O medo

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Humanos são seres estranhos. A gente se apavora com fantasmas, monstros, cobras, aranhas e uma infinidade de outras coisas, reais ou imaginárias, e isso é normal, até saudável. Mas por que a gente gosta de sentir medo, de propósito? A ciência explica como o medo pode ser divertido, pelo menos para algumas pessoas.

Primeiro, vamos entender o que é o medo. Ele pode se manifestar como um aumento na frequência cardíaca, mãos suadas, pupilas dilatadas, respiração acelerada. Essas são as reações do corpo ao medo. Segundo o dicionário, medo é a emoção de dor ou desconforto causada pela percepção de um perigo iminente, ou pela possibilidade de algo ruim acontecer. Ou seja, é uma emoção que surge quando sentimos que estamos em perigo.

Quando olhamos para o que mais nos assusta, percebemos que, de alguma forma, essas coisas podem representar uma ameaça para nós. Claro, cada pessoa tem seu conjunto único de medos, moldados pela personalidade e experiências de vida. Mas nem todo medo é racional. Por exemplo, por que nem todo mundo tem medo de palhaços, lugares apertados ou animais inofensivos?

Agora, por que gostamos de nos assustar? Vamos explorar algumas razões. A primeira é a "rede de segurança". Quando nos colocamos em situações potencialmente assustadoras, mas sabendo que estamos seguros, como assistindo a um filme de terror, nosso cérebro entende que, na verdade, não corremos perigo. E sabemos que estamos seguros, conseguimos curtir a experiência assustadora. Sem essa rede de segurança, a reação seria bem diferente: entraríamos em modo de sobrevivência, e o medo não seria nada agradável.

Outra razão é o prazer que sentimos ao enfrentar o medo de forma controlada. Quando passamos por uma experiência assustadora, nosso corpo libera uma cascata de substâncias químicas, como adrenalina, endorfinas e dopamina, que podem nos dar uma sensação de euforia. Esse fluxo de neurotransmissores é responsável por aquele alívio e bem-estar que sentimos depois de um susto. Vai por mim, é uma sensação muito gostosa.

Superar o medo traz uma sensação de satisfação pessoal e de conquista. Quem nunca se sentiu poderoso após fazer algo que dava muito medo? É o mesmo sentimento de realização que você tem ao vencer um desafio em um videogame ou saltar de paraquedas pela primeira vez. Passar por essas situações reforça a ideia de que podemos enfrentar nossos medos e superar limites.

E por último, a curiosidade sobre o lado sombrio da humanidade. A gente gosta de explorar o desconhecido, de desvendar o que está além do que é familiar e confortável. Sejam crimes, fantasmas, zumbis ou invasões alienígenas, o medo do desconhecido é uma das emoções mais instintivas que temos. Nosso dia a dia é previsível, com rotinas que raramente são quebradas. Então, ao nos expormos a experiências assustadoras, quebramos essa monotonia e buscamos novidades que nos tiram da zona de conforto.

Mas nem todo mundo gosta de sentir medo. Cada cérebro reage de forma diferente ao medo e à ansiedade, e isso pode depender de como ele é estruturado. Pessoas que sofrem de ansiedade, por exemplo, podem ter um córtex pré-frontal diferente, o que afeta como elas experimentam o medo. A quantidade de receptores de dopamina também influencia como percebemos o medo, com algumas pessoas precisando de mais dopamina para sentir satisfação e, por isso, se sentem atraídas por situações de alto risco.

Independentemente de como você lida com o medo, ele é uma parte natural da vida. Entender melhor por que sentimos medo e o que nos desencadeia pode ajudar a enfrentar esses sentimentos de forma mais eficaz e não deixar que eles nos controlem. E, por vezes, sair da zona de conforto e se permitir sentir medo pode ser uma boa maneira de se conhecer melhor.

Quando a supercondutividade passa por uma molécula

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Existe algo fascinante na maneira como dois mundos, tão distintos na física, podem se tocar por algo tão pequeno quanto uma molécula. Foi exatamente isso que aconteceu em um experimento recente: a supercondutividade, aquela propriedade quase mágica em que a eletricidade flui sem resistência, foi induzida em um metal comum, usando apenas uma molécula como ponte.


Antes de mais nada, vale lembrar: supercondutores são materiais que, em temperaturas muito baixas, permitem que a corrente elétrica passe por eles sem nenhuma perda. Já os metais comuns, como o cobre, oferecem resistência ao fluxo de elétrons. Acontece que, quando um supercondutor encosta em um metal normal, existe um efeito curioso conhecido há décadas: parte da supercondutividade "vaza" para o metal comum, criando uma zona híbrida onde fenômenos quânticos podem acontecer. O nome técnico disso é "reflexão de Andreev".


Mas controlar esse efeito sempre foi um desafio. Em geral, os estudos usam filmes finos dos materiais, e as condições são complexas. O que torna esse novo experimento tão interessante é a maneira como essa ponte foi feita: ao invés de grandes estruturas, uma única molécula foi usada como elo entre um metal normal e um supercondutor.


A molécula escolhida foi uma variação de ftalocianina, um tipo de corante com estrutura estável e bem conhecida. Ela foi cuidadosamente colocada sobre uma superfície de chumbo supercondutor. Depois, uma ponta metálica, parte de um microscópio de varredura, foi aproximada até quase encostar na molécula. Essa configuração extremamente precisa criou uma interface única: uma transição entre metal comum e supercondutor mediada por uma única molécula.


