Vitamina B12 e deficiência mental

Vitamina B12
Ouça o artigo:

Certa vez li um caso de um senhor de 72 anos que chegou confuso em um plantão médico noturno, relatando vozes distantes e um cansaço que não cabia num diagnóstico rápido de insônia. O hemograma não gritava anemia, o eletro não mostrava isquemia, mas algo naquele olhar vago, um vago que oscilava entre apatia e agitação, despertou algumas suspeitas nos médicos que poderia ser um problema de bioquímica. Um simples teste sérico confirmou: níveis de cobalamina lá embaixo. Três doses intramusculares depois, ele começou a recuperar frases inteiras, reconhecer a própria filha, lembrar o caminho de casa. Essa virada, quase cinematográfica, me faz até hoje perguntar: por que um micronutriente tão discreto consegue desconstruir, e reconstruir, os pilares da cognição?

Antes de mergulhar na fisiopatologia, convém posicionar o leitor em duas definições que frequentemente se misturam no linguajar cotidiano. Delirium (estado confusional agudo caracterizado por flutuação da consciência, desorientação e pensamento desorganizado) é diferente de demência (comprometimento cognitivo crônico, progressivo, sem alteração marcante do nível de consciência). Essa distinção não é mero preciosismo semântico; ela muda a direção da terapia e o prognóstico. A deficiência de vitamina B₁₂ costuma embaralhar essa fronteira ao provocar sintomas que lembram demência numa fase inicial, mas que, sob olhar atento, apresentam a volatilidade típica do delirium. O detalhe importante: delirium é potencialmente reversível, demência raramente o é.

Voltemos cem anos no tempo. Entre as décadas de 1910 e 1930, vários relatos de “languidez mental” foram atribuídos a uma doença então fatal: a anemia perniciosa. Sem exames laboratoriais precisos, médicos descreviam quadros que iam de irritabilidade branda a surtos psicóticos dignos de internação. Tratamentos rudimentares, como extratos de fígado, às vezes devolviam lucidez, provocando espanto nos hospitais. Naquela época, não se falava em cobalamina — falava-se em “fator antianêmico” — mas já se intuía que algo no metabolismo sanguíneo dialogava com a psique.

Décadas depois, quando a vitamina B₁₂ foi isolada e sua estrutura elucubrada, perceberam-se dois caminhos metabólicos críticos. O primeiro envolve a reciclagem de homocisteína em metionina, essencial para a produção de S-adenosil-metionina (molécula doadora de grupos metil que participa da metilação de DNA e neurotransmissores). Falhas nessa via alteram a síntese de monoaminas como serotonina e dopamina, duas interlocutoras diretas do humor. O segundo caminho diz respeito à conversão de metilmalonil-CoA em succinil-CoA, etapa importante para a manutenção da bainha de mielina. Quando o processo emperra, sobram ácidos orgânicos neurotóxicos e faltam blocos para a reparação das fibras nervosas. Resultado: lentidão do pensamento, parestesias e, em casos extremos, desmielinização da medula.

Talvez por isso a tríade clínica mais comum seja formada por depressão, delirium e psicose paranoia-like. A depressão aparece envolta em perda de interesse, fadiga que não melhora com repouso e um pessimismo quase químico. O delirium se manifesta em confusão súbita, inversão do ciclo sono-vigília, e memória de curto prazo volátil. Já a psicose costuma vir carregada de delírios persecutórios ou alucinações auditivas sutis, suficientes para rótulos precipitadamente esquizofrênicos se não se dosar a vitamina. Curiosamente, esses três quadros podem coexistir ou revezar-se no mesmo paciente, como se fossem capítulos de uma novela bioquímica.

Alguém poderia questionar: se a relação entre B₁₂ e neurocomportamento é tão marcante, por que nem todo idoso com depressão ou esquizofrenia responde a cobalamina? A resposta envolve uma nuance populacional. Muitos estudos de rastreamento em enfermarias psiquiátricas, realizados entre os anos 1960 e 1980, mostraram que menos de 3 % dos pacientes apresentavam hipovitaminose B₁₂ significativa. Dentro desse recorte, cerca de metade melhorava após reposição — especialmente aqueles com início agudo ou subagudo dos sintomas. Prescrições empíricas, sem diagnóstico bioquímico, acabavam criando a falsa percepção de ineficácia do nutriente.

