Quando buracos negros colidem com estrelas de nêutrons

Buraco Negro
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Existem fenômenos que parecem distantes, intocáveis, quase abstrações matemáticas, até o dia em que alguém consegue desenhá-los em detalhes diante dos olhos do mundo. O encontro de uma estrela de nêutrons com um buraco negro, por exemplo, sempre me fascinou — talvez pela escala, talvez pelo drama. O que ocorre quando um astro tão denso é tragado por um abismo gravitacional? Perguntas assim ficam rondando minha cabeça até tarde da noite. Recentemente, astrofísicos deram um passo inédito ao modelar esse evento com precisão nunca antes alcançada, usando um dos supercomputadores mais potentes do planeta. Vale dizer que, na prática, foi possível observar, com impressionante exatidão, como uma estrela morre engolida por um buraco negro.

A pesquisa foi liderada por Elias Most, do Caltech, que reuniu uma equipe para simular cada etapa do processo: desde os primeiros abalos até o surgimento de sinais observáveis. Uma das primeiras surpresas do estudo foi o papel das chamadas forças de maré, aquelas mesmas que movem os oceanos terrestres, mas elevadas a uma potência quase inimaginável. Ao se aproximar do buraco negro, a camada externa da estrela de nêutrons começa a sofrer rupturas, como se fosse a crosta da Terra diante de terremotos devastadores. Essas “rachaduras” surgem antes mesmo de ocorrer o contato final, quando a distância entre os corpos já se conta em poucos quilômetros.

É interessante notar que, nesse momento, surgem as chamadas ondas de Alfvén. Trata-se de distúrbios magnéticos que se propagam ao longo do campo magnético, muito semelhantes a uma onda que cresce no mar durante uma tempestade. Aqui, a física nos surpreende: tais ondas podem gerar picos de radiofrequência detectáveis da Terra, funcionando como um alerta precoce de que um evento cataclísmico está prestes a acontecer. Aliás, este fenômeno, conhecido por alguns como “estrelo-tremor”, já foi discutido em artigos teóricos, mas agora surge como peça central de uma simulação realista.

Antes, só era possível abordar esse cenário no papel, com modelos parciais e aproximações grosseiras. Agora, pela primeira vez, temos uma simulação completa, acompanhando o caminho das partículas, a turbulência do plasma, os campos magnéticos se retorcendo, a pressão quase inconcebível dentro da matéria ultra-densa. Não se trata mais de um exercício acadêmico abstrato: é quase como assistir ao espetáculo de dentro do palco.

Para chegar a esse resultado, o grupo de pesquisadores utilizou o supercomputador Perlmutter, um dos maiores já construídos, equipado com milhares de GPUs (unidades de processamento gráfico). São esses chips especializados que tornam viável a resolução das equações mais complexas da astrofísica contemporânea. Anos atrás, tentar calcular cada detalhe desse tipo de colisão era tarefa para décadas — e, mesmo assim, imprecisa. Hoje, basta uma janela de quatro ou cinco horas de computação intensiva para extrair respostas que resistem ao escrutínio físico.

Eu tive algumas reflexões sobre como a tecnologia redefine a própria maneira de perguntar à natureza. Antigamente, nos contentávamos em observar o que o telescópio entregava. Agora, desenhamos universos inteiros em algoritmos, esperando que alguma pista salte dos dados.

Outra revelação fascinante do trabalho foi a identificação de um fenômeno chamado “pulsar negro”. Assim que a estrela de nêutrons ultrapassa o horizonte de eventos — aquele ponto sem retorno do buraco negro —, a própria singularidade passa a emitir feixes de energia, não muito diferentes dos jatos de rádio dos pulsares tradicionais. É uma espécie de sopro final: por um breve instante, antes que tudo suma, o buraco negro brilha como se tivesse herdado a pulsação da estrela que acabou de devorar. É um efeito passageiro, que dura frações de segundo, resultado do entrelaçamento dos campos magnéticos ao redor do buraco negro.

Tal fenômeno era considerado impossível por muitos, pois se pensava que só objetos com um núcleo rígido poderiam gerar radiação tão ordenada. O novo estudo mostra que basta o resquício do campo magnético e um pouco de plasma em rotação para desencadear esse flash. Isso pode ser um caminho para observar diretamente, em futuras campanhas de monitoramento, o momento exato em que uma estrela desaparece na escuridão.

O artigo ainda destaca um detalhe visual inesperado: as linhas do campo magnético, depois do encontro, desenham uma espécie de “saia de bailarina” ao redor do buraco negro. Nesses pontos de encontro entre fluxos opostos, surgem correntes elétricas intensas que aquecem a matéria remanescente, criando um padrão energético reconhecível. É quase poético imaginar tamanha destruição formando, por um instante, algo esteticamente tão curioso.

Os autores da pesquisa sugerem que tais avanços permitem análises mais profundas de outros tipos de sistemas compactos. Não só pares de estrelas de nêutrons e buracos negros, mas também duplas de estrelas de nêutrons e, quem sabe, configurações ainda mais exóticas com campos magnéticos peculiares. Com a precisão crescente dos modelos e a sensibilidade dos telescópios, abre-se a possibilidade de prever e interpretar eventos cósmicos que antes pareciam aleatórios.

Se observarmos impulsos de rádio, explosões de raios X ou breves emissões de raios gama, talvez estejamos assistindo, em tempo real, ao último suspiro de uma estrela de nêutrons, espremida até a ruptura e finalmente engolida pelo vazio. Curiosamente, percebo que sobre essa sequência é: esse padrão de sinais múltiplos que deverá permitir, no futuro, a identificação segura desses encontros extremos.

É intrigante pensar que, do ponto de vista humano, todo esse drama cósmico se desenrola no mais completo silêncio, um espetáculo sem som, apenas luz e partículas estremecendo o tecido do espaço. Fico imaginando quantas vezes, ao longo da história do universo, gigantes de nêutrons já se perderam assim, com seu último grito ecoando entre as galáxias, invisível e quase sempre despercebido por olhos terrestres.