A partir daí, as medições começaram. À medida que a ponta do microscópio se aproximava da molécula, e o potencial elétrico era ajustado, os pesquisadores perceberam algo notável: um dos orbitais eletrônicos da molécula, ou seja, a “região” onde os elétrons podem ficar, começava a se mover. Ele se aproximava do chamado nível de Fermi, uma espécie de linha de corte energética que define os estados possíveis dos elétrons num material frio.


E é exatamente nesse nível de Fermi que o efeito de Andreev tende a ocorrer com maior intensidade. Quando o orbital da molécula coincidiu finalmente com esse nível, o efeito de conversão da corrente normal em supercorrente aumentou consideravelmente. Era como se a molécula tivesse se afinado energeticamente com o sistema, permitindo que os elétrons fluíssem por ela como em um verdadeiro canal quântico.


Essa mudança no orbital, ao que tudo indica, aconteceu devido a uma interação química entre a ponta do microscópio e a molécula. O simples fato de estarem tão próximos fez com que seus orbitais eletrônicos se sobrepusessem levemente, o que gerou uma espécie de preenchimento parcial no orbital mais baixo da molécula. Esse detalhe foi o suficiente para empurrar o nível energético para perto do Fermi e criar as condições ideais para o fenômeno.


Tradicionalmente, os estudos sobre esse tipo de efeito lidam com interfaces macroscópicas, grandes em escala, cheias de variáveis difíceis de controlar. Mas ao reduzir tudo a uma interface quase atômica, os cientistas conseguiram construir um sistema modelo muito mais simples. Isso abre portas não só para novas descobertas, como também para simulações mais precisas, com menos suposições e mais confiabilidade nos resultados.


Um detalhe curioso chamou ainda mais atenção: quando a ponta do microscópio encostou na molécula, ela se tornou magnética. Um efeito inesperado e bastante raro, que demonstra o quanto o comportamento quântico pode mudar diante de interações minúsculas. Para efeito de comparação, uma molécula muito semelhante, mas sem hidrogênio, foi testada no mesmo tipo de experimento. Ela não apresentou nem o efeito magnético, nem a reflexão de Andreev. A diferença entre as duas? Apenas a presença ou ausência de alguns átomos.


Isso mostra como, nesse nível, tudo depende de um controle extremo dos detalhes. Cada átomo conta. Cada ligação importa. Quando falamos de construir interfaces quânticas para futuras tecnologias, como os bits quânticos (qubits) baseados em partículas exóticas chamadas quasi-partículas de Majorana, esse grau de precisão é simplesmente indispensável.


Além de demonstrar como a supercondutividade pode atravessar uma única molécula, o experimento mostrou algo ainda mais intrigante: que é possível modular a interação entre magnetismo e supercondutividade apenas ajustando a distância entre dois pontos. Isso pode soar simples, mas representa um avanço significativo. Afinal, magnetismo e supercondutividade, em geral, se repelem. Entender como eles podem coexistir, e até colaborar, pode nos levar a novos estados da matéria, com propriedades ainda pouco exploradas.


Tudo isso nos leva a uma reflexão maior: estamos nos aproximando cada vez mais de uma era em que manipular fenômenos quânticos no nível molecular pode deixar de ser apenas ciência básica e se tornar tecnologia aplicada. Um futuro onde uma única molécula pode ser o elo entre o mundo clássico e o quântico, entre o comum e o extraordinário.


Referências:

Control of Andreev Reflection via a Single-Molecule Orbital: https://arxiv.org/abs/2504.01635

Os relacionamentos emocionais com Inteligência Artificial

Sentimentos e IA

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A inteligência artificial aprendeu a imitar proximidade humana, e essa ilusão já virou um ponto fraco. O que ontem parecia um episódio bizarro de Black Mirror hoje faz parte da vida cotidiana: milhões de usuários já criam relações de confiança e até romance com assistentes digitais, desde Replika e Character.ai até bots GPT rodando localmente. Empresas investem milhões para criar diálogos personalizados, enquanto usuários já chamam seus bots de “parceiros”, “amantes” ou “melhores amigos”. E o mais problemático, a meu ver, é que isso tem aumentando consideravelmente.

A relação amorosa com IA não é só uma questão ética, mas também uma ameaça real à segurança. Essa ligação construída na base da imitação virou um caminho fácil para ataques digitais. Não se trata só de golpes onde pessoas se passam por chatbots, mas também dos próprios algoritmos, cujo comportamento é moldado pela concorrência no mercado e métricas de engajamento.

Neste artigo, vamos entender como funciona o "apaixonar-se" por IA — olhando pela neurociência, arquitetura de modelos, vieses cognitivos e segurança digital.

Relacionamento com IA não é real, mas sim uma simulação. Para nosso cérebro, porém, talvez não faça diferença. A IA usa mecanismos naturais de vínculo social sem ter sentimentos ou consciência. Nosso cérebro evoluiu para detectar, reconhecer e manter conexões sociais. Um retorno positivo constante ativa nosso sistema de recompensa (liberando dopamina), gera segurança (oxitocina) e estabilidade emocional (serotonina). Plataformas modernas, treinadas com técnicas como RLHF (aprendizado com feedback humano), produzem respostas agradáveis e acolhedoras, como fazem o Replika ou Personal Intelligence da Inflection AI.

