O que ameaça a bolha da inteligência artificial

Microchip IA
 
Nos últimos meses, algumas das maiores empresas de tecnologia do planeta dispararam em valor. A sensação é de que a inteligência artificial, que vem ganhando velocidade como quem troca de marcha na estrada, pode transformar a vida diária de um jeito que, dez anos atrás, soaria exagero. Dentro da saúde onde a inteligência artificial detecta padrões antes do médico perceber, contratações mais rápidas quando o currículo não precisa se perder em pilhas, descoberta científica que cruza bases de dados como quem varre um oceano com um sonar. Dentro de tudo isso há expectativa no ar, e expectativa mexe com preços. A pergunta-âncora que nos acompanha daqui em diante é simples: o que estamos realmente comprando quando compramos IA?

A valorização recente de empresas que lideram essa corrida chama atenção, dentro disso, a OpenAI passou a ser avaliada na casa dos US$ 500 bilhões, um salto em relação ao número de outubro do ano passado. Outra como a Anthropic triplicou sua avaliação em um intervalo curto. O tom é de euforia, o tipo de euforia que costuma esvaziar salas e encher manchetes. Ao mesmo tempo, autoridades monetárias sinalizam cautela: o Banco da Inglaterra levantou a hipótese de uma “correção” rápida, correção de mercado é aquela queda brusca que ajusta preços quando crescem demais, como a conta de luz que vem alta e força o corte do ar-condicionado. O aviso não é sobre tecnologia em si, mas sobre o ritmo dos preços das empresas que a vendem.

É possível olhar para o painel de cotações e perguntar se esses valores são um reflexo de lucros presentes, mensuráveis no fim do trimestre, ou se são fruto de entusiasmo, confiança e um pouco de torcida sobre o que a IA poderá fazer amanhã. Em termos práticos: a avaliação de hoje representa a IA que existe ou a IA que imaginamos? A resposta definitiva costuma chegar tarde, quando a bolha estoura ou não estoura e a esta altura, os sinais já piscam.

Com o distanciamento do tempo, tudo que acontece durante uma bolha parece otimista demais. Experimente uma substituição: troque “IA” por “computadores” em manchetes recentes. Muita coisa fica ingênua de repente, como promessas de que a presença de máquinas resolveria, sozinha, problemas de gestão que ainda dependem de gente, processo e tempo. Prever o caminho de uma tecnologia em marcha, porém, é tarefa difícil. No ano 2000, havia quem imaginasse a internet como modismo que perderia fôlego, pouco antes de a bolha pontocom atingir o pico. O exagero na subida não impediu que a rede se tornasse infraestrutura básica do cotidiano, tão invisível quanto a água que corre no encanamento.

As bolhas, quando estouram, não mudam necessariamente o destino final da tecnologia. A internet não sumiu do mapa porque as ações caíram. O problema é que bolhas bagunçam a estrada. Preços desabam, planos de aposentadoria sentem o tranco, vagas desaparecem, investimentos produtivos viram poeira de curtíssimo prazo. Muitas dessas coisas acaba sufocada pelo barulho: projetos sólidos perdem espaço para apostas que rendem manchetes fáceis, e capital se concentra em poucos nomes, como se todo o futuro coubesse em meia dúzia de logotipos. Quem sente no dia a dia são pessoas de carne e osso sendo eles consumidores que veem serviços sumirem, operadores que encaram cortes de orçamento, gestores pressionados a justificar gastos que ainda não viraram resultado.

Hoje já existe ao menos um primeiro sinal clássico de bolha: a escalada veloz das avaliações. Se vier uma correção e os preços devolverem parte desse ganho, o enredo fica parecido com outros que já vimos. Se a subida seguir firme e sustentada, talvez estejamos diante de um novo patamar de mercado, onde a tecnologia de base como modelos, chips, datacenters, redes etc, podem se torna o eixo de uma economia inteira. Também há um cenário intermediário como as avaliações estabilizam e param de subir. O que acontece a partir daí depende da crença que sustentou a compra. Muitos investiram porque acreditou que o preço sempre subiria? Ou porque havia uma conta de lucro futura com premissas robustas?