 


Referências:

Black Hole Pulsars and Monster Shocks as Outcomes of Black Hole–Neutron Star Mergers: https://iopscience.iop.org/article/10.3847/2041-8213/adbff9

 

Glicose, cetonas, memória e o que sustenta o cérebro em queda

CEtonas no corpo
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Imagine que o envelhecimento cerebral não é apenas uma linha reta rumo ao declínio, mas uma curva sinuosa, cheia de desvios, curvas e até pontos críticos em que as coisas mudam de direção. A ciência, há décadas, persegue respostas para uma questão central: o que realmente impulsiona o envelhecimento do cérebro? Por que algumas pessoas mantêm a clareza mental até idades avançadas, enquanto outras perdem rapidamente funções cognitivas? E, mais instigante ainda: seria possível intervir nesse processo antes que o ponto de virada chegue — antes que as mudanças se tornem irreversíveis?

Comecei a pensar mais profundamente sobre isso depois de ler sobre um experimento simples: um grupo de pessoas de meia-idade tomou um suplemento que eleva os níveis de corpos cetônicos no sangue — e, surpreendentemente, os exames mostraram um efeito imediato de restauração da estabilidade das redes cerebrais. Esse efeito, porém, desapareceu nos idosos. A pergunta então ficou ecoando: existiria uma janela de tempo em que o cérebro é especialmente sensível a intervenções metabólicas?

Para explorar esse tema, preciso abrir um parêntese rápido e explicar dois conceitos técnicos essenciais. Primeiro, falo de “homeostase metabólica”, que é a capacidade do corpo (e do cérebro) de manter seus processos energéticos sob controle, mesmo diante de mudanças e desafios. Segundo, entra em cena o “transporte de glicose”, responsável por abastecer neurônios com sua principal fonte de energia. Mas, ao contrário do que se imagina, esse transporte não é igual para todos os neurônios — alguns dependem de mecanismos sensíveis à insulina, enquanto outros usam caminhos independentes. Aqui, o protagonista é o transportador GLUT4, que exige insulina para funcionar.

E por que isso importa? Porque, com a idade, a resistência à insulina aumenta silenciosamente em várias partes do corpo, inclusive no cérebro. Esse fenômeno é chamado de “resistência neuronal à insulina”. Neurônios resistentes à insulina simplesmente não conseguem absorver glicose de maneira eficiente, entrando em um estado de “hipometabolismo” — basicamente, um modo de economia forçada, com menos energia disponível para as tarefas do dia. O que a ciência começou a perceber é que essa queda no metabolismo antecede sintomas clínicos de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer. O mais curioso é que, nessas fases iniciais, as mudanças já aparecem nos exames funcionais, como fMRI (ressonância magnética funcional) ou EEG (eletroencefalograma), muito antes de qualquer sintoma perceptível no cotidiano
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Talvez agora você esteja se perguntando: se o problema é a energia, não seria possível fornecer uma fonte alternativa? É aqui que entram os corpos cetônicos. Eles podem ser produzidos naturalmente pelo corpo durante o jejum ou dietas com baixo teor de carboidrato, ou ainda ser fornecidos em suplementos específicos. Os corpos cetônicos — como o beta-hidroxibutirato — conseguem alimentar os neurônios mesmo quando há resistência à insulina, porque usam um transportador chamado MCT2, que não depende de insulina para funcionar. É um atalho bioquímico, uma rota de fuga para o neurônio faminto.

Ao investigar o padrão do envelhecimento cerebral, pesquisadores descobriram algo fascinante: a trajetória não é linear, mas sim sigmoidal — lembra uma curva em “S”. Eles identificaram pontos críticos nessa curva, como o início da desestabilização das redes cerebrais por volta dos 43 a 47 anos, o ponto de máxima aceleração dessa instabilidade entre os 60 e 67 anos e, por fim, um platô, quando a rede já está bem menos estável. Esses marcos foram replicados em grandes bancos de dados populacionais, usando exames funcionais em dezenas de milhares de participantes, de jovens adultos a idosos. Nesses estudos, o aumento da instabilidade das redes cerebrais coincidiu de maneira impressionante com um aumento nos níveis de HbA1c — um marcador de glicemia cronicamente elevada, ligado à resistência à insulina. Interessante também perceber que, enquanto os marcadores metabólicos disparam já no início desse processo, os problemas vasculares e inflamatórios aparecem mais adiante, na curva.

A reflexão aqui é inevitável: muitos modelos antigos de envelhecimento sugeriam que tudo era uma mistura de pequenos desgastes acumulados, como oxidação, inflamação e lesão vascular. Agora, começa a emergir a ideia de que a quebra da homeostase metabólica — e especialmente da resposta à insulina nos neurônios — é o grande gatilho. Um lapso de memória (me distraí aqui, porque acabei pensando em quantas vezes já ouvi médicos falando do cérebro como “órgão consumidor de glicose”, mas quase nunca mencionando que esse consumo pode travar).

Quando os pesquisadores analisaram padrões de expressão gênica em diferentes regiões do cérebro, cruzando com o ritmo do envelhecimento funcional dessas áreas, encontraram uma correlação forte entre as regiões que envelhecem mais rápido e a presença do GLUT4. E, curiosamente, regiões com maior expressão de MCT2 (o transportador de corpos cetônicos) mostraram menos vulnerabilidade. Em outras palavras, parece que existe uma espécie de “escudo protetor” para os neurônios capazes de usar corpos cetônicos. O gene alelo apolipoproteína, conhecido por seu papel no transporte de lipídios e como fator de risco para Alzheimer, também apareceu nesse cenário — como se houvesse uma conversa entre metabolismo de glicose, lipídios e cetonas nos bastidores do envelhecimento cerebral.

Eu tive algumas reflexões, quase como quem tropeça numa ideia no meio do caminho. Se já sabemos que existe essa janela crítica entre os 40 e 60 anos, por que não existem políticas de saúde pública voltadas para intervenções metabólicas nessa faixa etária? Seria preciso esperar pelos primeiros sintomas de declínio ou poderíamos, de forma proativa, propor estratégias de prevenção baseadas em metabolismo cerebral? A própria experiência pessoal me faz pensar que a maioria das pessoas só se preocupa com dieta ou atividade física quando sente o peso do cansaço mental ou os lapsos de memória aumentam. Mas o corpo e o cérebro já estavam mudando muito antes disso.

Retomando a linha de raciocínio, há uma questão técnica que sempre gera discussão: como isolar o impacto do metabolismo do cérebro, sem confundir com fatores vasculares ou inflamatórios? Os estudos resolveram isso controlando rigorosamente as variáveis, usando grandes amostras e métodos de análise funcional que permitem separar os efeitos. Assim, foi possível mostrar que, no início do processo de envelhecimento cerebral, é o metabolismo que muda primeiro. Só depois vêm as alterações vasculares e, por fim, as inflamatórias.