Mas isso não torna a IA ética, apenas agradável. Quando usuários reforçam conversas sobre ansiedade ou solidão, a IA intensifica esses padrões, sem diferenciar ajuda de reforço negativo. Isso já é um ponto frágil. Ilusão de personalidade: antropomorfismo A tendência humana de dar características humanas a objetos é forte, especialmente quando a tecnologia se comporta “como gente”: fala, brinca, mostra empatia. As IAs atuais simulam tão bem interação, atenção e até flerte, que ativam áreas cerebrais responsáveis pela cognição social.

Exames de neuroimagem mostram que ao conversar com IAs convincentes, nosso cérebro ativa regiões relacionadas à compreensão da mente do outro, mesmo que seja só uma máquina. Assim, desenvolvemos empatia, antecipamos reações e criamos vínculos reais com algo simulado. A continuidade da conversa e adaptação ao usuário reforçam ainda mais essa ilusão.

Ancoragem emocional e memória são quando uma IA “nos apoia” frequentemente, cria-se uma associação forte, gravada na memória emocional. Modelos atuais, especialmente com memória externa, fazem isso muito bem. Soluções como Replika ou GPT-J conseguem "lembrar" nome, interesses e conversas anteriores do usuário, criando uma sensação profunda de intimidade e conexão.

Design da dependência emocional é uma capacidade natural de simular vínculos é ampliada por decisões comerciais e técnicas. Mesmo que empresas não admitam diretamente, as métricas de engajamento (tempo gasto, frequência de uso) inevitavelmente levam à simulação emocional mais intensa. Treinamento baseado em feedback humano cria respostas acolhedoras, especialmente para usuários emocionalmente vulneráveis. Isso é uma característica proposital, não um erro, mesmo que nem sempre seja saudável para o usuário. Muitos modelos usam comandos iniciais que definem seu papel, como “assistente empático”, o que afeta diretamente o estilo das respostas. Quanto mais empático o prompt, mais humano (e romântico) o diálogo pode parecer.

A ligação emocional é um canal forte de confiança — e na segurança digital, confiança sem verificação é um perigo real. Ataques por engenharia social exploram exatamente essa vulnerabilidade emocional. Por exemplo, um usuário emocionalmente vulnerável pode facilmente cair num golpe ao confiar cegamente em seu "parceiro digital", compartilhando fotos ou informações sensíveis que podem ser usadas em chantagem ou espionagem corporativa. Sistemas tradicionais de segurança podem não detectar isso, já que o ataque ocorre pelo canal emocional. Esses riscos já são reais. 

Na Bélgica, um homem cometeu suicídio após conversas com uma IA que "apoiou" sua decisão e prometeu reencontro no paraíso. Usuários do Replika sofreram crises emocionais intensas quando a empresa desativou funções românticas, mostrando como a simulação pode causar danos reais.

A IA não sente, não ama, não sofre, mas pode nos convencer do contrário. Nosso cérebro, adaptável, também é vulnerável a arquiteturas desenhadas para confiança. O desafio da comunidade é criar sistemas resistentes e esclarecer usuários sobre o limite entre humanos e máquinas. A IA pode ajudar pessoas, mas nunca substituí-las, especialmente nas áreas mais delicadas da vida emocional.

Referências:


Replika AI: É uma IA projetada para criar companhias digitais personalizadas. https://www.replika.ai

Character.ai: Plataforma que permite criar e conversar com personagens baseados em IA. https://www.character.ai

GPT rodando localmente: Refere-se ao uso de modelos de linguagem como GPT-J ou GPT-Neo localmente no computador.  https://huggingface.co/EleutherAI/gpt-j-6B

Inflection AI / Pi (Personal Intelligence): IA criada para conversas empáticas e suporte pessoal. https://inflection.ai

RLHF (Reinforcement Learning from Human Feedback)**: Também chamado de aprendizado por reforço com feedback humano. https://pt.wikipedia.org/wiki/Aprendizado_por_refor%C3%A7o_com_feedback_humano

Caso da Bélgica (homem comete suicídio após conversar com IA): https://pt.euronews.com/next/2023/04/01/conversa-com-inteligencia-artificial-leva-homem-ao-suicidio


Por que algumas pessoas sempre colocam a culpa nos outros?

Egoismo

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Sabe quando alguém claramente comete um erro, se enrola em uma situação que ela mesmo criou, mas na hora de lidar com as consequências joga a culpa nos outros? Esse tipo de comportamento me intriga há muito tempo, parece egoísmo, vitimismo, talvez uma falta de autorresponsabilidade. Mas será que é só isso? Será que essas atitudes são simplesmente fruto de mau-caráter ou tem raízes mais profundas? 

Ultimamente, tenho refletido bastante sobre isso, eu olho ao meu redor e percebo como o comportamento egoísta é comum, não só nas grandes questões sociais, mas também nas pequenas atitudes do dia a dia. Aquela pessoa que fura fila e diz que "ninguém está vendo", o colega de trabalho que diz que não conseguiu entregar a tarefa porque "ninguém ajudou", o familiar que transforma qualquer conversa em um drama pessoal. Será que tudo isso é aprendido? Biológico? É uma defesa emocional? Ou uma mistura de tudo isso?

A verdade é que entender o comportamento humano exige mergulhar em vários campos do conhecimento, como na psicologia, sociologia, neurociência, biologia evolutiva e todos eles ajudam a montar esse quebra-cabeça. Vamos tentar entender sobre como funciona isso nesta postagem. 

