essa complexidade, o sono continua sendo um dos pilares mais fundamentais da saúde, influenciando cognição, humor, metabolismo e longevidade.

Se eu pudesse reforçar um ponto, seria este: compreender e respeitar nossos ciclos não é um luxo, é uma necessidade básica. Valorizar o sono é tão importante quanto alimentar-se bem ou praticar exercícios. E, quando surgirem dificuldades, buscar ajuda especializada, considerando tanto aspectos biológicos (como níveis de adenosina, disfunção do VLPO, desregulação de orexina) quanto comportamentais (higiene do sono, terapias cognitivas).

 


Referências:

Slow-wave sleep (SWS): frequentemente chamado de sono profundo , é o terceiro estágio do sono sem movimentos rápidos dos olhos (NREM), onde a atividade eletroencefalográfica é caracterizada por ondas delta lentas . https://en.wikipedia.org/wiki/Slow-wave_sleep

Rapid eye movement sleep (REM sleep or REMS): é uma fase única do sono em mamíferos (incluindo humanos ) e aves , caracterizada por movimentos rápidos e aleatórios dos olhos , acompanhados de baixo tônus muscular em todo o corpo e pela propensão do indivíduo a sonhar intensamente. As temperaturas do corpo e do cérebro aumentam durante o sono REM, e a temperatura da pele diminui para os valores mais baixos. https://en.wikipedia.org/wiki/Rapid_eye_movement_sleep

 Suprachiasmatic nucleus ou nuclei (SCN): é uma pequena região do cérebro no hipotálamo , situada diretamente acima do quiasma óptico . É responsável pela regulação dos ciclos do sono em animais. A recepção de entradas de luz de células ganglionares da retina fotossensíveis permite que ela coordene os relógios celulares subordinados do corpo e se adapte ao ambiente. As atividades neuronais e hormonais que ele gera regulam muitas funções corporais diferentes em um ciclo de aproximadamente 24 horas. https://en.wikipedia.org/wiki/Suprachiasmatic_nucleus

 Ventrolateral preoptic nucleus (VLPO): é um pequeno aglomerado de neurônios situado no hipotálamo anterior , logo acima e ao lado do quiasma óptico no cérebro de humanos e outros animais. https://en.wikipedia.org/wiki/Ventrolateral_preoptic_nucleus

 

 

Cérebro e energia

Energia e cérebro
Ouça o artigo:

Cheguei em casa depois de um daqueles dias em que tudo pareceu exigir mais do que eu tinha para dar. Queria só largar o corpo no sofá e deixar a televisão me distrair. Curiosamente, mesmo nesses momentos, a sensação de cansaço mental persiste, como se a cabeça continuasse rodando a toda velocidade. Durante muito tempo, acreditei que repouso seria igual a economia de energia cerebral, mas descobri que o quadro é bem mais intrigante. O cérebro, mesmo aparentemente inerte, consome quase tanta energia quanto em momentos de intensa atividade intelectual.

Quando falo de energia no cérebro, estou falando do que os biólogos chamam de custo metabólico da cognição. Ou seja, quanto “combustível” o cérebro precisa para manter suas funções, seja descansando ou resolvendo um problema matemático. Estudos recentes mostram que tarefas consideradas difíceis, aquelas que exigem atenção, memória ou raciocínio, usam só cerca de 5% mais energia do que quando estamos em repouso.(1) A primeira reação pode ser estranheza: não era para ficar cansado só de pensar em tanta coisa?

O segredo está em como o cérebro distribui seus gastos. Grande parte desse consumo energético é dedicada à manutenção de funções básicas, aquelas que operam nos bastidores. Enquanto a maioria dos pesquisadores se concentrou durante anos em processos como atenção, tomada de decisão e memória de trabalho, um novo olhar tem iluminado o papel essencial dos processos de fundo. O cérebro regula todo um conjunto de sistemas fisiológicos, alocando recursos e reagindo a demandas do ambiente, consciente ou inconscientemente.

Há quem diga que o cérebro serve apenas para pensar. Mas, do ponto de vista energético, ele é um órgão desenhado para gerenciar o corpo, coordenar órgãos, regular variáveis internas e ainda navegar um ambiente externo cheio de desafios. E tudo isso dentro dos limites impostos pela evolução, que atua como uma espécie de contadora exigente, cobrando cada gasto e cada desperdício.