Outro ponto de confusão: a presença ou ausência de macrocitose (eritrócitos aumentados, com volume corpuscular médio acima de 100 fL). Durante muito tempo, médicos tomavam macrocitose como requisito para suspeitar de déficit de B₁₂. Com a popularização de alimentos fortificados com ácido fólico, muitos pacientes passaram a exibir um hemograma “normal” mesmo com reservas de cobalamina em queda. Essa máscara hematológica afasta a investigação bioquímica, perpetuando sintomas cognitivos. Daí a relevância de marcadores mais sensíveis, como ácido metilmalônico e homocisteína plasmática, que se acumulam antes mesmo de qualquer alteração na série vermelha.

Olho clínico também faz diferença, quando alguém apresenta declínio cognitivo lento, arrastado, sem flutuação, sem melhoras com repouso, a hipótese de demência primária — Doença de Alzheimer, corpos de Lewy, demência vascular — deve liderar a lista. Já uma progressão rápida, acompanhada de ataxia, incontinência ou parestesias, acende a lâmpada da B₁₂. Em consultório médicos costumam perguntar: houve perda de peso recente? Cirurgias gástricas? Uso crônico de metformina ou inibidores de bomba de prótons? Essas pistas apontam para má-absorção ou consumo reduzido.

Aqui, uma reflexão útil: a cobalamina não é sintetizada por plantas nem animais; quem a produz são bactérias. Herbívoros resolvem o impasse abrigando esses microrganismos em compartimentos digestivos; nós dependemos de fontes animais ou suplementos. Vegetarianos estritos, se não lançarem mão de alimentos fortificados, podem levar anos até manifestar neuropatia ou alterações de humor. Isso porque o fígado armazena alguns miligramas de reserva, suficientes para cobrir um jejum prolongado de ingestão. O problema é que, quando os níveis caem, a curva de recuperação neuronal nem sempre acompanha a velocidade de reposição sérica. Por isso, intervenções precoces colhem resultados mais dramáticos.

Chama atenção o predomínio de casos de lentidão do pensamento — “slow cerebration”, expressão usada em relatos clássicos — que lembram um computador travado por falta de RAM. Pacientes descrevem dificuldade para encontrar palavras, executar tarefas sequenciais, acompanhar diálogos. Às vezes atribuem o fenômeno à idade ou ao estresse, retardando a busca de assistência. Quando, meses depois, recebem B₁₂, costumam recuperar velocidade de processamento, mas relatam que encaminhar documentos, pagar contas ou ler um romance ainda exige esforço extra. Esse hiato sugere que parte do dano sináptico, se prolongado, pode se tornar irreversível.

Voltando à fronteira entre diagnóstico, vale perguntar: compensa um médico dosar B₁₂ em todo paciente psiquiátrico? Alguns médicos arguirão que o custo-benefício é baixo. Outros, que a natureza insidiosa da deficiência e a segurança da reposição justificam o rastreio amplo. Num estudo prospectivo dos anos 1970, pacientes com anemia perniciosa receberam tratamento parenteral e foram acompanhados por seis semanas. A maioria mostrou melhora no humor, mas apenas o grupo com queixas de memória colheu ganhos expressivos em testes cognitivos. Aqui repousa uma mensagem: nem todos os componentes psiquiátricos respondem com a mesma velocidade, pelo que li em alguns artigos. Sintomas negativos, como apatia, costumam ceder mais lentamente que alucinações. Esse delay pode levar familiares a subestimar a eficácia inicial, interrompendo o esquema.

Outro achado intrigante emerge quando se observa a frequência de mania secundária ao déficit. Embora rara, existe descrição de euforia desproporcional, fuga de ideias e gasto excessivo que se dissolvem após reposição de cobalamina. Essa reversão lembra quadros tireotóxicos, reforçando a ideia de que a neuroquímica pode imitar transtornos primários do humor. A observação adiciona uma camada prática: antes de rotular um episódio maníaco isolado em idade avançada como transtorno bipolar tardio, vale checar vitaminas, hormônios e possíveis metais pesados.

Nessa altura, talvez o leitor esteja se perguntando: por que então a deficiência de B₁₂ raramente aparece como causa de demência estabelecida? Duas hipóteses competem. A primeira sustenta que o déficit atua como gatilho de descompensação, agravando processos degenerativos já em curso e mascarando a reversibilidade. A segunda argumenta que, sem intervenção rápida, a neurodegeneração provocada pela falta de mielina ultrapassa o ponto de retorno. As duas ideias não se excluem. Ambas reforçam a importância de vigilância clínica antes que mudanças epigenéticas e axonais se consolidem.