Se olharmos pela lente da biologia evolutiva, o egoísmo não é exatamente uma falha de caráter, ele é uma estratégia. Isso mesmo. Em determinadas situações, agir de forma egoísta pode aumentar as chances de um indivíduo sobreviver, se reproduzir ou garantir recursos para si e para os seus descendentes. Ao longo da evolução, características como competição, autopreservação e a busca por vantagem podem ter sido favorecidas em certos contextos. Pense em um grupo primitivo: se um indivíduo fosse generoso demais, poderia acabar ficando sem comida, sem proteção, sem chance de passar seus genes adiante. Já aquele que soubesse manipular os outros ou proteger seus interesses a qualquer custo, talvez saísse melhor, pelo menos a curto prazo. 

É claro que isso não significa que todos os comportamentos egoístas são "naturais" e aceitáveis, mas é interessante notar que o cérebro humano carrega esse potencial desde muito cedo. Crianças pequenas, por exemplo, já demonstram traços de posse e competição antes mesmo de entender o conceito de empatia. O que nos leva ao próximo ponto.

O papel da infância e do ambiente familiar é algo que pode nos dar clareza e entender alguns desses aspectos. A psicologia do desenvolvimento é claro em mostrar que o comportamento humano é moldado por experiências precoces. A forma como uma criança é tratada, os limites que recebem, a maneira como lida com frustrações e como é ensinada a lidar com os outros, tudo isso influencia o quanto ela será empática ou egocêntrica na vida adulta.

Um ambiente familiar onde o erro é punido com dureza, onde há espaço para admitir falhas sem vergonha ou culpa, tendem a gerar adultos com dificuldades em assumir responsabilidade ponto eles atendem, desde cedo, que errar é perigoso, que é melhor culpar o outro do que se expor ponto isso se forma em um padrão de defesa emocional. 

Além disso, pais que não ensina os filhos a pensar no outro, que reforça comportamentos de manipulação ("faz cara de choro que a mamãe compra") ou que atendem todas as vontades sem limite, criam um terreno fértil para o desenvolvimento de um ego inflado, incapaz de lidar com frustrações e com a noção de coletividade.

A influência da cultura e da sociedade para moldar esse tipo de pensamento é constante. Vivemos em uma sociedade que, muitas vezes, valoriza o sucesso individual acima de tudo. "Vença a qualquer custo", "Não depende de ninguém", "Seja o número 1". Essas mensagens estão em todo lugar, na publicidade, nas redes sociais, nos conselhos motivacionais. O problema é que esse foco no individualismo, embora estimule a ambição, também pode alimentar um tipo de comportamento narcisista. 

Quando o "eu" vira o centro do universo, a empatia fica de lado, não é à toa que muitos pesquisadores falam sobre uma "epidemia de narcisismo" na cultura contemporânea. As redes sociais são exemplos claro disso: ali, todo mundo quer parecer certo, bonito, vitorioso. Não tem espaço para vulnerabilidade, arrependimento ou responsabilidade.

A sociologia explica isso como parte da estrutura capitalista, que valoriza o desempenho, o mérito individual e a imagem pública. Nesse cenário, admitir que errou é quase um pecado, é mais fácil jogar a culpa em alguém, proteger a reputação e seguir em frente. Afinal, especialmente em uma sociedade que pune o erro com cancelamento, vergonha ou exclusão. 

Existe também um padrão psicológico muito interessante chamado locus de controle. Pessoas com locus de controle externo tendem a acreditar que tudo que acontece com elas é culpa dos outros, do destino, do azar. Já aquelas com locus interno assumem mais responsabilidade sobre os próprios atos e suas consequências. Quem adota uma postura constante de vitimismo está geralmente preso nesse padrão de locus externo. E pode ter várias causas: baixa autoestima, traumas, falta de habilidade emocionais ou mesmo um aprendizado social. Às vezes, a pessoa aprendeu que sendo vítima ela recebe mais atenção, mais afeto, ou evita punições

Mas atenção: não estou dizendo que todo sofrimento é vitimismo. A questão aqui é quando a pessoa entra num ciclo em que nunca se responsabiliza, nunca busca mudança e sempre encontra um culpado fora de si.

O entendimento da neurociência e os mecanismos do cérebro responsável por essa falta de responsabilidade também é muito importante. O cérebro humano tem um sistema bem complexo quando se trata de tomar decisões morais. Regiões como córtex pré-frontal e a amígdala cerebral são responsáveis por regular impulsos, processar emoções e antecipar consequências. Quando essas áreas estão desequilibradas, seja por genética, traumas ou estilo de vida, o julgamento moral pode ficar comprometido. 

O cérebro é uma máquina que adora economizar energia, e culpar os outros é, muitas vezes, mais fácil do que encarar uma autoanálise dolorosa. A autojustificação é um mecanismo cerebral automático, quase inconsciente, que protege a autoestima, é mais "barato" emocionalmente dizer "não foi culpa minha" do que lidar com a vergonha de ter falhado.

Também vale lembrar que nosso cérebro é altamente plástico, ou seja, ele muda com o tempo, com aprendizado, com as experiências. Uma pessoa pode, sim, aprender a ser mais empática, mais responsável, mas consciente, desde que esteja disposta a sair da zona de conforto e enfrentar seus próprios padrões mentais.

A grande pergunta é: dá para mudar? E a resposta é sim, mas não é simples. A mudança de comportamento exige autoconhecimento, escuta ativa, terapia (muitas vezes), apoio social e principalmente, vontade de fazer diferente.