Outro ponto curioso: na hora de testar intervenções com corpos cetônicos, os pesquisadores descobriram que o efeito positivo é maior justamente durante o período de transição metabólica, aquela janela entre os 40 e 59 anos. Depois dos 60, o benefício desaparece. Não porque o suplemento não chegue ao cérebro, mas porque os neurônios já perderam a capacidade de usá-lo de forma eficiente. Chega um ponto em que o sistema deixa de “curvar” e passa a “quebrar”. Essa analogia do "curvar antes de quebrar" é muito usada na engenharia, mas aqui encaixa perfeitamente: os neurônios suportam o estresse metabólico até certo limite; passado esse ponto, as alterações tornam-se irreversíveis.

Reforçando o ponto anterior, o estudo sugere que uma intervenção precoce — especialmente antes da perda irreversível dos neurônios — pode reverter boa parte da instabilidade das redes cerebrais. Em outras palavras, existe sim uma “janela de oportunidade”, mas ela não fica aberta para sempre.

O próximo passo é entender por que algumas pessoas atravessam essa janela sem grandes problemas, enquanto outras não. Seriam fatores genéticos, ambientais, estilo de vida, ou uma combinação de todos eles? A expressão do gene apolipoproteína, por exemplo, pode aumentar o risco de declínio cognitivo acelerado, mas só em alguns contextos. O ambiente alimentar e a frequência de picos glicêmicos ao longo da vida provavelmente modulam essa vulnerabilidade.

A reflexão que faço agora é: quantos de nós paramos para pensar que as escolhas alimentares do cotidiano — excesso de açúcar, picos de insulina, falta de jejum metabólico — podem estar “programando” nosso cérebro para envelhecer mais rápido? Talvez a resposta não esteja em medicamentos caros, mas em estratégias simples de manutenção do metabolismo cerebral, como períodos de restrição alimentar, maior consumo de gorduras saudáveis, e até mesmo, em alguns casos, o uso planejado de suplementos cetônicos.

Voltando à ciência, há um desafio metodológico importante. Grande parte dos estudos anteriores analisava pessoas já com sintomas ou diagnóstico de doenças neurodegenerativas. Isso limita a capacidade de diferenciar causas de consequências. Quando o foco se volta para adultos saudáveis, principalmente antes dos 60 anos, torna-se possível enxergar o processo de envelhecimento como algo dinâmico, cheio de idas e vindas, e não como uma sentença inevitável. E, sim, os métodos de análise funcional do cérebro — como a estabilidade das redes neurais — podem indicar alterações anos antes do surgimento dos sintomas clássicos.

Uma questão que é bom destacar é a interação entre metabolismo, inflamação e função vascular. Esses sistemas não operam isoladamente. O envelhecimento acelera ciclos de retroalimentação negativa, em que o metabolismo prejudicado agrava a inflamação, que, por sua vez, compromete os vasos sanguíneos, criando um círculo vicioso. O grande problema é interromper esse ciclo no ponto certo, antes que o dano se torne permanente. Isso reforça a importância de intervenções multifatoriais, mas sem perder o foco: atacar o metabolismo pode ser a chave inicial para evitar o desmoronamento dos demais sistemas.

Ao juntar todas essas peças, fica claro que o envelhecimento cerebral é menos uma sequência de eventos previsíveis e mais um processo de transições abruptas, marcadas por pontos críticos. Entender e reconhecer esses pontos pode nos dar a chance de agir antes que seja tarde demais. E, embora eu me pegue repetindo essa ideia, talvez por insegurança ou insistência, não custa lembrar: o futuro das estratégias para manter o cérebro saudável talvez esteja menos em intervenções tardias e mais na identificação precoce da janela crítica de intervenção metabólica. Pensar nisso é, de certo modo, cuidar do próprio futuro.

 


Referências:

Discrete brain areas express the insulin-responsive glucose transporter GLUT4 - Áreas cerebrais discretas expressam o transportador de glicose sensível à insulina GLUT4: Esse estudo mapeou regiões específicas do cérebro que expressam o GLUT4, sugerindo que certos neurônios dependem diretamente da insulina para absorver glicose, o que os torna mais vulneráveis ao declínio metabólico com o envelhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8737666/

 Immunocytochemical localization of the insulin-responsive glucose transporter 4 (Glut4) in the rat central nervous system - Localização imunocitoquímica do transportador de glicose 4 (GLUT4), sensível à insulina, no sistema nervoso central de ratos: Este trabalho mostra que o GLUT4 está presente em diversas áreas do cérebro de ratos, reforçando a ideia de que a captação de glicose por neurônios pode depender da sensibilidade à insulina — um ponto central na hipótese da “diabetes tipo 3” no Alzheimer. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/9741479/

 Brain fuel metabolism, aging, and Alzheimer's disease - Metabolismo energético cerebral, envelhecimento e doença de Alzheimer: O artigo revisa como o declínio na capacidade do cérebro de utilizar glicose precede sintomas de Alzheimer e discute o potencial uso terapêutico de fontes alternativas de energia, como corpos cetônicos, para retardar o envelhecimento cerebral. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21035308/

Use of Functional Magnetic Resonance Imaging in the Early Identification of Alzheimer’s Disease - Uso da ressonância magnética funcional na identificação precoce da doença de Alzheimer: A fMRI é apresentada como uma ferramenta promissora para detectar alterações na conectividade cerebral antes mesmo do surgimento de sintomas clínicos — uma base importante para estudar como a instabilidade das redes cerebrais pode sinalizar o início do declínio cognitivo. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC2084460/

The potential of functional MRI as a biomarker in early Alzheimer’s disease - O potencial da fMRI como biomarcador na fase inicial da doença de Alzheimer: Explora como a instabilidade funcional em redes cerebrais específicas pode servir como um marcador precoce e confiável da progressão do Alzheimer — tema que também aparece nos estudos sobre intervenção com cetose em fases críticas da meia-idade. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3233699/

 Ketosis regulates K+ ion channels, strengthening brain-wide signaling disrupted by age Open Access - A cetose regula canais de íons K⁺, fortalecendo a sinalização cerebral ampla prejudicada pela idade: Um estudo inovador que mostra como corpos cetônicos restauram a função neuronal ao reequilibrar canais iônicos fundamentais para a sincronia em larga escala das redes neurais — sugerindo um mecanismo celular para o “escudo protetor” contra o envelhecimento cerebral. https://direct.mit.edu/imag/article/doi/10.1162/imag_a_00163/120749/Ketosis-regulates-K-ion-channels-strengthening

