Thomas Midgley Jr e o preço do progresso

Ethyl
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Um único pesquisador ganhou fama por resolver problemas difíceis e, sem querer, plantou dois dos maiores desafios ambientais do século XX. Falo de Thomas Midgley Jr., engenheiro químico ligado ao laboratório de Charles F. Kettering na General Motors. Dois produtos que ele ajudou a colocar no mundo cruzaram fronteiras, entraram em casas e pulmões, e mexeram com estatísticas de saúde, educação e comportamento. O terceiro invento, um sistema de cordas para ajudá-lo a sair da cama quando já estava doente, virou ironia amarga: foi o mecanismo que o enredou e tirou sua vida. Como esse roteiro se construiu? O caminho passa por motores barulhentos, cristais minúsculos, partículas invisíveis e decisões corporativas embaladas por otimismo industrial.

Começo pela pergunta que incomoda: por que um aditivo considerado brilhante para acabar com a “batida” de motor virou sinônimo de veneno atmosférico? “Batida” é o apelido da detonação, quando a mistura ar-combustível se inflama antes da faísca por compressão elevada, gerando ondas de pressão desordenadas e ruído metálico. Isso rouba potência, piora consumo e danifica cilindros. Para domar o problema, a engenharia buscou ajuda na química.

A estratégia técnica se apoia na octanagem (resistência do combustível à autoignição). Na escala de referência, o isooctano ocupa o topo; o n-heptano, a base. Motores mais comprimidos rendem mais, desde que a mistura não se inflame sozinha antes da hora. Guarde a imagem simples: quanto maior a octanagem, menor a chance de detonação caótica dentro do cilindro.

No início do século XX, Detroit fervilhava. A adoção do arranque elétrico ganhou tração depois da morte do empresário Byron J. Carter, atingido por uma manivela ao tentar dar partida num carro, episódio que sensibilizou Henry M. Leland, da Cadillac, a buscar uma solução menos perigosa. O arranque elétrico de Kettering apareceu em 1912 no Cadillac Model 30 e elevou o patamar dos motores, ampliando compressão e, por tabela, a propensão à detonação. Começou a caça a aditivos “anti-batida”. Testaram cânfora, solventes diversos e etanol. O etanol funcionava, mas exigia proporções altas que não empolgavam os fabricantes.

A resposta que dominaria por décadas ganhou quatro sílabas: tetraetilchumbo (TEL). A molécula, com chumbo no centro, alterava a cinética da combustão e elevava octanagem em doses minúsculas. Barato, miscível, sem cheiro forte, parecia triunfo. Midgley demonstrou o efeito sob a tutela de Kettering; GM, Standard Oil e DuPont formaram a Ethyl Corporation para explorar o mercado. Em linguagem publicitária, era progresso. Em linguagem de saúde pública, a semente de um problema planetário.

Por que um metal tóxico se espalha tanto ao ser queimado? As partículas finas formadas na combustão viajam no ar, assentam no solo, entram em água e alimentos. O chumbo engana transportadores celulares por mimetizar o cálcio, acumula em ossos por anos e pode voltar à circulação em períodos de estresse fisiológico. No cérebro, afeta a bainha de mielina (revestimento isolante do axônio) e interfere em neurotransmissores. Em crianças, doses pequenas geram impactos grandes: atraso de linguagem, queda de desempenho escolar, mudanças de comportamento. A pergunta decisiva é direta: existe nível seguro? A resposta que a ciência consolidou é seca: não há nível seguro conhecido para crianças.

Esse veredito não veio por palpite. Veio do trabalho obstinado de outro cientista, Clair Cameron Patterson. Químico e geocronologista, ele dominava espectrometria de massa (instrumento que separa íons pela razão massa-carga) e queria responder uma pergunta ousada: qual a idade da Terra? Em geocronologia, certos minerais funcionam como relógios. O urânio decai até chumbo estável; a razão entre pai e filho revela tempo. Zircões — cristais que nascem com traços de urânio e zero chumbo — são ideais, pois qualquer chumbo medido depois veio do decaimento. No papel, era simples. No laboratório, as leituras de chumbo estavam absurdamente altas. O intruso não estava no cristal, estava em toda parte.