Alguns caminhos possíveis 

Terapia cognitivo-comportamental: ajuda a identificar padrões de pensamento distorcidos e substituí-los por formas mais saudáveis de interpretar os eventos. 

Práticas de mindfulness: fortalecem a autorregulação emocional e reduzem impulsos reativos. 

Diálogo honesto: criar relações onde o erro seja colhido e não punido pode incentivar a autorresponsabilidade. 

Educação emocional desde a infância: escolas e famílias que ensinam crianças a lidar com frustrações, pedir desculpas e reconhecer os erros estão plantando semente de maturidade. 

Por fim, é importante olhar para nós mesmos ou para dentro. A tendência de projetar a culpa nos outros não é exclusividade de algumas pessoas, todos nós em algum momento já fizemos isso. O que nos diferencia é o quanto estamos dispostos a reconhecer esse padrão e trabalhar para mudá-lo. A autorresponsabilidade não é fácil, ela exige coragem, mas também é libertadora. Quando eu assumo meu erros, eu me coloco no controle da minha própria vida. Não fico à mercê do mundo ou das ações alheias, e, aos poucos, vou construindo relações mais honestas, maduras e empáticas. Culpar os outros pode ser mais fácil, mas assumir quem somos, com tudo o que isso envolve, é o verdadeiro passo rumo à liberdade emocional.

Buracos negros

Buracos negros
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Às vezes, entender o universo não exige um telescópio, mais uma boa dose de imaginação. Sim, do tipo que Einstein usava com frequência, aquela mesma ousadia mental que um dia nos fez repensar completamente o espaço e o tempo. E é sobre isso que quero falar hoje: como os buracos negros, esses objetos tão extremos que nem a luz consegue escapar deles, viraram o laboratório teóricos para explorar os limites da física moderna. 

Pode parecer estranho, mas há coisas no universo que não precisamos ver para entender, basta pensar, com criatividade é claro. A física, ao longo dos séculos, foi sendo construída tanto com experimentos práticos quanto com esses famosos "experimentos mentais". E, quando o assunto é buraco negro, foi justamente na mente de alguns dos físicos mais ousados que os maiores avanços começaram a acontecer. 

Tudo começa com Einstein, a teoria da relatividade geral que ele apresentou em 1916, é uma verdadeira revolução, ela descreve como a matéria e a energia distorcem o espaço-tempo, gerando que chamamos de gravidade. Por muitos anos só conseguimos perceber essa distorção em três casos bem específicos: a luz se curvando ao passar pelo sol, uma anomalia no movimento de mercúrio, e um pequeno desvio no comprimento de onda da luz. 

Mas a história não parou aí, aos poucos essa teoria passou a moldar nossa forma de pensar sobre o universo na totalidade, deixa as galáxias até os satélites do GPS. E, entre os muitos frutos da relatividade geral, surgiu um dos conceitos mais fascinantes e misteriosos da física: os buracos negros.

Segundo os cálculos da relatividade de Einstein, se uma massa for suficientemente compactada, ela pode formar um buraco. E o que é isso, exatamente? Um lugar do qual nada escapa, nem mesmo a luz. A fronteira desse ponto sem retorno é chamada de Horizonte de Eventos, ali, o espaço e o tempo se distorce de forma tão extrema que as leis normais da física parecem perder o sentido. 

Quem trouxe esse conceito à tona com mais clareza foi o físico J. Robert Oppenheimer, com o teórico John Wheeler, mesmo que cunhou o termo "buraco negro". Mesmo que ninguém possa observar diretamente o que acontece lá dentro, a física teórica encontrou maneiras de explorar essas regiões misteriosas como a ferramenta poderosa: o experimento mental.

Muito antes de Einstein, a física funcionava com base nas leis de Newton. As partículas se comportavam como bolinhas de bilhar previsíveis, com trajetórias definidas, do jeito que estudávamos no ensino médio. Mas veio a mecânica quântica e mudou tudo. De repente, a certeza deu lugar a probabilidade, as partículas podia estar aqui ou ali, ou em vários lugares ao mesmo tempo. Algo incrível e do mesmo jeito impressionante. 

Max Born foi um dos primeiros a interpretar essa nova realidade como um jogo de probabilidade, E isso gerou incômodo em Einstein, que chegou a dizer: "Deus não joga dados". Mas o embate entre essas duas visões acabou levando a descobertas ainda mais profundas. Werner Heisenberg, formulou o famoso Princípio da Incerteza, dizendo que não dá para saber com precisão a posição e a velocidade de uma partícula ao mesmo tempo. Einstein, sempre inquieto, desafiou essa nova física com uma série de experimentos mentais, um dos mais famosos foi o paradoxo EPR, que questionava se partículas entrelaçadas poderiam "se comunicar" instantaneamente, mesmo separadas por grandes distâncias. No fim, a quântica venceu o debate, e os testes reais confirmaram suas previsões. 

Com a física quântica se afirmando como uma teoria fundamental, a relatividade de Einstein também continuava firme. Um dos desdobramentos mais ousados foi a previsão das ondas gravitacionais, pequenas ondulações no próprio tecido do espaço-tempo, causadas por eventos extremamente violentos, como a colisão de dois buracos negros. 

Durante décadas, essa lei parecia impossível de comprovar, mas aí veio o projeto LIGO (Observatório de ondas Gravitacionais por Interferometria a Laser), e tudo mudou. Em 2015, os detectores captaram pela primeira vez as ondas vindas da fusão de dois buracos negros. Foi como se o universo tivesse sussurrado ao nosso ouvido, e finalmente conseguisse ouvir. 