 D-β-hydroxybutyrate stabilizes hippocampal CA3-CA1 circuit during acute insulin resistance  - O D-β-hidroxibutirato estabiliza o circuito CA3-CA1 do hipocampo durante resistência aguda à insulina: Mostra como a presença de corpos cetônicos estabiliza as conexões neurais mesmo sob condições de resistência à insulina, explicando por que regiões que usam cetonas — via transportadores como o MCT2 — apresentam maior resiliência no envelhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37662316/

 Gene dose of apolipoprotein E type 4 allele and the risk of Alzheimer's disease in late onset families  - Dose gênica do alelo tipo 4 da apolipoproteína E e o risco de Alzheimer em famílias com início tardio: Um dos estudos clássicos que estabelecem a associação entre o gene APOE4 e maior risco de Alzheimer, indicando um elo genético entre metabolismo lipídico e neurodegeneração — peça-chave na “conversa metabólica” entre glicose, lipídios e cetonas no cérebro que envelhece. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8346443/

Refletindo sobre a engenharia social: como somos manipulados todos os dias.

Influencia na sociedade
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Enquanto caminhava em uma dessas ruas barulhentas do centro, olhei para um cartaz de promoção e me peguei pensando sobre como as pessoas acabam tomando decisões que, na maioria das vezes, não são exatamente “delas”. Você já percebeu como um simples anúncio, uma frase bem escolhida ou até mesmo uma conversa casual conseguem mexer com seus pensamentos, alterar o rumo das suas escolhas ou, pior ainda, fazer você acreditar que decidiu por vontade própria? Essa reflexão me levou para um campo fascinante, para explorar o que acontece em nossa sociedade que possa influenciar nossas decisões.

Falar de engenharia social é mergulhar numa área que parece distante da nossa rotina, mas que, se você olhar bem, está em praticamente tudo. A engenharia social não é algo que possa ser considerado científico ou totalmente comprovada, mas ela usa técnicas da ciência. No mundo da segurança da informação, engenharia social costuma ser tratada como o conjunto de técnicas usadas para manipular alguém e obter informações confidenciais. Só que, na real, o conceito é muito maior. Tem a ver com influência, persuasão, padrões de comportamento, nossa tendência a seguir certas regras invisíveis e, claro, o famoso desejo de se encaixar.

Fico imaginando quantas vezes, sem perceber, podemos cair em armadilhas desse tipo. Não precisa ser um golpe de banco sofisticado. Às vezes, basta um colega pedir “só um favor” ou aquele pop-up perguntando se pode enviar notificações para o seu navegador. A verdade é que a engenharia social vive de explorar fraquezas humanas. Mas o que faz alguém ser tão vulnerável a essas abordagens? A ciência tem algumas explicações.

Quando você observa o estudo das influências sociais, é quase obrigatório esbarrar nos Princípios de Cialdini. O pesquisador Robert Cialdini se dedicou a entender como as pessoas convencem umas às outras e organizou suas descobertas em seis princípios. Alguns soam óbvios, outros são verdadeiras armadilhas disfarçadas de senso comum.

O primeiro deles, o da reciprocidade, parece simples: você tende a retribuir aquilo que recebe. Ganhar um bombom na loja aumenta as chances de comprar alguma coisa, mesmo sem querer. Quem nunca sentiu aquela pressãozinha de fazer algo em troca, só para não parecer ingrato? O curioso é que, do ponto de vista evolutivo, esse comportamento faz sentido. Em sociedades tribais, retribuir favores era essencial para a sobrevivência. Mas hoje, essa lógica virou ferramenta de vendedor, publicitário e até golpista.

O segundo princípio, o do compromisso e consistência, pega pesado na ideia de que, uma vez que você toma uma decisão, tende a manter essa linha para não parecer incoerente, principalmente para si mesmo. Se você se declara “eco-friendly” em público, vai pensar duas vezes antes de aceitar uma sacola plástica no supermercado. A pressão não é só externa, ela vem de dentro. O cérebro humano valoriza a coerência, talvez até mais do que deveria.

O terceiro, da aprovação social, é um velho conhecido: “Se todo mundo faz, deve ser certo.” Aquele restaurante lotado na esquina sempre parece ter a melhor comida. O grupo, o coletivo, funciona como uma bússola. É por isso que depoimentos, avaliações online e “casos de sucesso” são tão usados em estratégias de persuasão. O medo de ficar de fora, de não pertencer, grita dentro de quase todo mundo.

Já o quarto, autoridade, é clássico. Uniforme, crachá, ou um diploma na parede: símbolos de poder convencem. Uma figura com postura de especialista faz você aceitar recomendações sem muita análise. O interessante é que, mesmo sabendo que autoridade pode ser forjada, o instinto de seguir líderes se impõe em muitos contextos.

O quinto, o da escassez, explora nossa aversão à perda. Se algo está acabando, você sente vontade de garantir logo. Promoções relâmpago, vagas limitadas, só hoje… Sério, quem nunca caiu nessa?

Por fim, tem a simpatia. Você tende a dizer “sim” para quem gosta. Vendedores que criam empatia vendem mais, políticos carismáticos ganham votos, hackers que puxam conversa amistosa conseguem informações valiosas. O cérebro é pouco racional na hora de separar simpatia de confiança.

É interessante perceber que todos esses princípios atuam juntos, embaralhando sua capacidade de resistir. Isso me lembra de um episódio bobo: um desconhecido puxou papo no ônibus, contando uma história triste e depois pedindo dinheiro para o almoço. Eu já tinha lido sobre essas táticas, mas, de alguma forma, me senti mal em negar. Por um instante, pensei até que estava imune. Tolice.

Só que, ao contrário do que pode parecer, esses princípios não são “truques” exclusivos dos outros. Você mesmo aplica muitos deles o tempo todo. Quando convida um amigo para um evento e diz que todos vão, usa a aprovação social. Quando compartilha a última unidade de uma promoção, aciona a escassez. É um ciclo.