Não raro, a sensação de fadiga mental não resulta de falta de energia propriamente dita, mas de uma tendência evolutiva a preservar recursos. A biologia opera segundo restrições severas, especialmente num órgão tão sofisticado e caro quanto o cérebro humano. Quando estudo o metabolismo neural, começo a enxergar a cognição como resultado de um ajuste fino entre as pressões evolutivas, os limites impostos pela energia disponível e as tarefas que precisamos desempenhar.

O cérebro é um consumidor voraz. Representa apenas cerca de 2% do peso corporal, mas exige 20% de toda a energia do corpo adulto. No caso dos bebês, esse percentual pode chegar a 50%. O combustível principal? A molécula chamada ATP (trifosfato de adenosina), produzida a partir de glicose e oxigênio, que chega às células nervosas por uma rede intrincada de capilares, algo em torno de 600 quilômetros de vasos, se alguém quisesse medir tudo. Uma vez dentro do neurônio, o ATP abastece as comunicações, sustentando disparos elétricos e a troca de sinais químicos entre células.

A manutenção do chamado potencial de membrana, que prepara cada neurônio para agir quando necessário, consome pelo menos metade da energia do cérebro. Medir diretamente o ATP em cérebros humanos é complicado e invasivo. Por isso, pesquisadores recorrem a métodos indiretos, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET) para medir consumo de glicose, ou a ressonância magnética funcional (fMRI) para observar o fluxo sanguíneo. Essas técnicas revelam que o salto de consumo energético entre um cérebro em repouso e outro empenhado em tarefas é pequeno: cerca de 5%. Ou seja, o esforço extra para pensar é modesto se comparado ao trabalho constante de manutenção.

É interessante notar que, até meados dos anos 1990, cientistas encaravam a atividade cerebral em repouso como “ruído”, algo sem função clara. Aos poucos, perceberam que existe muito sinal útil nesse “ruído”. Um exemplo marcante é a chamada rede do modo padrão (default mode network), que entra em cena enquanto descansamos, imaginando futuros possíveis, relembrando o passado ou sentindo alguma dor que ficou esquecida. Essa rede mantém o cérebro ocupado em devaneios, reorganizando lembranças e simulando cenários.

Paralelamente, o cérebro faz um trabalho silencioso para garantir o equilíbrio corporal, o tal estado de homeostase. Controla temperatura, glicose, batimentos cardíacos, respiração e outros parâmetros fundamentais para manter tudo funcionando. Um pequeno deslize nesses controles pode trazer consequências sérias e rápidas.

Comecei a pensar, será que grande parte desse gasto não serve para algo além da simples regulação? Um pesquisador sugeriu que, de fato, o cérebro dedica seu metabolismo basal a prever o que vem pela frente. Em vez de apenas reagir, constrói modelos sofisticados do ambiente para antecipar demandas e alocar recursos antes mesmo de sentir a necessidade. Essa abordagem preditiva oferece vantagem adaptativa: preparar-se antes de o problema acontecer pode ser a diferença entre sobreviver e sucumbir.

Evolutivamente, essa capacidade preditiva fez toda a diferença. Um aumento de apenas 5% no consumo energético durante atividades cognitivas pode não parecer nada, mas, considerando o cérebro como um órgão altamente demandante, o acúmulo desse esforço ao longo dos dias se torna relevante. Imagine: se alguém mantivesse esse ritmo elevado por vinte dias seguidos, gastaria a energia equivalente a um dia inteiro só pensando. Para populações que viviam sob restrição alimentar, esse detalhe era vital, poderia separar vida e morte.

Fiquei refletindo sobre isso outro dia, lembrando daqueles momentos em que o cansaço mental parecia desproporcional ao esforço real. Agora faz sentido: nosso cérebro possui mecanismos automáticos que nos freiam, ativando sensações de fadiga para evitar gasto excessivo. É uma herança dos tempos de escassez, quando cada caloria era disputada.

Outro ponto fascinante: a própria transmissão de informação no cérebro é limitada por essas regras energéticas. Um neurônio, em teoria, poderia disparar até 500 vezes por segundo. Porém, se todos os neurônios adotassem esse ritmo frenético, o sistema colapsaria. O ritmo ótimo de transmissão, aquele em que ainda é possível distinguir as mensagens sem perder a clareza, fica em torno de 250 disparos por segundo. Na prática, nossos neurônios funcionam numa média de apenas 4 disparos por segundo, bem menos do que seria possível.