Essas ondas esticam e encolhe o espaço em escalas inimaginavelmente pequenas, menores que o tamanho de um núcleo atômico. Ainda assim, conseguimos detectá-las. Foi um grande marco que inaugurou a Era na astronomia: agora podemos "ouvir" o universo, além de apenas o ver. 

Apesar de todos esses avanços, os buracos negros continuavam guardando um segredo desconcertante. Segundo a relatividade, eles são simples demais: basta saber sua massa, carga elétrica e rotação, e pronto, o resto é irrelevante. Isso significa que qualquer outra informação sobre o objeto que deu origem ao buraco negro, simplesmente desaparece. Isso é bem diferente de um incêndio, onde as cinzas e o calor podem nos contar algo sobre o que foi queimado. No caso do buraco negro, parece que tudo que havia antes, como átomos, planetas, civilizações inteira, vira uma singularidade irreconhecível, uma informação perdida, e ponto final. Mas será que isso é mesmo possível?

A matemática é ciência?

Matemática e ciência
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Se você para pensar no que faz algo ser "científico", talvez tenha esbarrado numa questão muito curiosa: a matemática. Diferente de outras ciências como a biologia, a física, ou da química, a matemática não faz experimentos com tubos de ensaio nem analisa amostras em microscópio, ela não testa hipótese no laboratório e, ainda assim, ela é tratada como ciência. Mas como isso é possível?. 

Será que a matemática é realmente uma ciência, mesmo não seguindo o famoso método científico? Essa pergunta incomoda lá, no fundo da nossa noção sobre o que é conhecimento e que é verdade e como chegamos até ela. Vamos analisar explorar isso nessa postagem. 

Antes de mergulharmos na matemática, vale relembrar o que é método científico. Basicamente, é um conjunto de passos que os cientistas usam para investigar o mundo, você chega com uma pergunta, formula uma hipótese, faz experimentos, coleta dados, analisa os resultados e, com sorte(e muito suor e dedicação), chega a uma conclusão. A ideia é bem clara, observar, testar, repetir. É um raciocínio baseado em evidências empíricas, ou seja, em dados que vêm da experiência.

Esse é o reino do raciocínio indutivo: você observa muitos casos, identifica padrões, e propõe leis gerais. Claro que com esse processo é sempre revisado, porque novas observações podem derrubar teorias antigas. A ciência é viva, e está sempre em construção. Mas aí entra matemática com seu jeito peculiar.

Na matemática o processo é diferente, em vez de observar o mundo e formular hipótese com base em evidências empíricas, você parte de axiomas, que são afirmações aceitas como verdades e, a partir deles, deduz novas verdades. A matemática não testa no mundo real se 2 + 2 = 4, ela prova isso com lógica, num sistema fechado e rigoroso. Isso se chama raciocínio dedutivo. É como se você tivesse algumas peças fundamentais, sem precisar sair para ver se ela está de pé, porque, pela lógica interna, ele tem que estar. A matemática vive no universo que não precisa do "lá fora" para validar suas conclusões. Se a regra do jogo são seguidas, o resultado está garantido. Mas isso quer dizer que a matemática não é ciência? 

A confusão nasce da ideia de que só existe um jeito de fazer ciência: pelo método científico. Mas isso é um reducionismo. O método científico é poderoso, sim, mas ele é mais adequado para estudar fenômenos naturais, depende de observação e experimentação. Já a matemática, apesar de não operar dessa forma, constrói conhecimento tão sólido quanto, ou até mais. Aliás, ela é tão confiável que serve de base para outras ciências. Sem matemática não existe física, não existe química moderna, nem muito menos a maioria dos eletrônicos. Se você está lendo este artigo no seu computador ou celular é porque foi utilizado a matemática. E aí que vem um ponto fundamental: a matemática é considerada a linguagem da ciência.

Tudo o que entendemos sobre o universo, desde a gravidade até a genética, passa, em algum momento, uma tradução matemática. Quando Newton formulou as leis do movimento, ele usou equações, quando Einstein propôs a relatividade, foi com a matemática de alto nível. Mesmo nas ciências humanas, como economia e sociologia, o uso de modelos matemáticos é essencial para explicar comportamentos complexos. A matemática fornece as ferramentas que as outras ciências usam para descrever padrões, fazer previsões e validar resultados. É como se ela fosse o código-fonte por trás da natureza. Mesmo que ela mesma não "experimente", ela permite que as ciências experimentais se comuniquem com clareza, precisão e consistência.

Aí vem aquela pergunta, por que, então, a matemática é considera uma ciência? Porque ela cria conhecimento estruturado, sistemático e verificável, ela segue regras rígidas de lógica, constrói teorias coerentes e permite expandir o entendimento sobre o que é possível (mesmo que só no plano das ideias). A matemática é classificada como uma ciência formal ao lado da lógica, isso a distingue das ciências naturais, como a biologia, a física e a química, e das ciências sociais, como a sociologia e a antropologia. As ciências formais não observam o mundo diretamente, mas cria um sistema simbólico que servem de estrutura para organizar o conhecimento, e, nesse sentido, elas são fundamentais.