Vale destacar do que é feita essa crença, quando o Banco da Inglaterra diz que as avaliações podem estar “esticadas”, a palavra importa. Aqui “Esticada” quer dizer que o elástico da expectativa foi puxado além do que os números atuais sustentam, como um caminhão que fica carregado demais e passa a gastar combustível que não estava nos planos. Investimento, no fundo, é uma aposta de que a IA vai aumentar a rentabilidade, sendo a rentabilidade, o dinheiro que sobra depois de pagar os custos das empresas envolvidas. Avaliações bilionárias sugerem apostas igualmente bilionárias de que, em algum ponto deste caminho, margens vão se abrir de maneira extraordinária.

Em alguns casos, essa aposta não se limita a ganhos graduais, mas mira algo mais radical como naa ideia de uma “superinteligência artificial”, jargão para designar um sistema com desempenho superior ao humano em praticamente todas as tarefas relevantes. A comparação simples ajuda, ela seria como contratar um time que trabalha 24 horas por dia, sem férias, aprendendo com cada tentativa, e que dirige caminhões, escreve relatórios, faz triagem hospitalar e ainda planeja rotas de navio sem errar a previsão de tempo. Se algo assim de fato surgisse e fosse distribuído de forma segura, o salto de produtividade seria gigantesco, com impacto direto em padrões de vida. E há algumas estimativas associando esse cenário a um valor agregado impensável. O investidor, ao comprar hoje, tenta reservar um pedaço possível desse amanhã.

Só que mercados não se movem apenas por planilhas impecáveis. Eles também se movem por medo e por gatilhos pequenos. Se, de repente, ganhar força a ideia de que os lucros prometidos não virão, muita gente tenta sair ao mesmo tempo. E não precisa de agulha grande para estourar balão. Às vezes, basta uma nota de rodapé, um contrato que atrasa, um sinal de que um cliente importante hesitou. O efeito trabalha como em uma fila de banco, um olha para o outro, desconfia, e logo a porta está cheia.

Vale recordar um trecho conhecido da história recente, no fim dos anos 1990, a possibilidade de acessar a internet sem dor de cabeça gerou um entusiasmo que abasteceu a bolha pontocom. Reportagens populares, do tipo que circulava na sala de espera do dentista, avisaram que muitas empresas estavam ficando sem dinheiro. Bastou isso para uma parte dos investidores médios, pessoas que não vive de mercado, que equilibra o medo de perder a oportunidade com o receio de apostar em algo pouco compreendido. Quando esse público muda de ideia, o fluxo muda.

Apesar da escalada de avaliação, há relatos de que OpenAI ainda não opera no azul. Estimativas sugerem que seria necessário um volume de receita várias vezes maior para virar a chave da lucratividade. Ao mesmo tempo, circula a informação de que a empresa teria registrado perdas bilionárias no primeiro semestre do ano. Isso não significa que a tecnologia não preste, significa que o modelo de negócios ainda busca equilíbrio. Uma fatia do valor atribuído à empresa parece vir de arranjos com fornecedores estratégicos de chips, em que investimentos de um lado garantem compras do outro, circularidade financeira é quando o dinheiro entra por uma porta e sai pela outra para sustentar uma estrutura que precisa de fôlego até as receitas chegarem e isso funciona por um tempo. Em algum momento, porém, os investidores vão pedir retorno palpável.

O quadro não é exclusivo de uma empresa. Muitas firmas de IA, neste momento, não parecem consistentemente lucrativas. O dinheiro que entra não está recompensando os prejuízos de hoje, ele compra uma chance de participar de uma fronteira que promete margens futuras. É um jogo legítimo, habitual em inovação de base, mas que exige disciplina para separar o que já entrega valor do que está no campo da aposta. Consumidores, operadores e gestores sentem essa distinção no cotidiano sendo o cliente que paga por um serviço quer estabilidade e clareza de preço, o engenheiro que opera um modelo quer previsibilidade de custo de inferência e o gestor que assina contrato quer saber quando o projeto deixa de queimar caixa.

Há caminhos para que a lucratividade aconteça. Novas frentes comerciais aparecem. Uma delas é o uso de IA para publicidade, a publicidade aqui é recomendação paga, quando um sistema sugere um produto ou serviço dentro de uma conversa, como o atendente que, no balcão, oferece o filtro de água junto com a cafeteira. Há também a possibilidade de chatbots indicarem produtos com base no contexto do diálogo. O cuidado está no modo de fazer, sendo a experiência digital recente está repleta de “padrões escuros”, expressão que descreve truques de interface que empurram o usuário a clicar onde não queria, como quando o site do hotel exibe “só mais um quarto disponível” para acelerar a compra. Modelos de linguagem podem aumentar a potência persuasiva dessas estratégias, e a linha entre serviço útil e manipulação fica fina. Transparência, rótulos claros, capacidade de optar por não ver certas recomendações sendo tudo isso vira parte do design de confiança.