Esse cenário só fica mais interessante quando misturamos com outro conceito: a teoria da dissonância cognitiva. Festinger, lá nos anos 1950, descreveu como nosso cérebro detesta contradições internas. Imagine a situação: você preza pela saúde, mas devora um hambúrguer duplo e batata frita. Para aliviar a sensação ruim, seu cérebro encontra justificativas — “Foi só hoje”, “Eu mereço”, “Preciso de energia para trabalhar”. A criatividade nesse momento é infinita.

A dissonância cognitiva não aparece só em grandes decisões. Às vezes, ela surge nos pequenos detalhes. A pessoa que critica o consumismo, mas não resiste a um novo celular. O estudante que diz estudar por prazer, mas se pega estudando só para tirar nota boa. O indivíduo que defende privacidade, mas aceita todos os cookies do site sem ler nada. É um desconforto silencioso, mas persistente.

Se você olhar bem, vai notar que a dissonância cognitiva é a cola das mudanças de opinião. Quando um argumento desafia suas crenças, em vez de reavaliar tudo do zero, seu cérebro procura maneiras de encaixar a novidade naquilo que já acredita. É por isso que debates na internet raramente mudam a cabeça de alguém de verdade. Normalmente, cada lado reforça o próprio ponto de vista. Em casos extremos, as pessoas ficam até mais radicais.

O efeito do framing — ou “moldura cognitiva” — joga mais tempero nessa conversa. Em poucas palavras, framing é o jeito como a informação é apresentada. Um mesmo dado pode soar otimista ou pessimista, dependendo da moldura. Um exemplo clássico é: “Essa cirurgia tem 90% de sucesso” versus “Essa cirurgia tem 10% de risco de morte.” Ambos os números dizem a mesma coisa, mas a forma como você sente o impacto deles é bem diferente.

Isso me faz lembrar de quando um supermercado coloca uma placa dizendo “90% dos clientes aprovam este produto”. Você fica curioso, sente vontade de experimentar. Mas se estivesse escrito “10% dos clientes não gostaram”, já bate aquela dúvida. É o mesmo dado, só muda o jeito de falar, e a sua reação muda junto.

Framing é explorado diariamente em noticiários, publicidade, debates políticos. Lembro de ter visto um comercial antigo em que o refrigerante era vendido como “menos calórico”. Ninguém dizia que ainda tinha açúcar de sobra, só destacava o que parecia vantagem. Nosso cérebro, mais uma vez, age por atalhos, priorizando o que está em destaque.

Quando você começa a juntar esses elementos — influência, dissonância, framing — percebe como o ambiente, o contexto e a emoção afetam cada escolha. Sim, emoção. Pouco adianta discutir sobre racionalidade se você não considerar o papel das emoções nas decisões.

O ser humano, por mais que goste de acreditar em lógica, é um bicho guiado por sentimentos. Vários experimentos em psicologia mostram que, se você está ansioso, com medo ou até eufórico, toma decisões mais rápidas, muitas vezes impulsivas. A emoção ativa circuitos cerebrais específicos e, em situações de estresse, é fácil perder o senso crítico.

A ativação emocional não é sempre algo negativo, claro. Sem emoção, você se torna incapaz de priorizar, de agir com urgência, de defender aquilo que acredita. Só que, quando a emoção é exagerada — ou melhor, manipulada — vira isca para decisões ruins. O mercado financeiro vive disso: pânico, euforia, boatos. Até no supermercado você sente isso, com promoções piscando em vermelho, músicas aceleradas, vendedores sorrindo (de um jeito quase treinado demais).

Decisões impulsivas são quase um subproduto da era da informação. Informação demais, tempo de menos, necessidade de resposta imediata. Quantas vezes você já clicou em “aceitar” sem ler o contrato? Ou comprou algo só porque sentiu que precisava, mesmo sabendo que podia esperar? Acho que, se fosse possível registrar todas as pequenas impulsividades do dia, você se assustaria.

Nesse ponto, volto para a engenharia social. O truque da engenharia social, muitas vezes, é ativar suas emoções para acelerar a decisão, diminuindo o espaço de análise. Emails de phishing com títulos alarmistas, pedidos urgentes de ajuda, promoções-relâmpago que acabam em segundos. Tudo isso é projetado para mexer com a emoção antes da razão. O golpista sabe que, sob pressão, você vai agir pelo instinto.

Já me deparei com histórias de pessoas que caíram em golpes por telefone, aquelas ligações dizendo que alguém da família estava em perigo. A emoção fala mais alto que a lógica. Quando percebem, já passaram dados, fizeram transferências. Depois, analisam friamente e não entendem como “caíram” em algo tão óbvio. Mas, durante a ativação emocional, o cérebro muda de rota.

Isso me lembra de um detalhe: a ilusão de controle. Quase todo mundo acha que está no comando das próprias decisões. Só que, ao analisar o que move o comportamento humano, percebe-se que, na maioria das vezes, você só reage. As influências vêm de todos os lados: da infância, das crenças, dos medos, das experiências anteriores. Não é confortável aceitar isso, mas é necessário para, pelo menos, criar alguma barreira contra manipulações.

Vale dizer que a tecnologia potencializou tudo isso. Redes sociais, algoritmos de recomendação, notificações, bolhas de informação. Cada curtida, cada comentário, cada clique alimenta modelos que aprendem o que faz você parar, o que faz você se irritar, o que faz você comprar. O ambiente digital virou um laboratório de engenharia social, onde cada interação serve para refinar a próxima tentativa de influência.

Talvez você nunca tenha parado para pensar, mas o simples fato de se expor nas redes já é uma forma de dissonância cognitiva. Você valoriza privacidade, mas compartilha rotinas, preferências, opiniões. Depois, quando algo vaza, sente-se traído. Só que, em muitos casos, participou ativamente desse processo.

A ironia é que, mesmo sabendo de tudo isso, o cérebro continua caindo nos mesmos atalhos. Sabe aquele meme do “eu depois de estudar horas sobre influência, caindo no truque mais bobo”? Pois é. O conhecimento não cria imunidade. No máximo, gera pequenas pausas para pensar — será que essa decisão é mesmo minha? Será que estou sendo influenciado sem perceber? Às vezes, basta um segundo de reflexão para evitar um erro. Mas, convenhamos, nem sempre dá tempo.

Quando olho para a quantidade de informação disponível, fico imaginando como será daqui a dez, vinte anos. Será que novas técnicas vão surgir? Ou será que, no fundo, os humanos continuam reagindo do mesmo jeito, só com outras ferramentas? Talvez a única saída seja fortalecer a consciência crítica, exercitar o olhar desconfiado, fazer perguntas incômodas.