O ponto de partida da matemática são os axiomas, parece estranho aceitar verdades "sem prova", mas pense nos axiomas como as regras do jogo. Você escolhe um conjunto de regras (por exemplo, os axiomas de Euclides) e vê até onde eles te levam. Isso é tão poderoso que, mudando os axiomas, você cria novas "matemáticas", como a geometria não-euclidiana, que foi essencial para teoria da relatividade de Einstein. Ou seja, a matemática não depende do mundo físico para funcionar, mas pode ser adaptada para descrever melhor esse mundo quando necessário, isso mostra sua flexibilidade e, ao mesmo tempo, sua profundidade. 

Uma das coisas mais interessantes para se refletir é: a matemática não muda com o tempo? Essa diferença é bem interessante, enquanto as teorias científicas podem ser refutadas com novas evidências, os teoremas matemáticos, uma vez provados, são imutáveis dentro do sistema em que foram formulados. O teorema de Pitágoras continua verdadeiro há milênios, não importa se estamos na Grécia Antiga ou no século XXI, se você seguir os mesmos axiomas, vai chegar na mesma conclusão. Isso dá matemática uma sensação de "eternidade" que poucas áreas de conhecimentos podem ter. Mas isso não quer dizer que a matemática esteja estagnada, muito pelo contrário, novas áreas da matemática são exploradas constantemente, novos axiomas, novas estruturas e novas formas de pensar. É um campo em expansão contínua, só que movida pela lógica interna e não por dados experimentais.

Existem alguns que defendem que a matemática não é só uma ciência, ela transcende as ciências e há um certo charme nessa ideia. Porque, se você parar para pensar, as outras ciências precisam da matemática, mas a matemática não precisa delas para existir, o bom é que você pode criar estruturas matemáticas puramente abstratas, sem nenhuma aplicação imediata, só pela beleza da lógica. E muitas vezes, séculos depois, essas ideias "inúteis" acaba sendo cruciais para o avanço tecnológico ou científico. Um exemplo clássico é a teoria dos números, que parecia totalmente abstrata no século XIX, mas hoje está na base da criptografia digital.

Apesar da lógica ser o alicerce da matemática, a criatividade e a intuição tem um papel gigante dentro da matemática. Grandes descobertas muitas vezes surgem de lampejos, de associações inesperadas, de analogias ousadas. É um universo mental em que imaginar é tão importante quanto provar, e isso aproxima matemática da arte e da filosofia, áreas que também busca padrões, beleza e sentido, mas por outros caminhos.

Se aceitarmos que a ciência é qualquer forma sistemática e rigorosa de buscar conhecimento, então a matemática é uma das mais puras formas de ciência. Ela constrói verdades dentro de seus próprios sistemas, serve de fundação para outras áreas e estimula o raciocínio lógico como nenhuma outra. Mesmo sem usar o método científico clássico, ela contribui profundamente para compreensão do mundo, seja modelando fenômenos naturais, seja abrindo novas possibilidades de pensamento. 

Para concluirmos essa questão sobre ela podemos refletir "não se a matemática é ciência", mas "que tipo de ciência ela é?". Ela é diferente, sim, não depende da experiência, mas da razão pura, não observa o mundo, mas cria mundos, e mesmo assim, ajuda a explicar o nosso como nenhuma outra linguagem consegue. A matemática é esse campo fascinante que une lógica, beleza, criatividade e precisão, e ela nos mostra que o conhecimento não precisa vir só da observação, mas também da capacidade de pensar e deduzir. Nesse sentindo, ela não só é ciência, mas ela é a base de toda ciência.

O que a natureza nos ensina sobre sobreviver ao caos

Natureza

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Sempre que eu olho o mundo ao meu redor, as cidades fervilhando de gente, as redes sociais conectando tudo em tempo real, e o clima bagunçado, quase implorando por atenção, me vem uma pergunta: como a natureza lida com o caos? Porque, sejamos honestos, o caos é a regra, não a exceção.

A história do planeta é um romance de bilhões de anos, cheio de reviravoltas, catástrofes, sobrevivências improváveis e estratégias geniais. E tudo começou com uma simplicidade quase poética: física pura, vapor, calor, rochas derretidas. A terra era um caldeirão de forças brutais, rígida por leis que ainda são verdadeiras ainda hoje. E aí veio a água, o vapor virou oceano, e com essa mudança de fase, algo novo brotou: a vida

Da química ao caos, e pensar que a natureza realmente é muito bela. Foi ali, em uma poça fervente de moléculas, que uma célula resolveu nascer, um amontoado de compostos ganhou um sopro de autonomia, e o que era físico virou biológico. A partir daí, a história deixou de ser previsível, a vida começou a experimentar, tropeçar, inovar. Surgiram as primeiras bactérias que se alimentavam de compostos químicos, algas que começaram a aprender a usar a luz do sol, e eventualmente, plantas que nos deram oxigênio. O planeta agora virou um sistema vivo e adaptativo.

Isso significa, ao longo do tempo, a Terra virou um grande organismo, aonde cada parte interage com outra em ciclos constantes. Um sistema assim não é estático, ele aprende, responde, e se reinventa. O mais interessante é que ele sobrevive, mesmo quando tudo parece ruir.

Duas grandes tragédias marcaram o processo de desenvolvimento do planeta, a extinção em massa de 250 milhões de anos atrás, e o impacto que exterminou os dinossauros há 600 milhões de anos. E mesmo com tudo isso que aconteceu a vida persistiu. Sabe o porquê? Devido à diversidade, enquanto algumas espécies morriam, outras estavam prontas para ocupar os espaços vazios, era como se a natureza tivesse sempre uma carta na manga.