O mais curioso é que muitas dessas transmissões nem chegam a passar adiante. Mesmo quando um impulso elétrico alcança a sinapse, só cerca de 20% das tentativas resultam em comunicação com o neurônio vizinho. Se o objetivo fosse maximizar a quantidade de informação transmitida, a eficiência deveria ser maior, não? Mas o cérebro não busca esse tipo de maximização. Ele quer, acima de tudo, economizar ATP, otimizar a quantidade de informação transmitida por unidade de energia, e não simplesmente transmitir tudo que pode.

Essa equação muda nossa compreensão do cansaço mental. A sensação de esgotamento depois de um dia de atenção intensa está menos relacionada à ausência de energia, e mais à ativação de mecanismos internos para limitar o gasto. Um lembrete constante do quanto nosso sistema nervoso evoluiu para equilibrar flexibilidade, inovação comportamental e restrição metabólica.

Enquanto escrevo destaco um ponto importante: grande parte do que chamamos de “atividade cerebral” acontece sem que percebamos. Pensar consome energia, sim, mas é a manutenção silenciosa, os ajustes automáticos, o monitoramento constante do corpo e do ambiente que levam o maior pedaço desse orçamento energético.

O cérebro humano é um exemplo brilhante de negociação evolutiva. Carregamos na cabeça um órgão de altíssimo custo, capaz de invenção, previsão e adaptação, mas que opera dentro de limites rígidos impostos por sua própria biologia. A energia investida no pensamento é real, embora menor do que a intuição sugere. É a soma das pequenas diferenças, multiplicadas pela rotina diária, que moldou nossa espécie e ainda determina nossos limites.

 


Referência:

1 - The metabolic costs of cognition:  https://www.cell.com/trends/cognitive-sciences/fulltext/S1364-6613(24)00319-X

Glicose, cetonas, memória e o que sustenta o cérebro em queda

CEtonas no corpo
Ouça o artigo:

Imagine que o envelhecimento cerebral não é apenas uma linha reta rumo ao declínio, mas uma curva sinuosa, cheia de desvios, curvas e até pontos críticos em que as coisas mudam de direção. A ciência, há décadas, persegue respostas para uma questão central: o que realmente impulsiona o envelhecimento do cérebro? Por que algumas pessoas mantêm a clareza mental até idades avançadas, enquanto outras perdem rapidamente funções cognitivas? E, mais instigante ainda: seria possível intervir nesse processo antes que o ponto de virada chegue — antes que as mudanças se tornem irreversíveis?

Comecei a pensar mais profundamente sobre isso depois de ler sobre um experimento simples: um grupo de pessoas de meia-idade tomou um suplemento que eleva os níveis de corpos cetônicos no sangue — e, surpreendentemente, os exames mostraram um efeito imediato de restauração da estabilidade das redes cerebrais. Esse efeito, porém, desapareceu nos idosos. A pergunta então ficou ecoando: existiria uma janela de tempo em que o cérebro é especialmente sensível a intervenções metabólicas?

Para explorar esse tema, preciso abrir um parêntese rápido e explicar dois conceitos técnicos essenciais. Primeiro, falo de “homeostase metabólica”, que é a capacidade do corpo (e do cérebro) de manter seus processos energéticos sob controle, mesmo diante de mudanças e desafios. Segundo, entra em cena o “transporte de glicose”, responsável por abastecer neurônios com sua principal fonte de energia. Mas, ao contrário do que se imagina, esse transporte não é igual para todos os neurônios — alguns dependem de mecanismos sensíveis à insulina, enquanto outros usam caminhos independentes. Aqui, o protagonista é o transportador GLUT4, que exige insulina para funcionar.

E por que isso importa? Porque, com a idade, a resistência à insulina aumenta silenciosamente em várias partes do corpo, inclusive no cérebro. Esse fenômeno é chamado de “resistência neuronal à insulina”. Neurônios resistentes à insulina simplesmente não conseguem absorver glicose de maneira eficiente, entrando em um estado de “hipometabolismo” — basicamente, um modo de economia forçada, com menos energia disponível para as tarefas do dia. O que a ciência começou a perceber é que essa queda no metabolismo antecede sintomas clínicos de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer. O mais curioso é que, nessas fases iniciais, as mudanças já aparecem nos exames funcionais, como fMRI (ressonância magnética funcional) ou EEG (eletroencefalograma), muito antes de qualquer sintoma perceptível no cotidiano
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Talvez agora você esteja se perguntando: se o problema é a energia, não seria possível fornecer uma fonte alternativa? É aqui que entram os corpos cetônicos. Eles podem ser produzidos naturalmente pelo corpo durante o jejum ou dietas com baixo teor de carboidrato, ou ainda ser fornecidos em suplementos específicos. Os corpos cetônicos — como o beta-hidroxibutirato — conseguem alimentar os neurônios mesmo quando há resistência à insulina, porque usam um transportador chamado MCT2, que não depende de insulina para funcionar. É um atalho bioquímico, uma rota de fuga para o neurônio faminto.