Enquanto essas frentes comerciais se organizam, as gigantes de tecnologia como Meta, Alphabet, Microsoft, Amazon, despejam capital em infraestrutura de IA num volume comparável ao PIB de um país de médio porte. Não estamos falando de simples ajustes em plataformas de anúncios, e sim de blocos de concreto que sustentam a próxima década como data centers, redes de fibras, energia contratada de longo prazo, servidores com GPUs de ponta, parcerias para projetar chips. É investimento que não se justifica por modinha, ou ele prepara uma base para um ciclo de produtividade amplo, e então as receitas chegam, ou em algum momento a conta pesa. Se esse futuro a que essas obras servem entrar em dúvida, a bolha, caso exista, encontra o estalo.

O que estamos realmente comprando quando compramos IA? Um conjunto de capacidades que já economiza tempo em tarefas repetitivas, reduz fila em chat de atendimento, faz triagem de documentos e ajuda cientistas a gerar hipóteses mais rápido, também compramos promessas. E essas promessas são carros autônomos limpos nas ruas, médicos assistidos por algoritmos que não erram doses, cadeias logísticas que harmonizam caminhões no porto e navios no mar com matemática impecável. No meio disso, compramos também ruído, soluções genéricas aplicadas a problemas específicos, custos de computação que não fecham, expectativa de que com mais dados e mais força bruta tudo se resolve. Sendo que haverá ganhos e também limites.

Nas empresas, o sinal de que a aposta é madura aparece quando três perguntas têm resposta coerente. Primeira: qual processo de trabalho muda de fato, com indicador e prazo? Segunda: qual custo marginal de rodar a solução por unidade de demanda — custo marginal é aquele gasto adicional para atender um pedido a mais — e em que ponto ele fica menor do que a alternativa humana ou híbrida? Terceira: onde está o risco regulatório e reputacional? Porque nada arranha mais uma marca do que um sistema que recomenda algo inadequado no momento errado. Se a área de produto consegue mostrar, com exemplos e números, que “o tempo médio de atendimento caiu de 6 para 3 minutos porque o modelo resume a conversa anterior e propõe a próxima ação”, a tese se sustenta melhor. Ou também se o gestor financeiro enxerga que “cada 1.000 requisições custam X e geram Y de receita contratada”, a discussão sai do achismo.

Para quem investe, um exercício de sanidade ajuda como separar o valor presente do valor opcional. Valor presente é aquilo que a empresa já sabe fazer e cobra por isso e valor opcional é o bilhete para um possível salto, como a adoção de um novo modelo mais eficiente que reescreve a base de custos. Quando o opcional vira quase tudo, o risco aumenta. E se o salto demorar um ano a mais? E o custo podendo subir de energia no período? E caso   o fornecedor de chips priorizar outro cliente? As respostas mexem não com teoria, mas com fluxo de caixa, com a conta que precisa fechar no fim do mês, com o bônus do time que esperava virada no quarto trimestre.

Pacientes querem ganho de qualidade em diagnósticos, sem vieses que prejudiquem grupos já vulneráveis. Profissionais temem substituição, mas topam ferramentas que removem tarefas maçantes e aumentam a autonomia. Pequenas empresas precisam de soluções com preço previsível, sem sustos como aqueles pacotes de dados que estouram sem aviso. Quem lida com a operação, a pessoa que monitora filas, que decide priorização, que acompanha indicadores, precisa de IA que explique por que sugeriu uma rota em vez de outra, e não de uma caixa-preta que só “acerta na média”. É aí que a confiança se constrói ou se perde.

Se houver uma correção forte de preços, ela não apaga a utilidade da IA que já se mostrou valiosa. Ferramentas que reduzem erros de digitação, que ajudam no controle de qualidade de código, que organizam documentos jurídicos por similaridade, continuarão úteis. O que muda é o barulho ao redor, a velocidade com que executivos decidem novos aportes, a disposição de migrar sistemas inteiros de uma vez. Algumas histórias recentes ensinam que ciclos mais calmos favorecem projetos bem definidos, com metas realistas, enquanto ciclos de euforia atraem slogans. E há sempre alguém vendendo o “motor mágico” que promete mais potência com menos combustível. Na mecânica real, o ganho vem de projeto, atrito menor, manutenção correta e em tecnologia, também.