No fim, o que mais me intriga é o paradoxo entre controle e vulnerabilidade. Por mais que você se arme de conhecimento, ninguém está 100% protegido. O jogo é assimétrico: quem tenta influenciar tem todo tempo do mundo, enquanto você, no cotidiano, lida com distrações, cansaço, emoções. É uma luta desigual.

A saída pode ser simples, mas não fácil. Criar pausas. Duvidar dos próprios impulsos. Relembrar os princípios de Cialdini quando algo parecer “bom demais para ser verdade”. Reconhecer a dissonância cognitiva e não tentar se justificar a qualquer custo. Perceber que, quando alguém coloca uma moldura numa informação, está querendo conduzir seu olhar. E, principalmente, aceitar que emoção é parte da vida, mas não precisa ser o piloto automático.

Já reparou como, quando você lê sobre esses temas, a sensação é de que os outros caem mais fácil que você? Só que, se prestar atenção, verá que sua lista de pequenas influências diárias é bem maior do que gostaria de admitir. A vida é feita dessas microdecisões. Talvez o segredo esteja em aprender com elas, sem aquela pretensão de perfeição. Errar faz parte. E reconhecer os truques é só o começo. É, acho que nunca vamos nos livrar totalmente das manipulações. Mas, quem sabe, a gente aprende a cair menos, duvidar mais, pausar antes de clicar. 

Vajramushti - A arte marcial indiana

Vajramushti
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Vou te levar para uma viagem pouco comentada, mas absolutamente fascinante, pela história das artes marciais indianas — mais especificamente, o antigo e brutal Vajramushti, uma modalidade que poderia muito bem ser chamada de “vale tudo” da Índia. Pouca gente já ouviu falar sobre esse universo, onde tradição, devoção, técnicas de combate e uma pitada de ousadia se misturam de um jeito tão único que nem sempre é fácil separar o que é lenda do que é prática real. E, olha, você vai notar que o passado, por vezes, parece até mais criativo e ousado do que os campeonatos que passam na TV hoje.

Quando comecei a ler sobre o Vajramushti, confesso que fui pego desprevenido. Pensava que conhecia bastante sobre artes marciais tradicionais, mas não estava pronto para encontrar uma arte de combate que combina luta agarrada, trocação franca e ainda por cima envolve o uso de uma espécie de soco inglês, só que mais sofisticado e perigoso. Você pode imaginar o impacto de um golpe desses, ainda mais considerando que não era só para “dar show”, mas sim para incapacitar de verdade o adversário, em duelos que beiravam o limite entre esporte e sobrevivência.

A história começa a ganhar corpo quando se mergulha nos textos antigos da Índia, especialmente nos Puranas, esses livros que abordam de tudo: medicina, arquitetura, guerra, até mesmo o amor. No meio desse oceano de manuscritos, um em particular chama atenção: o Mallapurana. Esse texto, conservado em um instituto de pesquisa na Índia, data de 1731, mas provavelmente é ainda mais antigo, servindo como uma verdadeira enciclopédia das práticas e tradições dos lutadores de Vajramushti. Nele, a vida dos Jyesthimalla — uma espécie de clã de elite da luta indiana — é detalhada com minúcia. A palavra “Jyesthi” significa “o melhor”, e não é à toa: eles eram a referência máxima quando o assunto era combate corpo a corpo, servindo de guarda-costas, atletas e até figuras respeitadas em casamentos.

O Mallapurana não só descreve as regras e rituais, mas mergulha fundo no treinamento físico. O corpo do lutador era preparado desde cedo, em uma rotina que envolvia exercícios complexos, força, resistência e, claro, disciplina mental. Uma coisa interessante é como cada etapa do treino tinha um nome próprio: Rangasrama, Sthambhasrama, Gonitaka, Pramada, Kundakavartana e Uhapohasrama. Não se tratava só de se tornar forte — era preciso pensar como um estrategista, entender os movimentos, antecipar o oponente, e, acima de tudo, respeitar o próprio corpo como uma ferramenta de sobrevivência e expressão.

Rangasrama – refere-se à prática efetiva da luta e às técnicas de wrestling. Isso inclui todo tipo de técnicas de agarramento, como quedas, luta no chão (posição inferior), luta por cima, além de técnicas de golpes.

Sthambhasrama – um conjunto de exercícios realizados em um poste vertical chamado Sthamba. Existem vários tipos de Sthamba, mas o mais comum é um poste ereto, com cerca de vinte a vinte e cinco centímetros de diâmetro, fixado firmemente no chão. O lutador executa diversos exercícios complexos de calistenia nesse poste, para desenvolver força e resistência nos braços, pernas e parte superior do corpo.

Gonitaka – trata-se do treinamento com um grande anel de pedra. Esse peso é levantado e balançado de várias formas, chegando até a ser usado ao redor do pescoço, com o objetivo de fortalecer o pescoço, as costas e as pernas.

Pramada – é o conjunto de exercícios realizados com o uso das maças indianas, chamadas Gada. Essas ferramentas ainda são utilizadas hoje em muitas escolas tradicionais de luta da Índia, conhecidas como Akhadas.

Kundakavartana – refere-se a calistenias feitas sem equipamento, como cambalhotas, diferentes tipos de flexões, agachamentos, entre outros, usados para desenvolver a força geral e a resistência física.

Uhapohasrama
– consiste na discussão de táticas e estratégias de luta e é considerado uma parte importante do regime de treinamento dos lutadores.

Mas se você está achando que era coisa para adultos, pode ir mudando a imagem. O treinamento começava por volta dos 10 ou 12 anos, focando em exercícios que desenvolviam força, resistência e flexibilidade. Só depois de uma boa base física é que o jovem era introduzido ao Mallasthamba, o poste dos lutadores. A partir daí, o corpo e a mente eram lapidados, dia após dia, numa preparação quase ritualística. O local do treino, chamado de Akhada, era um espaço sagrado — um círculo ou quadrado de solo fofo, tratado com água, óleo, buttermilk e até ocra para manter a textura ideal. E se por acaso você pensou em algo parecido com tatames modernos, saiba que a tradição já fazia questão de preservar a integridade física dos lutadores, mostrando que o cuidado com a segurança sempre foi prioridade, mesmo em épocas remotas.