Ao investigar o padrão do envelhecimento cerebral, pesquisadores descobriram algo fascinante: a trajetória não é linear, mas sim sigmoidal — lembra uma curva em “S”. Eles identificaram pontos críticos nessa curva, como o início da desestabilização das redes cerebrais por volta dos 43 a 47 anos, o ponto de máxima aceleração dessa instabilidade entre os 60 e 67 anos e, por fim, um platô, quando a rede já está bem menos estável. Esses marcos foram replicados em grandes bancos de dados populacionais, usando exames funcionais em dezenas de milhares de participantes, de jovens adultos a idosos. Nesses estudos, o aumento da instabilidade das redes cerebrais coincidiu de maneira impressionante com um aumento nos níveis de HbA1c — um marcador de glicemia cronicamente elevada, ligado à resistência à insulina. Interessante também perceber que, enquanto os marcadores metabólicos disparam já no início desse processo, os problemas vasculares e inflamatórios aparecem mais adiante, na curva.

A reflexão aqui é inevitável: muitos modelos antigos de envelhecimento sugeriam que tudo era uma mistura de pequenos desgastes acumulados, como oxidação, inflamação e lesão vascular. Agora, começa a emergir a ideia de que a quebra da homeostase metabólica — e especialmente da resposta à insulina nos neurônios — é o grande gatilho. Um lapso de memória (me distraí aqui, porque acabei pensando em quantas vezes já ouvi médicos falando do cérebro como “órgão consumidor de glicose”, mas quase nunca mencionando que esse consumo pode travar).

Quando os pesquisadores analisaram padrões de expressão gênica em diferentes regiões do cérebro, cruzando com o ritmo do envelhecimento funcional dessas áreas, encontraram uma correlação forte entre as regiões que envelhecem mais rápido e a presença do GLUT4. E, curiosamente, regiões com maior expressão de MCT2 (o transportador de corpos cetônicos) mostraram menos vulnerabilidade. Em outras palavras, parece que existe uma espécie de “escudo protetor” para os neurônios capazes de usar corpos cetônicos. O gene alelo apolipoproteína, conhecido por seu papel no transporte de lipídios e como fator de risco para Alzheimer, também apareceu nesse cenário — como se houvesse uma conversa entre metabolismo de glicose, lipídios e cetonas nos bastidores do envelhecimento cerebral.

Eu tive algumas reflexões, quase como quem tropeça numa ideia no meio do caminho. Se já sabemos que existe essa janela crítica entre os 40 e 60 anos, por que não existem políticas de saúde pública voltadas para intervenções metabólicas nessa faixa etária? Seria preciso esperar pelos primeiros sintomas de declínio ou poderíamos, de forma proativa, propor estratégias de prevenção baseadas em metabolismo cerebral? A própria experiência pessoal me faz pensar que a maioria das pessoas só se preocupa com dieta ou atividade física quando sente o peso do cansaço mental ou os lapsos de memória aumentam. Mas o corpo e o cérebro já estavam mudando muito antes disso.

Retomando a linha de raciocínio, há uma questão técnica que sempre gera discussão: como isolar o impacto do metabolismo do cérebro, sem confundir com fatores vasculares ou inflamatórios? Os estudos resolveram isso controlando rigorosamente as variáveis, usando grandes amostras e métodos de análise funcional que permitem separar os efeitos. Assim, foi possível mostrar que, no início do processo de envelhecimento cerebral, é o metabolismo que muda primeiro. Só depois vêm as alterações vasculares e, por fim, as inflamatórias.