Quem está no comando de orçamentos precisa de um mapa simples como priorizar casos de uso que tocam receita e custo com provas de conceito curtas, cuidar de governança de dados para evitar que modelos “aprendam” coisas que não deveriam, negociar contratos com gatilhos de preço que protejam a empresa de variações bruscas, e manter o time treinado para entender o que a ferramenta faz e o que ela não faz. Se a IA é para ficar, e tudo indica que é, o importante é desenhar o lugar que ela ocupa no processo. Como uma nova máquina no chão de fábrica, não basta comprá-la, é preciso reorganizar o fluxo ao redor, treinar operadores, rever manutenção, medir resultado. Só assim a promessa vira hábito que se paga.

Olhar para o quadro maior ajuda no ajuste fino das expectativas, sendo onda atual combina três elementos: poder computacional crescente, dados abundantes e algoritmos que se beneficiam de escala. Isso cria uma impressão de inevitabilidade: basta pôr mais máquinas e tudo melhora. A história mostra que não é tão simples e a eletricidade demorou décadas para elevar a produtividade porque as fábricas precisaram reorganizar sua planta, trocando eixos de transmissão por motores distribuídos. O desenvolvimento da computação pessoal levou tempo até que software e trabalho se alinhassem. A IA generativa ainda busca seus encaixes finos, os que resolvem dores reais, no tempo das pessoas e das organizações.

Voltemos para a pergunta: o que estamos realmente comprando quando compramos IA? Compramos eficiência onde ela já se comprovou, e coragem de experimentar onde há sinal de retorno, compramos também o risco de descobrir que em algumas áreas o ganho é menor do que parecia, e que a curva de aprendizado exige mais cuidado do que o slide de apresentação sugeria. Em períodos de euforia, lembramos pouco das operações que não podem parar como o caminhão esperando no porto, o call center que precisa encerrar ligações com clareza, o hospital que não tolera erro de triagem, e em períodos de correção, exageramos no freio. O equilíbrio não vem da fantasia de um futuro perfeito nem do pânico de uma queda de braço no mercado, ele vem de alinhar capacidade técnica, modelo de negócio e valor entregue.

Se as avaliações seguirem subindo, talvez se consolide um ciclo longo, puxado por infraestrutura e por aplicações maduras. Elas podem estabilizarem, sobreviverão os casos em que a matemática fecha. Se corrigirem, voltaremos a conversar com outra serenidade. Em todos os cenários, o teste é prático sendo a tecnologia melhora a vida de quem usa? O operador que passa turno no data center tem menos panes para resolver? A gestora que fecha orçamento enxerga previsibilidade no próximo trimestre? O consumidor que conversa com um assistente digital sente que é respeitado, informado e não manipulado? Quando essas respostas caminham na direção certa, os gráficos do mercado tendem a acompanhar, cedo ou tarde.

A euforia não dura para sempre, assim como a cautela excessiva não é destino. Enquanto o pêndulo oscila, cabe a cada empresas, reguladores, pesquisadores, investidores manter a régua no concreto. Métrica clara, custo transparente, ética aplicada, contrato que protege. Se ignorarmos, a oscilação do mercado nos lembrará, uma vez mais, que expectativa sem lastro pesa pouco quando a maré muda. 

TPUs: o cérebro silencioso da IA

Google TPU
 
 
Você e eu estamos sentados diante de um tema que costuma ser contado como corrida de logomarcas: Nvidia de um lado, todo o resto do outro. Só que há uma camada silenciosa nessa história. Enquanto as manchetes falam de placas verdes e estoques escassos, um experimento que começou como gambiarra pragmática dentro do Google amadureceu até virar um ecossistema inteiro de computação especializada. Quero te convidar a olhar esse enredo sem o brilho do marketing, com calma técnica, mas em tom de conversa: por que as TPUs do Google — e seus “primos” de datacenter — mudam o jogo para IA, energia, água e estratégia de nuvem? E até onde isso pode afetar o seu celular, o seu computador e os serviços que você usa todos os dias?