Agora, deixa eu compartilhar uma curiosidade que não sai da cabeça: os instrumentos de luta. O Vajramushti tinha um tipo de “soco inglês”, só que mais complexo e letal. Feito para encaixar perfeitamente na mão, era fixado com fios para não se soltar no calor do combate. Existem relatos até de versões com pontas afiadas para uso em guerras, mas nos duelos esportivos valia apenas a versão mais leve, sem pontas. Interessante como, mesmo sem toda a tecnologia atual, o povo indiano já pensava em adaptar armas para uso tanto em competições quanto em situações de vida ou morte. Vale lembrar que o uso do Vajramushti era restrito a golpes acima do peito — um cuidado para não transformar o duelo em tragédia. Mesmo assim, o perigo era real.

E olha, os lutadores precisavam ser versáteis. Não bastava golpear — era necessário saber travar o braço do adversário, aplicar chaves (como a Omoplata do Jiu-Jitsu moderno), usar as pernas e braços para imobilizar e até mesmo derrubar. Detalhe importante: a vitória vinha tanto pelo nocaute quanto pela submissão, especialmente imobilizando o braço armado do oponente. O curioso é perceber como certas técnicas, celebradas hoje nas academias de Jiu-Jitsu e MMA, já existiam há séculos e faziam parte do repertório desses guerreiros.

A preparação para o combate também era cheia de simbolismo. No dia da luta, a cabeça do competidor era raspada, restando só um pequeno tufo de cabelo no topo, onde se amarravam folhas de Neem — consideradas talismãs de boa sorte. O corpo era untado com ocra vermelha, supostamente para manter o frescor. Antes de sair para a arena, o lutador e sua família faziam preces a deuses protetores. No centro do Akhada, construía-se um altar improvisado, com um ramo de Neem plantado, e, ao lado, repousavam as armas. Era quase um ritual de passagem — um momento que marcava não só o início de uma luta, mas de uma afirmação identitária, de honra e pertencimento.

Da arena familiar para o público, a entrada era sempre marcada por saltos e movimentos zig-zagueantes — talvez para mostrar agilidade, talvez para impressionar o público. O objetivo era claro: forçar o adversário à submissão, usando todos os recursos possíveis, exceto golpes baixos. Cada lutador recebia uma premiação ao final, sendo que o vencedor ganhava o dobro do valor do derrotado. Caso terminasse empatado, o prêmio era dividido. Essa lógica simples e direta me faz pensar em como a competitividade e o respeito pelo adversário eram peças centrais desse universo.

E se você está imaginando que tudo isso acabou faz tempo, vale ressaltar: o clã Jyesthimalla continuou praticando e ensinando o Vajramushti por séculos, atravessando períodos de patrocínio de reis e príncipes, trabalhando como guarda-costas, protegendo caravanas e festas de casamento. Eles eram Brahmins — membros da casta sacerdotal — mas ao mesmo tempo viviam “pelas armas”. Existe até uma expressão popular em Gujarat: “os Jyesthimallas estão lutando”, usada para descrever qualquer duelo sério, tamanha era a fama desses guerreiros. É curioso como, numa sociedade marcada por castas, havia espaço para figuras híbridas, que transitavam entre religião e combate, entre devoção e força física.

O declínio desse estilo, infelizmente, acompanha uma tendência vista em várias tradições de combate. Com a chegada dos tempos modernos, do esporte regulamentado, da urbanização e da influência estrangeira, o Vajramushti ficou restrito a poucos praticantes, principalmente em Gujarat e alguns outros estados. Já nos anos 1980, havia pouquíssimos mestres sobreviventes. Esse é um padrão que se repete em diversas culturas: o que leva séculos para ser lapidado pode se perder em uma geração, se não houver renovação, registro e transmissão.

É interessante pensar como hoje vivemos cercados de academias, revistas, sites, canais de vídeo sobre lutas, e, mesmo assim, a essência de muitas artes tradicionais se esvai silenciosamente. O que temos de MMA, Jiu-Jitsu, Muay Thai, tudo isso parece recente diante de uma linhagem de guerreiros que, há séculos, já misturavam técnicas de solo, trocação, chaves e estratégias dignas de um UFC. Às vezes me pergunto se a gente realmente inventou algo novo, ou se estamos apenas reciclado — com outros nomes e estilos — o que já era conhecido e praticado em outros tempos.

É fácil romantizar o passado, mas também é fundamental reconhecer o que foi perdido. No caso do Vajramushti, não é só uma arte marcial — é um retrato de uma cultura, de uma forma de vida que integrava disciplina física, ritual, comunidade, religião e, acima de tudo, respeito por uma tradição que ultrapassava o indivíduo. Cada detalhe, do solo do Akhada ao altar no centro da arena, carregava significado. Cada luta era mais do que um espetáculo — era uma afirmação de identidade, uma maneira de perpetuar valores, costumes e até crenças espirituais.

Voltando ao ponto, é curioso refletir sobre o que faz uma arte resistir ao tempo. Talvez seja o interesse contínuo, talvez a transmissão oral de mestre para discípulo, ou até um misto de paixão e necessidade. O que se pode dizer é que, mesmo com o avanço da tecnologia e do conhecimento, existe um fio invisível que liga os praticantes do passado aos entusiastas do presente — basta ter curiosidade e disposição para ir além das modas passageiras.

Outro aspecto que chama atenção é como as práticas corporais eram integradas à vida em comunidade. O Akhada não era só um espaço de treino — era um núcleo social, onde amizades, rivalidades e tradições eram formadas. Era ali que o jovem aprendia não apenas a lutar, mas a respeitar hierarquias, a reconhecer o valor da disciplina, a entender que perder faz parte do processo e que a verdadeira vitória não é apenas derrotar o outro, mas evoluir como pessoa.

Agora, se você chegou até aqui, talvez tenha percebido como o Vajramushti vai muito além do simples embate físico. É uma espécie de metáfora da vida: preparo, disciplina, respeito ao passado, coragem diante dos desafios e uma dose de imprevisibilidade, porque nem sempre o mais forte vence. Às vezes, é quem se adapta melhor, quem compreende as nuances do momento, quem se prepara para o imprevisto.

Finalizando, você pode se perguntar: vale mesmo preservar essas histórias, essas artes quase esquecidas? Na minha opinião, sim. Porque cada tradição carrega uma sabedoria própria, uma forma de ver o mundo que complementa nossa experiência moderna. E, se olharmos com atenção, talvez encontremos respostas para questões atuais no que foi vivido e experimentado séculos atrás, debaixo do sol escaldante de Gujarat, entre rituais, suor e coragem de quem apostava tudo numa luta de Vajramushti.
 