Outro ponto curioso: na hora de testar intervenções com corpos cetônicos, os pesquisadores descobriram que o efeito positivo é maior justamente durante o período de transição metabólica, aquela janela entre os 40 e 59 anos. Depois dos 60, o benefício desaparece. Não porque o suplemento não chegue ao cérebro, mas porque os neurônios já perderam a capacidade de usá-lo de forma eficiente. Chega um ponto em que o sistema deixa de “curvar” e passa a “quebrar”. Essa analogia do "curvar antes de quebrar" é muito usada na engenharia, mas aqui encaixa perfeitamente: os neurônios suportam o estresse metabólico até certo limite; passado esse ponto, as alterações tornam-se irreversíveis.

Reforçando o ponto anterior, o estudo sugere que uma intervenção precoce — especialmente antes da perda irreversível dos neurônios — pode reverter boa parte da instabilidade das redes cerebrais. Em outras palavras, existe sim uma “janela de oportunidade”, mas ela não fica aberta para sempre.

O próximo passo é entender por que algumas pessoas atravessam essa janela sem grandes problemas, enquanto outras não. Seriam fatores genéticos, ambientais, estilo de vida, ou uma combinação de todos eles? A expressão do gene apolipoproteína, por exemplo, pode aumentar o risco de declínio cognitivo acelerado, mas só em alguns contextos. O ambiente alimentar e a frequência de picos glicêmicos ao longo da vida provavelmente modulam essa vulnerabilidade.

A reflexão que faço agora é: quantos de nós paramos para pensar que as escolhas alimentares do cotidiano — excesso de açúcar, picos de insulina, falta de jejum metabólico — podem estar “programando” nosso cérebro para envelhecer mais rápido? Talvez a resposta não esteja em medicamentos caros, mas em estratégias simples de manutenção do metabolismo cerebral, como períodos de restrição alimentar, maior consumo de gorduras saudáveis, e até mesmo, em alguns casos, o uso planejado de suplementos cetônicos.

Voltando à ciência, há um desafio metodológico importante. Grande parte dos estudos anteriores analisava pessoas já com sintomas ou diagnóstico de doenças neurodegenerativas. Isso limita a capacidade de diferenciar causas de consequências. Quando o foco se volta para adultos saudáveis, principalmente antes dos 60 anos, torna-se possível enxergar o processo de envelhecimento como algo dinâmico, cheio de idas e vindas, e não como uma sentença inevitável. E, sim, os métodos de análise funcional do cérebro — como a estabilidade das redes neurais — podem indicar alterações anos antes do surgimento dos sintomas clássicos.

Uma questão que é bom destacar é a interação entre metabolismo, inflamação e função vascular. Esses sistemas não operam isoladamente. O envelhecimento acelera ciclos de retroalimentação negativa, em que o metabolismo prejudicado agrava a inflamação, que, por sua vez, compromete os vasos sanguíneos, criando um círculo vicioso. O grande problema é interromper esse ciclo no ponto certo, antes que o dano se torne permanente. Isso reforça a importância de intervenções multifatoriais, mas sem perder o foco: atacar o metabolismo pode ser a chave inicial para evitar o desmoronamento dos demais sistemas.

Ao juntar todas essas peças, fica claro que o envelhecimento cerebral é menos uma sequência de eventos previsíveis e mais um processo de transições abruptas, marcadas por pontos críticos. Entender e reconhecer esses pontos pode nos dar a chance de agir antes que seja tarde demais. E, embora eu me pegue repetindo essa ideia, talvez por insegurança ou insistência, não custa lembrar: o futuro das estratégias para manter o cérebro saudável talvez esteja menos em intervenções tardias e mais na identificação precoce da janela crítica de intervenção metabólica. Pensar nisso é, de certo modo, cuidar do próprio futuro.

 


Referências:

Discrete brain areas express the insulin-responsive glucose transporter GLUT4 - Áreas cerebrais discretas expressam o transportador de glicose sensível à insulina GLUT4: Esse estudo mapeou regiões específicas do cérebro que expressam o GLUT4, sugerindo que certos neurônios dependem diretamente da insulina para absorver glicose, o que os torna mais vulneráveis ao declínio metabólico com o envelhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8737666/

 Immunocytochemical localization of the insulin-responsive glucose transporter 4 (Glut4) in the rat central nervous system - Localização imunocitoquímica do transportador de glicose 4 (GLUT4), sensível à insulina, no sistema nervoso central de ratos: Este trabalho mostra que o GLUT4 está presente em diversas áreas do cérebro de ratos, reforçando a ideia de que a captação de glicose por neurônios pode depender da sensibilidade à insulina — um ponto central na hipótese da “diabetes tipo 3” no Alzheimer. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/9741479/