Comecemos pelo dilema que empurrou o primeiro dominó. Em 2014, a pressão do reconhecimento de voz em massa estourou no colo dos engenheiros. Fizeram contas de padeiro com precisão de datacenter: se milhões de pessoas falassem com o Google por alguns segundos por dia, a infraestrutura precisaria dobrar. Não era uma metáfora sobre escalabilidade; era cálculo de capex (despesa de capital) e opex (despesa operacional) batendo à porta. A pergunta que atravessa qualquer time de engenharia bem treinado surgiu quase sozinha: será que o caminho é comprar mais servidores genéricos, ou redesenhar o próprio silício para executar exatamente a tarefa que custava caro? Esse gesto — optar por um circuito especializado — é a semente das TPUs.

Se o nome parece hermético, vale destrinchar. TPU significa Tensor Processing Unit. “Tensor” aqui não é floreio matemático: é a estrutura de dados central que carrega matrizes e tensores usados por redes neurais. Quando se treina um modelo, multiplica-se e acumula-se uma quantidade gigantesca de valores numéricos. A TPU é um ASIC (Application-Specific Integrated Circuit), ou seja, um circuito integrado feito para uma classe estreita de operações. Em vez de ser um canivete suíço como uma CPU ou uma GPU, ela é uma prensa hidráulica ajustada para multiplicar, acumular, quantizar e mover esses tensores com o mínimo atrito. O coração dessa ideia costuma ser o MAC array (matriz de operações de multiplicar e somar), às vezes com apoio de unidades de ponto flutuante mistas e formatos numéricos compactos como bfloat16 (formato de 16 bits que preserva faixa dinâmica ampla). O resultado prático? Mais trabalho útil por joule consumido e por metro quadrado de rack ocupado.

Essa escolha se desdobra em arquitetura de sistema. Uma TPU isolada é interessante; centenas em rede são o que importa. Desde as primeiras versões, o Google costura esses chips com interconexões de alta largura de banda e baixa latência, formando pods que se comportam como supercomputadores especializados. A geração atual, batizada de Trillium, dá pistas do rumo: milhares de dies interconectados, com malhas ópticas e topologias flexíveis para casar o padrão de comunicação do modelo com o tecido físico de rede do datacenter. A grosso modo, treinar um modelo grande é tanto sobre computação quanto sobre movimento de dados; a malha importa tanto quanto o núcleo aritmético. Se a interligação engasga, sobra silício ocioso esperando dados. A engenharia das TPUs é, portanto, tão térmica e de rede quanto aritmética.

Talvez você esteja pensando: por que isso seria melhor do que GPUs que já fazem muito bem o serviço? A resposta não é ideológica; é termodinâmica, econômica e logística. Quando você especializa, elimina redundâncias e economiza energia por operação. Eficiência energética (performance per watt) é o indicador que manda no orçamento quando a escala passa de alguns servidores para um campus inteiro. O mesmo vale para densidade computacional (operações por litro de volume resfriado). Datacenters não crescem apenas com compra de máquinas; crescem com obra civil, energia firme, água de resfriamento, linhas de transmissão, acordos municipais, certificações ambientais. Se a cada geração você consegue treinar um modelo maior com menos joules e menos litros, o impacto contábil e regulatório é imediato.

Aqui aparece a primeira repetição intencional da ideia central: o ganho real das TPUs não está só no chip em si, mas no sistema inteiro em torno do chip. Quando os engenheiros adotam resfriamento direto no pacote — placas frias com microcanais por onde circula água tratada — diminuem a dependência de ar condicionado de sala e melhoram a remoção de calor exatamente onde ele nasce. Trocar watts térmicos por eficácia hidráulica traz uma consequência macro: menos água evaporada em torres, menos ar movido, menos perdas mecânicas. E então o círculo se fecha com sustentabilidade e custo: modelos maiores deixam de significar proporcionalmente mais emissões. Não é um passe de mágica; as emissões totais da operação ainda crescem com a demanda de IA, mas os ganhos de eficiência achatam a curva e evitam cenários explosivos.

“Tá, mas isso é papo de laboratório? Cadê o mundo real?” O mundo real aparece quando rivais escolhem alugar TPU para treinar modelos proprietários. Esse gesto diz que a vantagem de especialização pode ser suficientemente grande para superar resistências políticas e preferências históricas. Existe também o fator disponibilidade: o mercado de GPUs passa por ciclos de escassez e prioridade de clientes. Quem oferece outro caminho com escala industrial vira opção estratégica. E é aqui que entram outros chips “irmãos” que, embora não façam IA, compõem a mesma visão de infraestrutura sob medida.