Entre 1990 e a primeira década dos anos 2000, técnicas de espectrometria avançaram, permitindo quantificar ácido metilmalônico com maior precisão. Estudos mostraram que indivíduos com valores elevados, mesmo dentro da faixa “limítrofe” de B₁₂, tinham risco maior de declínio cognitivo em cinco anos. Esses resultados empurraram a discussão para o conceito de “deficiência funcional” — níveis séricos normais, mas insuficientes para suprir a demanda celular. Ainda não há consenso sobre o ponto de corte ideal, porém emerge a noção de que a tabela de referência talvez precise de revisão, considerando diferenças genéticas na afinidade do transportador transcobalamina.

Enquanto a ciência afina parâmetros, a decisão prática continua recair sobre o clínico. Eu costumo iniciar reposição intramuscular semanal por quatro semanas, depois mensal, quando encontro B₁₂ abaixo de 250 pg/mL acompanhada de sintomas neurológicos. Se não houver resposta perceptível após três meses e o MMA estiver normal, reconsidero o diagnóstico. Essa estratégia, embora empírica, evita a armadilha de tratar apenas números. Afinal, medicina é a arte de integrar dados objetivos ao enredo subjetivo do paciente.

A essa altura, cabe reforçar — discretamente — o ponto que abri lá no início: sintomas cognitivos flutuantes merecem investigação laboratorial detalhada. Essa repetição, embora sutil, procura fixar a prioridade sem recorrer a truques conclusivos.

No cotidiano, histórias de recuperação parcial são mais comuns do que reviravoltas de filme. Lembro de uma professora aposentada que escrevia crônicas e, de repente, começou a trocar letras, confundir vozes narrativas, perder o fio da meada. Exames revelaram B₁₂ em 180 pg/mL. A reposição restaurou boa parte da fluência, mas não apagou totalmente os lapsos semânticos. Ela retomou as crônicas, agora com auxílio de um grupo de revisão, argumentando que cada errinho lembrava o valor da vitamina. Esse testemunho ressalta a dimensão humana: mesmo quando a ciência entrega a solução, o desfecho inclui adaptação, paciência e reinvenção da própria identidade.

Outro caso ilustra a versatilidade clínica: um paciente vegetariano de longa data, adepto de maratonas urbanas, apresentou parestesias nos pés e ataques de pânico. Pensou que fosse overtraining ou ansiedade corporativa. A dosagem de cobalamina em 90 pg/mL e MMA elevado respondeu rápido às injeções, mas o medo de recaída o motivou a rever a dieta e iniciar suplementação sublingual. Hoje, ele corre menos, medita mais e mantém diário alimentar. A experiência sugere que a vitamina pode ser gatilho para mudanças comportamentais sustentáveis.

Chegamos, assim, ao entrelaçamento final de argumentos. A deficiência de vitamina B₁₂ não é vilã universal das doenças psiquiátricas nem heroína que cura todos os quadros confusos. Ela se comporta como um módulo metabólico que, quando falha, desorganiza sinapses, atrasa potenciais de ação, distorce neurotransmissores. Em cérebros predispostos, esse desequilíbrio vira porta de entrada para depressão, delírios, mania; em cérebros já fragilizados por degeneração, acrescenta uma camada de névoa que dá a impressão de avanço demencial. Identificar esse componente exige escuta clínica, bom senso no rastreio e agilidade na correção.

Pergunto, então, ao leitor que chegou até aqui: quando foi a última vez que você ouviu falar da importância de uma simples injeção vitamínica numa história de hospital? Em tempos de sequenciamento genético e terapias biológicas, pode soar banal. Mas a biologia raramente esquece suas regras básicas. Um átomo de cobalto no centro de um anel corrinoide ainda decide se um idoso vai reconhecer ou não o filho no corredor. Se isso não desperta fascínio — e certa humildade — talvez valha reler os primeiros parágrafos deste texto.

Enquanto a comunidade científica debate novos biomarcadores e recomendações populacionais, uma atitude permanece inquestionável: diante de qualquer alteração aguda de comportamento, olhar para a bioquímica não faz mal. Trazer à tona a possibilidade de um déficit silencioso, investigar causas de má-absorção, revisar medicamentos que interferem na fisiologia gástrica, tudo isso compõe um mosaico de cuidado que ultrapassa a sofisticação de protocolos. A medicina, afinal, continua uma conversa, às vezes dura, às vezes delicada, entre curiosidade e evidência.

Fica a pergunta final: será que a próxima fronteira na prevenção de transtornos cognitivos não passa pelo prato? Talvez não encontremos respostas completas tão cedo, mas cada caso revertido lembra que nutrir sinapses é tarefa diária, microscópica e, para nossa sorte, acessível. 