 Brain fuel metabolism, aging, and Alzheimer's disease - Metabolismo energético cerebral, envelhecimento e doença de Alzheimer: O artigo revisa como o declínio na capacidade do cérebro de utilizar glicose precede sintomas de Alzheimer e discute o potencial uso terapêutico de fontes alternativas de energia, como corpos cetônicos, para retardar o envelhecimento cerebral. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21035308/

Use of Functional Magnetic Resonance Imaging in the Early Identification of Alzheimer’s Disease - Uso da ressonância magnética funcional na identificação precoce da doença de Alzheimer: A fMRI é apresentada como uma ferramenta promissora para detectar alterações na conectividade cerebral antes mesmo do surgimento de sintomas clínicos — uma base importante para estudar como a instabilidade das redes cerebrais pode sinalizar o início do declínio cognitivo. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC2084460/

The potential of functional MRI as a biomarker in early Alzheimer’s disease - O potencial da fMRI como biomarcador na fase inicial da doença de Alzheimer: Explora como a instabilidade funcional em redes cerebrais específicas pode servir como um marcador precoce e confiável da progressão do Alzheimer — tema que também aparece nos estudos sobre intervenção com cetose em fases críticas da meia-idade. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3233699/

 Ketosis regulates K+ ion channels, strengthening brain-wide signaling disrupted by age Open Access - A cetose regula canais de íons K⁺, fortalecendo a sinalização cerebral ampla prejudicada pela idade: Um estudo inovador que mostra como corpos cetônicos restauram a função neuronal ao reequilibrar canais iônicos fundamentais para a sincronia em larga escala das redes neurais — sugerindo um mecanismo celular para o “escudo protetor” contra o envelhecimento cerebral. https://direct.mit.edu/imag/article/doi/10.1162/imag_a_00163/120749/Ketosis-regulates-K-ion-channels-strengthening

 D-β-hydroxybutyrate stabilizes hippocampal CA3-CA1 circuit during acute insulin resistance  - O D-β-hidroxibutirato estabiliza o circuito CA3-CA1 do hipocampo durante resistência aguda à insulina: Mostra como a presença de corpos cetônicos estabiliza as conexões neurais mesmo sob condições de resistência à insulina, explicando por que regiões que usam cetonas — via transportadores como o MCT2 — apresentam maior resiliência no envelhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37662316/

 Gene dose of apolipoprotein E type 4 allele and the risk of Alzheimer's disease in late onset families  - Dose gênica do alelo tipo 4 da apolipoproteína E e o risco de Alzheimer em famílias com início tardio: Um dos estudos clássicos que estabelecem a associação entre o gene APOE4 e maior risco de Alzheimer, indicando um elo genético entre metabolismo lipídico e neurodegeneração — peça-chave na “conversa metabólica” entre glicose, lipídios e cetonas no cérebro que envelhece. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8346443/

Exercícios físicos e aspectos cerebrais, uma jornada para entender

Exercício físico e cérebro
Ouça o artigo:

Eu me recordo da primeira vez em que percebi como o corpo e a mente dialogam de forma surpreendente. Ao incluir caminhadas regulares pela manhã, notei um vigor inesperado ao enfrentar tarefas complexas durante o dia. As leituras, o trabalho que eu tenho, tudo isso melhorou quando eu comecei a fazer uma caminhada. A respiração ritmada enquanto meus pés tocavam o chão parecia abrir espaço para ideias mais claras, como se cada passo também ativasse caminhos internos do meu cérebro. Essa sensação me convidou a investigar o que estava acontecendo com o meu corpo. Um simples ato de movimentar otimizar processos cerebrais ligados a memória e ao aprendizado.

Logo ficou evidente que o exercício não se resume a queimar calorias. Existe uma confluência de fenômenos biológicos que remodelam estruturas cerebrais também, principalmente em regiões essenciais para orientações espaciais. Quando corro, sinto que meu cérebro, ou regiões do tipo hipocampo, um laboratório íntimo onde nascem e se consolidam recordações de rotas e mapas mentais, recebe estímulos capazes de tornar essas lembranças mais precisas. É curioso como, depois de um período de prática regular, encontro menor dificuldade em memorizar trajetos novos. Mas será que isso é real? Ou pode ser algo relacionado a placebo? Um estudo bem interessante(1) que encontrei sobre como correr melhora a neurogênese, o aprendizado de longo prazo em ratos e isso me fez questionar como isso se reflete em nós humanos.