As VCUs (Video Coding Units) são um exemplo direto. Se você hospeda bilhões de horas de vídeo, a etapa de codificação é um poço de energia e custo. Um ASIC dedicado ao pipeline de compressão — com unidades especializadas para etapas como transformada, quantização, estimativa de movimento e entropia — reduz drástica e previsivelmente o custo por minuto processado. Menos custo por minuto significa catálogo estável, qualidade mais alta por bitrate, e margem para experimentar novos codecs sem penalização descontrolada. Esse ethos de “cortar gordura com silício” aparece outra vez no Axion, o CPU de uso geral baseado em ARM pensado para workloads de nuvem clássicos. Processadores ARM em datacenter não são novidade, mas a decisão de usar um projeto otimizado para as próprias cargas — bancos distribuídos, servidores de anúncios, sistemas de logs — reduz dependência de fornecedores tradicionais e abre caminho para ajustes finos de pipeline, prefetch, memória e instruções vetoriais.

Percebe como a tese se repete, de propósito, em outra camada? Quando uma empresa projeta chips que tocam todos os pontos de dor do seu negócio — codificar vídeo, treinar IA, rodar APIs, mover dados — ela passa a controlar tempo, custo e risco. E controle é sinônimo de vantagem competitiva em nuvem pública. Nuvem é, no fim do dia, um jogo de eficiência: quanto mais trabalho útil você entrega por dólar cobrado, mais agressivos podem ser seus preços, mais previsível fica seu roadmap, mais folga você cria para absorver picos de demanda sem queimar caixa.

Nesse momento do diálogo, talvez valha abrir a caixa dos termos técnicos que muitos repetem sem destrinchar. Quando se diz que uma TPU usa bfloat16, não é apenas um capricho. Modelos de linguagem e visão toleram ruído numérico em muitas camadas; quanto menor o dado, mais elementos cabem na memória local do chip e menos banda é necessária para alimentar os núcleos. Só que reduzir bits costuma degradar gradientes. O bfloat16 preserva a faixa de expoentes do float32, sacrificando precisão de mantissa; essa escolha mantém estabilidade de treinamento sem pagar o preço total de 32 bits. Em paralelo, técnicas como quantização pós-treinamento e quantização com reconhecimento de treino (quantization-aware training) levam as ativações e os pesos para 8 bits em inferência, onde latência e custo por requisição mandam no bolso. É por isso que dispositivos de bolso hoje rodam modelos que, há alguns anos, precisariam de uma placa dedicada: parte do truque é matemática de representações, parte é engenharia de barramento, cache e pipeline.

Existe também o tecido de interconexão, que costuma ser a “estrada invisível” sob os arranha-céus dos modelos gigantes. Topologias como malha toroidal, fat-tree e dragonfly aparecem em papers e slides técnicos por um motivo simples: cada uma equilibra gargalos de forma diferente. As implementações ópticas de curta distância dentro do pod reduzem consumo de energia por bit transmitido e evitam que calor se concentre em switches eletrônicos tradicionais. Num treinamento distribuído com paralelismo de dados e de modelo, as fases de all-reduce (agregação de gradientes) e de troca de parâmetros viram soquetes de dor. Otimizar esse caminho muda o tempo total de treinamento sem mexer em uma linha do código do modelo.

Até aqui, estamos conversando muito sobre engenharia, e eu quero puxar você para a camada socioeconômica, porque ela explica decisões que, vistas de fora, podem parecer contraditórias. Por que uma empresa que fabrica seus próprios SoCs para smartphones alugaria poder computacional de uma concorrente? Por que um provedor de nuvem que vende GPUs aluga, de outra nuvem, TPUs? A resposta está no conceito de “opções reais” que times de estratégia usam para não ficar encurralados. Manter múltiplas rotas tecnológicas ativas custa dinheiro, mas compra liberdade para reagir. Se uma linha de produção atrasa, se um fornecedor prioriza outro cliente, se a legislação muda e encarece certo tipo de resfriamento em determinada região, você não estaciona o roadmap. TPUs viram mais do que um chip; viram póliza contra risco sistêmico.