Para medir com precisão, Patterson teve de inventar a sala limpa moderna: ar filtrado, pressão positiva, superfícies lavadas, soldas sem chumbo, roupas integrais. Dentro desse casulo, o relógio das rochas voltou a funcionar. Como as rochas mais antigas da Terra foram recicladas por tectônica, a resposta veio dos meteoritos, irmãos de berçário do Sistema Solar: ~4,55 bilhões de anos. Com o método validado, Patterson virou a lente para o ambiente. Achou chumbo recente em excesso no oceano superficial. Depois leu a história em núcleos de gelo da Groenlândia e Antártica: picos ligados a mineração antiga e, no século XX, uma escalada compatível com a queima de combustíveis aditivados.

A partir daí, a pergunta social ficou inevitável: se o chumbo estava em todo lugar, o que ele fez conosco? Ossos e dentes modernos carregavam muito mais chumbo do que os de antepassados. Dentes de leite mostravam que níveis antigos, então considerados “aceitáveis”, já vinham associados a perda de QI e desvantagem escolar. Pesquisadores como Bruce P. Lanphear e David C. Bellinger ajudaram a quantificar o impacto cognitivo em faixas baixas de exposição, reforçando que a curva dose-resposta é traiçoeira. Políticas públicas foram apertando limites à medida que as evidências se acumulavam.

Outra frente que tocou sensibilidades foi a curva do crime. Em diversos países, a violência cresceu por duas décadas e depois caiu de modo acentuado. Análises de Rick Nevin, Jessica Wolpaw Reyes e outros mostraram que o desenho temporal lembra a trajetória do chumbo no sangue infantil, deslocada alguns anos. Ninguém sério reduz comportamento humano a um único elemento químico. Só que a hipótese ganhou plausibilidade biológica e estatística quando estudos com chumbo ósseo em adolescentes apontaram maior risco de delinquência em quem carregava mais metal no corpo.

Em adultos, o foco saiu do cérebro e foi parar no endotélio. O chumbo endurece artérias, induz inflamação, eleva pressão e favorece placas. Em análise de coorte, Lanphear e colaboradores estimaram centenas de milhares de mortes cardiovasculares anuais nos EUA atribuíveis a exposições consideradas “baixas”. Em série histórica, isso vira dezenas de milhões. No cenário global, relatórios de UNICEF/Pure Earth alertam que uma fração imensa de crianças ainda hoje apresenta concentrações preocupantes, muito por reciclagem inadequada de baterias e passivos industriais que teimam em ficar.

“Mas não era só melhorar motor?” A pergunta é justa. Midgley fez parte de uma façanha técnica real, com métricas de desempenho claras. O que não entrou na conta, na época, foi a toxicologia. Houve alertas iniciais, nomes como Alice Hamilton e Yandell Henderson advertiram nos anos 1920 sobre a periculosidade do TEL —, mas prevaleceu a visão tranquilizadora de Robert A. Kehoe, que defendia thresholds “seguros”. A história mostra como incentivos econômicos modulam o que escutamos. Um aditivo eficiente em traços rende patentes e margens generosas. Etanol seria alternativa em muitos cenários, só que menos lucrativa dentro daquela arquitetura industrial.

O mesmo Midgley assinou outro capítulo crucial: a era dos clorofluorcarbonetos (CFCs). Em busca de um gás refrigerante não inflamável e menos tóxico que as opções da época, a equipe de Kettering, com Midgley em papel central, introduziu moléculas estáveis e eficientes para geladeiras e sistemas de ar. Mais tarde, Mario J. Molina e F. Sherwood Rowland demonstraram que a estabilidade que parecia virtude na troposfera virava risco na estratosfera: sob ultravioleta, os CFCs liberam cloro reativo que catalisa a quebra do ozônio, a camada que filtra radiação nociva. A descoberta do “buraco” antártico por Joseph Farman, Brian Gardiner e Jonathan Shanklin transformou a química atmosférica em diplomacia. O Protocolo de Montreal entrou em cena, e a recuperação, lenta, já é mensurável.