Observando pessoas de diferentes idades, vi adultos mais velhos relatarem facilidade ao lembrar da localização de objetos em casa. Muitos confessaram que, mesmo sem muita disciplina em academias, ao caminhar diariamente começaram a perceber melhorias nesse tipo de memória. E isso realmente faz sentindo, existe bastante estudo que relaciona a melhora cognitiva em idosos, tanto exercícios aeróbicos(2), como exercícios de resistência(3). Percebi ainda que, quando incluí rotinas de resistência muscular, como exercícios com pesos leves, surgiu outra dimensão de benefícios. A combinação entre atividades aeróbicas e de força parece trabalhar vias distintas, mas complementares, do cérebro, dando mais consistência às minhas impressões de espaço e orientação.

Durante uma sessão de treino com pesos, senti meus músculos responderem imediatamente, mas notei também um efeito mais sutil que se manifestou dias depois. Quando retornei ao estudo de matemática que gosto de passar meu tempo, meu cérebro criou uma facilidade impressionante de fazer cálculos. Foi como se aquela sessão de força tivesse ativado a produção de substâncias que promovem o crescimento de neurônios. E continuo tentando refletir, será que é impressão minha? Eu observei em um estudo bem interessante sobre o fator de crescimento semelhante à insulina 1 ou também chamado de IGF-1, ele aumenta o número de novos neurônios no hipocampo, por exercício(4)

Pesquisando mais um pouco, descobri que certas moléculas durante o esforço físico funcionam como mensageiras. Elas estimulam a formação de novas conexões sinápticas e até o nascimento de células nervosas em áreas específicas.(5) Quando entendo o funcionamento desses mensageiros, queda por queda de suor ganha um novo sentido. Cada gota se converte em um impulso para fortalecer a rede neuronal responsável por aprender e memorizar. E isso é maravilhoso. Cada novo treino você está se protegendo de mal de Alzheimer.

Em treinos de corrida, algo me chamou a atenção, ao reduzir a velocidade nas últimas voltas, meu ritmo cardíaco mantinha-se elevado, mas meu cérebro parecia mais alerta. Passei a usar esse momento para revisar mentalmente conceitos que havia aprendido no dia anterior. A sensação era de que aquele estado pós-treino criava uma janela ideal para consolidar informações. Percebi que não era apenas um sentimento subjetivo, talvez minha dopamina, noradrenalina, e serotonina estivesse aumentando, em alguns estudos(6) existem novos insights para como ele pode estimular processos cerebrais.

Conversei com outras pessoas que faziam corridas ou praticavam alguns exercícios que tinham horários variados. Muitos preferiam correr de manhã cedo, antes de qualquer atividade mental intensa. Outros reservavam finais de tarde para combinar estudo e exercício. Alguns deles comentaram comigo terem notado ganhos em memorização, de números ou no melhor aprendizado de idiomas. Mas eles não deram muita importância a isso. Poderia ter sido um conjunto de outros fatores, não é? Mas isso é muito interessante de refletir também, e pensar sobre. Pode ser que exista uma conexão entre corpo, movimento e consolidação de dados no cérebro.

A disciplina de manter rotina de treinos revelou-se tão vantajosa para minhas recordações de cada coisa que passou em minha vida quanto para tarefas diárias. Lembro-me de viagens que fiz antigamente, como de tarefas de semanas atrás. É algo bastante interessante de pode analisar, as ruas e as casas ficaram um pouco mais nítida para mim. Foi estranho descobrir que, mesmo diante de cantos complexos, meu cérebro elaborava mapas internos que me guiavam com segurança.

Dentro de mim cresceu a convicção de que cada modalidade de exercício traz um efeito singular. Mas é claro, tem alguns estudos interessante que pode até sugerir algumas coisas. A corrida oferece estímulos aeróbicos que favorecem a irrigação sanguínea cerebral, fortalecendo vasos e ampliando o aporte de oxigênio.(6) A musculação, por sua vez, ativa circuitos de liberação de fatores de crescimento capazes de promover adaptações neurais.(7) Ao mesclar ambos, senti-me beneficiado em vários níveis, como se meu cérebro se alimentasse de sangue renovado e de sinais bioquímicos potentes.