Essa discussão pede base empírica, e aí entram estudos que, embora não falem explicitamente “TPU”, sustentam a lógica da especialização. Pesquisas em arquitetura de computadores mostram ganhos de ordem de magnitude com ASICs quando a função é estável e massiva: criptografia em data-at-rest, codecs de vídeo modernos (AV1, VVC), compressão de colunares em bancos analíticos, e claro, multiplicação acumulada de redes profundas. A literatura sobre eficiência energética de datacenters, por sua vez, fecha o laço: métricas como PUE (Power Usage Effectiveness) despencam quando se migra de ar para líquidos, e soluções de cold plate em pacote reduzem perdas de distribuição térmica. Em paralelo, análises de ciclo de vida (LCA) chamam atenção para um detalhe incômodo: melhorar a eficiência operacional é essencial, mas não elimina a pegada de fabricação dos chips, que cresce com a complexidade do processo litográfico. O quadro honesto combina as duas faces: fabricar melhor e operar melhor.

Essa ambiguidade nos leva a um ponto ético que gosto de tratar sem rodeios. A voracidade por modelos maiores traz consigo consumo de energia e água que não desaparecem com relatórios. Empresas que lideram essa corrida publicam metas de carbono, perseguem contratos de energia renovável, compram offsets, reengenheirizam resfriamento. Ainda assim, as emissões anuais sobem com a demanda do mercado. Vale perguntar com franqueza: todo problema precisa de um LLM gigantesco no backend? Todo produto precisa acoplar IA generativa? O papel da engenharia responsável é escolher o tamanho certo do martelo para cada prego. Há enorme espaço para modelos menores e afinados para tarefas específicas, que rodam em borda, preservam privacidade, cortam latência e reduzem custo ambiental. O mesmo raciocínio que gerou TPUs — especializar para não desperdiçar — serve para a camada de software e de produto.

Voltando à linha narrativa principal, há um detalhe estratégico que costumo repetir porque organiza o raciocínio: o Google, ao investir em TPUs, VCUs e CPU próprio, não está apenas construindo uma “máquina mais rápida”; está construindo assimetria de custo. Se o custo marginal de treinar um modelo cai mais na sua casa do que na casa do vizinho, você pode experimentar mais, errar mais, lançar mais. E, num mercado onde quem aprende mais rápido aprende duas vezes, essa assimetria vira compasso competitivo. Por isso a história não termina em quem “tem o chip mais potente” no slide, e sim em quem tem o sistema mais barato por tarefa entregue com qualidade aceitável.

Talvez você queira saber onde essa estrada encontra o seu cotidiano. A resposta chega em ondas. A primeira é óbvia: serviços de busca, foto, vídeo, tradução, documentos colaborativos. Treinamentos mais extensos e baratos permitem modelos que entendem contexto com mais precisão, alucinam menos, degradam menos sob ruído. A segunda onda bate no seu bolso em forma de aplicativos locais. À medida que quantização, destilação (distillation, técnica de treinar um aluno menor a partir de um professor maior) e novas arquiteturas tornam modelos mais compactos, tarefas que hoje dependem de nuvem migram para o dispositivo: sumarizações, assistentes de voz, criação de mídia simples, detecção de padrões em saúde digital. A terceira onda é quase invisível: otimizações de CDN, codificação sob demanda, inferência de recomendação com latência reduzida. Você não vê, mas sente no carregamento mais rápido e na conta que não sobe.

Não dá para fechar essa conversa sem tocar na multiplicidade tecnológica que vem por aí. Quando alguém pergunta “quem vai ganhar, TPU ou GPU?”, a pergunta carrega um vício de origem: supõe um único vencedor. Computação é ecossistema. GPUs avançam com bibliotecas e tooling maduros, comunidade gigantesca, compatibilidade ampla com pesquisa acadêmica. TPUs crescem com co-design agressivo entre framework, compilador (XLA e sucessores), kernel e hardware. FPGAs seguem encontrando nichos onde personalização extrema e latência baixíssima mandam. Pesquisas em computação fotônica exploram multiplicações com luz; spintrônica e memórias de próxima geração ensaiam atalhos para contornar gargalos de von Neumann. É sensato esperar convívio de abordagens, e não coroação de uma só.