Curioso notar a diferença de respostas. No caso dos CFCs, a reação global foi relativamente rápida depois que os mecanismos foram esclarecidos. No caso da gasolina com chumbo, a retirada levou décadas, com países em tempos distintos. O último combustível automotivo com chumbo caiu apenas em 2021. Ainda resta uma fonte ativa e relevante: a aviação a pistão, que usa gasolina 100LL. Estudos em comunidades ao redor de aeroportos mostram níveis sanguíneos mais altos em crianças expostas. A transição para combustíveis sem chumbo já tem via técnica, mas precisa acontecer de verdade.

Volto ao laboratório de Patterson. A obsessão por medições limpas ensinou algo além da idade da Terra. O modo como perguntamos contamina o que respondemos. Quando limpamos o ruído, o sinal aparece. E o sinal, aqui, foi duro: um planeta recoberto por uma película de chumbo fabricada por decisão humana. Um geocientista que queria números confiáveis acabou armando o caso científico que ajudou a desintoxicar a atmosfera.

O recado é simples e incômodo, princípio da precaução (testar exaustivamente antes da adoção massiva), políticas que resistem a lobbies apressados e monitoramento epidemiológico atento. Quando uma curva insiste em subir — hospitalizações, biomarcadores, queixas em escolas —, a curiosidade científica precisa ter licença para refazer perguntas que incomodam.

E aquela terceira invenção? Já doente, Midgley montou um sistema de cordas e polias para se erguer da cama. Morreu enredado nele. Casualidade explica a tragédia, não explica os desastres químicos. A imagem, porém, funciona como metáfora: soluções engenhosas viram laços quando o todo fica fora de quadro. É injusto reduzir uma pessoa aos piores efeitos de suas criações, como é ingênuo celebrar só as vitórias técnicas. O saldo ético aparece quando externalidades entram na conta.

 Neurotoxicidade precoce esculpe trajetórias. Famílias, escolas e sistemas de justiça sentem o impacto de decisões tomadas décadas antes em conselhos de administração. O cérebro em desenvolvimento não negocia com moléculas que atrapalham sinapses; adapta-se como dá, a um custo que espalha desigualdade. Em certos lugares, esse dossiê ainda precisa ganhar voz política.

Quando uma solução parece perfeita, quem lucra e quem carrega o risco? Quando um produto exige nova infraestrutura de medição para revelar o dano, quem paga por ela? Quando os efeitos atravessam gerações, modelos de custo-benefício dão conta? Às vezes a resposta técnica existe, mas esbarra na dinâmica de poder previsível. Em outras, faltam dados. Incerteza não é permissão para paralisia; é convite para medir melhor.

Para fechar pelo ângulo que importa: não há dose segura de chumbo para crianças. Essa frase seca resume por que uma solução “genial” no curto prazo se converteu, décadas depois, em política pública no sentido oposto. Se o risco recai sobre cérebros em formação, a decisão precisa priorizar proteção ampla mesmo quando o custo imediato parece mais visível que o benefício. Progresso de verdade se mede por essa aritmética moral, uma lição que leva os nomes de Thomas Midgley Jr., Charles F. Kettering, Byron J. Carter e Clair C. Patterson, entre tantos outros que, por ação ou por teimosia científica, mudaram o curso da história.


Referências:

Charles F. Kettering and the Development of Tetraethyl Lead in the Context of Alternative Fuel Technologies — https://www.sae.org/publications/technical-papers/content/941942/

Standard Test Method for Research Octane Number of Spark-Ignition Engine Fuel — https://store.astm.org/d2699-21.html

Exposure to lead: a major public health concern: preventing disease through healthy environments — https://www.who.int/publications/i/item/9789240078130

A pharmacokinetic model of lead absorption and calcium competitive dynamics — https://www.nature.com/articles/s41598-019-50654-7.pdf

Intellectual Impairment in Children with Blood Lead Concentrations below 10 µg per Deciliter — https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa022848

The association between lead exposure and crime: A systematic review — https://journals.plos.org/globalpublichealth/article?id=10.1371%2Fjournal.pgph.0002177

Bone lead levels and delinquent behavior. — https://europepmc.org/article/MED/8569015

Thomas Midgley, Jr., and the invention of chlorofluorocabon refrigerants: It ain't necessarily so — https://www.ideals.illinois.edu/items/134735

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