Ao compartilhar essas impressões com amigos, vi alguns se surpreenderem ao perceber que não existia contraste entre praticar atividade física e desenvolver habilidades cognitivas. Eles pensavam que o exercício tornaria o corpo saudável, mas não imaginavam as repercussões no cérebro. Talvez até imaginavam, mas não focavam nisso, porque o corpo saudável, o cérebro também fica saudável.

Em um projeto pessoal, decidi documentar minhas rotinas de treino e, ao final de cada semana, fazia um breve relato das melhores recordações daquele período. Descobri que, nas semanas em que mantinha consistência de treinos, as lembranças de detalhes do cotidiano apareciam com mais nitidez. Era curioso notar que até pequenos fatos, como paisagens observadas em percursos urbanos, ficavam presos na minha mente com traços mais nítidos.

Enquanto desenvolvia esses hábitos, percebi que o bem-estar emocional também evoluía. Mas isso é um pouco nítido, todos nós sabemos que exercícios físicos podem nos proporcionar uma sensação de bem-estar. Com uma sensação meio que de preocupação, a melhor coisa era fazer um trajeto pelas ruas que já sentia uma ativação de circuitos interiores que filtrava as tensões. E é claro que no retorno, eu sentia calma e tinha clareza sobre problemas antes nebulosos. A relação entre movimento e bem-estar cognitivo se expressava não apenas em memórias espaciais, mas em estados equilibrados.

Com o passar dos meses, entendi que a prática deveria ser constante para manter ganhos. Quando eu ficava semanas sem me exercitar, notava perda de precisão em lembranças espaciais. O cérebro parecia exigir estímulos regulares para sustentar as estruturas neurais criadas. Voltar aos treinos devolvia o vigor mental e reacendia o prazer de percorrer novas rotas cognitivas. E isso era o mais interessante.

Descobri que, mesmo em dias de menor disposição, um breve período de bicicleta ergométrica por quinze minutos ou menos pode reativar circuitos que promovem memória e clareza. Esse conhecimento transformou minha rotina, pois passei a usar sessões rápidas de exercício como forma de retomar o ritmo mental. A noção de que pequenos gestos trazem retornos significativos reforçou meu compromisso com o cuidado corporal.

Hoje sei que o exercício físico funciona como um tipo de catalisador de neuroplasticidade, sem depender de recurso externo além do próprio corpo em movimento. Cada gota de suor contribui para a remodelagem de circuitos que sustentam o aprendizado, a memória e o equilíbrio emocional. E isso se torna fascinante. É claro que muitos vão focar mais em bem-estar todo dos exercícios, mas nesta postagem eu queria relacionar mais as minhas experiências com os aspectos cerebrais. Se você procurar mais artigos vai encontrar ainda mais pesquisas relacionadas. E mesmo que se você só focar em bem-estar dos exercícios, vai ganhar de bônus um melhor benefício cognitivo.


Referências:

1 - Exercise enhances learning and hippocampal neurogenesis in aged mice  - Estudo demonstra que exercícios aumenta a neurogênese do hipocampo contribuindo para a melhora do aprendizado. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16177036/

2 - Spatial memory is improved by aerobic and resistance exercise through divergent molecular mechanisms - Este estudo demonstra que exercícios aeróbicos e de resistência melhoram a memória espacial por meio de diferentes mecanismos moleculares. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22155655/

3 - The impact of resistance exercise on the cognitive function of the elderly - Esta pesquisa avalia como o treinamento de resistência afeta a função cognitiva em idosos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17762374/

4 - Circulating insulin-like growth factor I mediates exercise-induced increases in the number of new neurons in the adult hippocampus - Este estudo investiga como o IGF-I circulante medeia o aumento de novos neurônios no hipocampo adulto induzido pelo exercício. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11222653/

5 - Hippocampal BDNF mediates the efficacy of exercise on synaptic plasticity and cognition - Este artigo explora como o BDNF no hipocampo influencia a eficácia do exercício na plasticidade sináptica e cognição. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/15548201/

6 - Prolonged exercise induces angiogenesis and increases cerebral blood volume in primary motor cortex of the rat - Este estudo mostra que exercícios prolongados induzem angiogênese e aumentam o volume sanguíneo cerebral no córtex motor primário de ratos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12654355/

7 - Effects of resistance training on insulin-like growth factor-I and IGF binding proteins - Esta pesquisa analisa os efeitos do treinamento de resistência nos níveis de IGF-I e suas proteínas ligantes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11283443/