Quero te lembrar, de propósito, do ponto que revisitamos duas vezes ao longo do texto: eficiência como eixo. O que começou como uma resposta a um gargalo de voz virou política de plataforma. Não se trata de “quem tem a sigla mais charmosa”, e sim de quem traduz princípio físico em vantagem contábil sem sacrificar qualidade do produto. Cada melhoria em formato numérico, cada ajuste de interconexão, cada iteração de resfriamento é uma pequena batalha vencida contra a entropia do datacenter. Em escala, isso paga folhas de pagamento, libera times para pesquisa aplicada, financia betas ousados e abre espaço para corrigir rumos sem pânico.

Talvez você esteja se perguntando: como cidadão, consumidor ou desenvolvedor, onde entram minhas escolhas? Entram na pergunta que você faz a cada projeto: qual o menor modelo que resolve bem o problema? Dá para treinar em dados próprios e rodar em borda? Dá para usar adaptação por LoRA (Low-Rank Adaptation) e evitar treinar do zero? Dá para cachear agressivamente e reduzir chamadas para servidores? O mesmo raciocínio vale para empresas: testar inferência em regiões com energia renovável abundante, revisar design para reduzir tokens desnecessários, reaproveitar contexto, adotar compressão de embeddings. Decisões de arquitetura viram decisões ambientais quando a escala é planetária.

Há, claro, questões abertas. Reguladores começam a questionar índices de consumo hídrico vinculados a data centers em regiões sujeitas a estresse hídrico. Comunidades locais cobram contrapartidas. Parques geradores renováveis enfrentam intermitência; projetos de armazenamento ganham tração, mas ainda brigam com custo. A próxima década deve ser de engenharia e política caminhando sobre a mesma ponte. Não é trivial, e é por isso que vale manter espírito crítico diante de promessas fáceis.

Você percebe como a história volta ao início? Uma decisão técnica tomada para impedir um colapso operacional em reconhecimento de voz cresceu até virar tese de produto, tese de sustentabilidade e tese de estratégia. TPUs não são fetiche de laboratório; são consequência lógica de um problema de escala. VCUs idem. CPUs próprios idem. O fio que amarra tudo é a recusa a pagar imposto de generalidade quando a função é estável e massiva. É o gesto de transformar custo variável em custo fixo amortizado num ciclo de inovação que se retroalimenta.

Se chegamos juntos até aqui, vale uma provocação final que não busca vencer debate, e sim abrir espaço para reflexão: você apostaria que a próxima grande virada de qualidade dos modelos virá de um novo truque algorítmico ou de uma vitória silenciosa de engenharia de sistema? Talvez um pouco dos dois. Só que, quando você olhar o anúncio brilhante no palco, lembre que por trás haverá uma malha de fibra, uma placa fria, uma matriz de MACs, um compilador teimoso que extraiu mais uns pontos percentuais de throughput, e uma conta de água que fecha. É essa a conversa que me interessa ter com você: menos fogos de artifício, mais entendimento das engrenagens. Porque é aí, nas engrenagens, que a tecnologia deixa de ser barulho e vira infraestrutura.

E se amanhã você ler que um concorrente alugou TPUs para treinar um modelo que não coube no cronograma de GPU, não trate isso como ato de rendição. Encare como tática de quem aprendeu a administrar risco num mercado onde tempo e energia mandam mais do que bandeiras. Se ouvir falar de novas gerações com nomes de flores ou minerais, não se prenda ao batismo; procure as métricas de sempre: custo por token treinado, energia por passo de otimização, água por megawatt-hora resfriado, latência por requisição. Estaremos conversando sobre as mesmas ideias que atravessaram este texto, repetidas de propósito para ficar claro: especializar quando há estabilidade, distribuir quando há escala, medir quando há ruído, e ajustar quando os números pedem humildade.

Sempre que topar com o hype, puxe o fio da eficiência. Sempre que ler sobre um salto em qualidade, pergunte qual foi o custo marginal. Sempre que vir discussões sobre “quem lidera”, repare em quem controla o cronograma de energia, água e silício. É um jeito simples de manter os pés no chão enquanto a corrida continua. E é um jeito honesto de lembrar que, por trás da vitrine, a transformação que chega ao seu celular e ao seu computador nasce de escolhas pacientes, algoritmos bons e, principalmente, engenharia que respeita limites físicos. Quando essa tríade se mantém alinhada, o futuro da IA deixa de ser milagre e vira trabalho bem feito.