 


Referências:

Organic psychosis without anemia or spinal-cord symptoms in patients with vitamin B12 deficiency - Psicose orgânica sem anemia ou sintomas medulares em pacientes com deficiência de vitamina B12: relato de casos que descreve reversão de sintomas psicóticos (delírios, alucinações, lentificação cognitiva) após reposição de cobalamina, reforçando a importância de investigar a vitamina em quadros de psicose atípica. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6849439/

The neuropsychiatry of megaloblastic anaemia - Neuropsiquiatria da anemia megaloblástica: revisão clínica com ênfase nos mecanismos pelos quais a carência de B12 ou folato leva a alterações de humor, confusão e neuropatia, contrastando perfis hematológicos e neuropsiquiátricos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6253016/

Pernicious anemia in the demented patient without anemia or macrocytosis — A case for early recognition - Anemia perniciosa em paciente com demência sem anemia ou macrocitose — um argumento para reconhecimento precoce: dois relatos que demonstram demência potencialmente reversível quando a deficiência de B12 é detectada antes de alterações hematológicas clássicas. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3722679/

Macrocytosis, mild anemia, and delay in the diagnosis of pernicious anemia - Macrocitose, anemia leve e atraso no diagnóstico de anemia perniciosa: estudo de coorte que demonstra como pequenas alterações eritrocitárias podem mascarar hipovitaminose B12, resultando em apresentação neuropsiquiátrica sem sinais hematológicos evidentes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/760683/

Nervous and mental manifestations of pre-pernicious anemia - Manifestações nervosas e mentais da anemia pré-perniciosa: estudo de 1905 descrevendo alterações cognitivas e irritabilidade em pacientes ainda sem anemia, apontando que o sistema nervoso é mais sensível à falta de B12 que o sangue. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/454510

Psychiatric syndromes due to avitaminosis B12 with normal blood and marrow - Síndromes psiquiátricas por avitaminose B12 com sangue e medula normais: série de casos evidenciando que testes hematológicos normais não excluem deficiência, salientando a necessidade de dosagem sérica na avaliação psiquiátrica. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/%28SICI%291099-1166%28199805%2913%3A5%3C295%3A%3AAID-GPS801%3E3.0.CO%3B2-1

“Mini-Mental State”: A practical method for grading the cognitive state of patients for the clinician - Mini-Mental State: método prático de graduação do estado cognitivo: artigo que introduz teste breve capaz de monitorar melhora cognitiva após reposição de B12 em estudos posteriores. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/0022395675900266?via%3Dihub

Outcome of investigation of patients with presenile dementia - Desfecho da investigação de pacientes com demência pré-senil: trabalho que inclui rastreio de B12, mostrando baixa prevalência de casos reversíveis, fundamentando políticas de triagem seletiva. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC1788994/

Dementia in elderly outpatients: a prospective study - Demência em pacientes ambulatoriais idosos: estudo prospectivo: coorte de 107 idosos que avaliou múltiplas causas de déficit cognitivo, encontrando hipovitaminose B12 rara porém tratável, recomendando investigação bioquímica quando há sinais hematológicos ou clínicos sugestivos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6696360/

The nervous symptoms in pernicious anemia: an analysis of one hundred and fifty cases - Sintomas nervosos na anemia perniciosa: análise de 150 casos: levantamento de 1919 que quantifica parestesias, ataxia e alterações mentais, reforçando a heterogeneidade neurológica da carência de B12. https://www.proquest.com/openview/59e138ee3a424b2fba15591e64133851/1

Cerebral manifestations of vitamin B12 deficiency - Manifestações cerebrais da deficiência de vitamina B12: série de 1956 que correlaciona alterações no EEG, confusão e delírios com níveis séricos baixos, mostrando reversibilidade parcial após tratamento. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/326204

Hallucinations and Vitamin B12 Deficiency: A Systematic Review - Alucinações e deficiência de vitamina B12 : A deficiência de vitamina B12 está associada principalmente à anemia perniciosa, polineuropatia e doença da medula espinhal, mas publicações sobre sua associação com alucinações estão aumentando. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11651228/

Screening of psychiatric patients for hypovitaminosis B12 - Triagem de pacientes psiquiátricos para hipovitaminose B12: estudo de 1969 com 1.004 internações que encontrou poucos casos de deficiência verdadeira e benefício terapêutico limitado, questionando a eficácia do rastreio em massa. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC1984345/

Low serum cobalamin levels in primary degenerative dementia: do some patients harbor atypical cobalamin deficiency states? - Baixos níveis de cobalamina na demência degenerativa primária: haveria estados atípicos de deficiência? análise de 1987 que sugere subtipo de demência relacionado a B12, motivando pesquisas sobre marcadores mais sensíveis como ácido metilmalônico. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3827417/

0 comments:

Postar um comentário