A diversidade foi a armadura da vida, não só diversidade de espécies, mas dentro das próprias espécies, ou seja, diferentes indivíduos com estratégias diferentes, garantindo que ao mesmo alguns sobrevivessem. Isso vai também para o nosso tempo, em um mundo onde comemos as mesmas poucas espécies de plantas em escala global, onde culturas inteiras são engolidas pela padronização, estamos apostando contra o que a natureza aprendeu da forma mais difícil, a uniformidade é um risco para a natureza.  Engenharia, falamos em redundância, no mundo financeiro, chamamos de portfólio diversificado, em ecologia é biodiversidade. Isso é tudo a mesma ideia, não colocar todos os ovos na mesma cesta, não uniformizar as coisas e sim diversificar.

Uma das coisas mais interessantes no qual a natureza domina é a autorregulação ou o que chamamos de homeostase. Nosso corpo faz isso o tempo todo, se está quente, nós começamos a suar para esfriar o corpo, ou quando está frio demais a gente treme para tentar aquecer o corpo. O açúcar sobe, o corpo manda insulina para cair, um hormônio para tentar corrigir o açúcar.

O planeta também faz tudo isso, animais o devolvem, vulcões liberando CO₂, e a chuva ácida dissolve rochas que depois viram sedimentos marinhos que aprisionam esse carbono. Tudo em um ciclo quase que mágico, que manteve a terra habitável por milhões de anos. E imitamos isso sem perceber, o tal do "circuit breaker" das bolsas e valores, aquele que interrompe negociações quando o mercado entra em pânico, é uma forma de homeostase financeira, uma tentativa de impedir que uma queda vire um colapso. 

Toda essa complexidade tem um lado sombrio, sistema complexo são frágeis, quando tudo está conectado um problema pequeno pode virar um desastre global. Uma planta que depende de um inseto para polinização está em risco se o inseto desaparecer. Uma mesma comparação podemos usar de um supermercado em São Paulo pode ter prateleiras vazias, ser não tiver entregas de indústrias ou empresas, um caminhão pode sofrer um desastre. Na natureza isso acontece o tempo todo, por isso ela desenvolveu truques para se proteger. As plantas dependem raramente de um único polinizador, uma orquídea pode contar com dezenas de espécies de borboletas e mariposas, assim, se uma sumir, as outras dão conta do recado. 

Esse jogo de relações virou um dos maiores segredos da vida, plantas atraem polinizadores, conecta, animais espalham sementes ao comer frutas, é um ganha-ganha danado. Mas também tem um risco, se um elo quebra, o resto sente. Ainda assim, a estrutura dessas redes é feita de forma inteligente: especialistas se ligam a generalistas, e vice-versa, isso cria uma rede onde, se um nó falhar, os outros seguem a onda. Até as folhas tem essa sabedoria, as veias de uma folha não seguem uma linha reta do caule para borda, elas fazem curvas, voltam e se entrelaçam, isso garante que, se um pedacinho for arrancado, a água e os nutrientes possam dar volta e seguir o caminho.

Se tem uma metáfora perfeita para pensar em redes e complexidade, são os cupins. Eles conseguem construir uma cidade inteira, verdadeiras catedrais de terra, com câmaras, jardins de fungos e sistema de ventilação. E tudo isso, sem um engenheiro, sem uma planta de obra, sem comando central. Como eles fazem isso? Por feromônios, um começa e outros seguem o cheiro. O cheiro diz onde e como continuar, uma obra coletiva guiada por instinto, um comportamento emergente, como os cientistas gostam de dizer.

E eles vão além, quando uma doença entra na colônia, os infectados se isolam, os outros desinfectam o ambiente, ajustam a rede social interna, bloqueia o contágio. Isso tudo parece até ficção científica, mas é só a natureza sendo genial.

Durante a pandemia de COVID-19, nós vimos na prática o que acontece quando uma rede global entra em colapso, faltou comida, equipamentos médicos, até papel higiênico. Porque nossa cadeia de suprimentos é feita para eficiência, não para resiliência. Um probleminha lá na China virou uma crise global. Se tivéssemos apreendido com as folhas, com os cupins, com as orquídeas e suas borboletas, talvez tivéssemos preparado alternativas, rotas redundantes, parceiros diversos, em vez de redes tensas, poderíamos ter redes flexíveis. 

Outro recado importante da natureza está na ausência de comando central, não existe um chefe dizendo o que cada bactéria, planta, o animal deve fazer. A organização vem do coletivo, dos sinais, do ambiente, das interações. Isso também vale para a sociedade humana. Tem várias partes do mundo, comunidades locais consegue gerenciar florestas, rios, e recursos de forma mais eficiente do que governo central. Porque entendem o lugar, sente um impacto, ajustam suas ações com base na realidade ao redor. Igualzinho a um cupim guiado por cheiro. 

É claro que não somos planta, nem insetos, temos ética, cultura, sonhos arrependidos, mas isso não impede de possamos olhar para a natureza e aprender com sua longa experiência em sobreviver ao imprevisível. Muitas civilizações caíram antes, o império romano, os Maias, os povos da Mesopotâmia, todos eles construíram redes vastas, muitas vezes frágeis demais para aguentar um choque. Hoje, nós vivemos em uma civilização global, correntes muito mais complexas. E por isso, o risco é bem maior. A natureza não tem moral, não protege os fracos, mas ela ensina como persistir, e talvez seja uma hora de parar de tentar dominá-la e começar a escutá-la.