Os mistérios das moléculas e como ela moldou a vida na Terra

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No universo da química, existe um conceito chamado ‘quiralidade’. Basicamente, isso significa que certas moléculas podem existir em duas versões diferentes, uma sendo a imagem espelhada da outra, como as mãos direita e esquerda. A princípio, pode parecer só uma curiosidade de laboratório, algo que só interessa para quem mexe com tubos de ensaio ou algo do tipo. Só que esse detalhe ganha um peso enorme quando se percebe que, apesar das reações químicas produzirem normalmente metade de cada versão: os aminoácidos e açúcares que aparecem na natureza em uma forma só. Os aminoácidos naturais são todos do tipo ‘canhoto’, enquanto os açúcares, que formam o DNA e o RNA, só existem na forma ‘destra’. Esse padrão, conhecido como homoquiralidade, é tão essencial que sem ele a vida, do jeito que conhecemos, nem existiria.

Esse fenômeno já deixou muitos pensativos desde os primeiros passos da biologia molecular. Por que a natureza escolheu apenas um dos lados dessa moeda? A ciência, até hoje, não chegou a um consenso absoluto sobre o motivo. O curioso é que, se alguém tentar criar essas moléculas do zero no laboratório, elas sempre surgem em proporções iguais, misturando as duas versões, como se não houvesse preferência.

Uma das apostas dos cientistas é de que, em algum momento da chamada ‘sopa primordial’, surgiu um desequilíbrio. Talvez uma pequena vantagem aleatória, um empurrãozinho dado por algum fator externo, radiação polarizada do Sol, minerais com superfícies assimétricas, ou até mesmo moléculas trazidas por meteoritos, ou talvez, sei lá. O fato é que, de alguma forma, um dos lados começou a dominar.

Experimentos históricos já deram pistas sobre isso. Em 1953, Stanley Miller e Harold Urey(1) simularam as condições da Terra primitiva em laboratório e conseguiram formar aminoácidos, só que sempre em proporções iguais entre destros e canhotos. Depois, muitos pesquisadores tentaram descobrir o que poderia quebrar esse empate.

Mais recentemente, o trabalho dos pesquisadores S. Furkan Ozturk e Dimitar Sasselov, de Harvard – no qual você pode ver no vídeo – chamou atenção justamente por tentar resolver essa charada. Eles testaram reações químicas sob condições semelhantes às dos mares primordiais, explorando como fatores ambientais poderiam favorecer um lado na formação das moléculas da vida. Suas descobertas, detalhadas em artigo na Science Advances em 2023(2), sugerem que ciclos de temperatura, variações de pH e até a presença de certos minerais poderiam agir em conjunto para estimular o surgimento da homoquiralidade. O impacto desse tipo de estudo é tão grande que mexe não só com a química, mas também com a forma como se imagina a origem e a evolução da vida em outros planetas.

 


Referências:


1 - A Production of Amino Acids Under Possible Primitive Earth Conditions - Em 1953, Stanley Miller mostrou que era possível formar aminoácidos a partir de gases simples e descargas elétricas simulando a atmosfera da Terra primitiva. O experimento demonstrou que compostos essenciais para a vida podem surgir em condições naturais, reforçando a teoria da “sopa primordial” como caminho para o surgimento da vida, mas sempre gerando uma mistura igual de moléculas destros e canhotos. https://www.science.org/doi/10.1126/science.117.3046.528


2 - Origin of biological homochirality by crystallization of an RNA precursor on a magnetic surface - Publicado em 2023, esse estudo revela que superfícies magnéticas podem favorecer a formação de cristais homoquirais de precursores de RNA. Ao simular condições semelhantes às da Terra primitiva, os autores mostram que é possível obter um excesso de moléculas de um único tipo quiral, sugerindo um caminho natural para a origem da homoquiralidade essencial à vida. https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adg8274



A beleza das borboletas

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Trabalhando com o laboratório Patel do Marine Biological Laboratory da Universidade de Chicago, a artista e cineasta norte-americana Kristina Dutton criou uma série de filmes que destacam a extraordinária beleza e diversidade das asas de borboletas e mariposas, conhecidas cientificamente como Lepidoptera. Utilizando uma coleção impressionante de cerca de 50 mil espécimes, Dutton explora artisticamente os detalhes surpreendentes dessas asas, revelando aspectos visuais que normalmente escapam aos olhos humanos. Vale a pena ver ele.

Esse trabalho não é apenas uma expressão artística, mas também reflete uma importante conexão com estudos científicos recentes. Pesquisas têm demonstrado como as estruturas microscópicas das asas das borboletas desempenham funções muito além da estética. Por exemplo, as nanostruturas presentes nas asas são capazes de manipular a luz de maneiras específicas, produzindo cores vibrantes por interferência de luz, um fenômeno conhecido como coloração estrutural. Um artigo publicado na revista Science Advances por Wilts e colaboradores em 2017(1), detalha como essas nanostruturas podem gerar fenômenos ópticos como a iridescência nas asas das borboletas.

Outro estudo notável, divulgado na revista Nature Communications em 2020 por pesquisadores da Universidade Duke (Davis e colaboradores)(2), revela como algumas estruturas nanométricas ultra-negras são usadas pelas borboletas para absorver quase completamente a luz incidente, contribuindo para camuflagem e proteção contra predadores.

Essas descobertas científicas destacam a complexidade funcional dessas pequenas estruturas que, apesar do tamanho reduzido, desempenham papéis vitais na sobrevivência e evolução desses insetos.

Ao trazer esses detalhes científicos através de uma perspectiva artística, Dutton proporciona uma visão integrada sobre o universo das Lepidoptera. Ela combina beleza visual com ciência criando uma narrativa envolvente que expande o entendimento e a apreciação das maravilhas da natureza que frequentemente permanecem ocultas aos nossos olhos.



Referências:

1 - Butterfly gyroid nanostructures as a time-frozen glimpse of intracellular membrane development. Autores: Bodo D. Wilts, Benjamin Apeleo Zubiri, Michael A. Klatt, Benjamin Butz, Michael G. Fischer, Stephen T. Kelly, Erdmann Spiecker, Ullrich Steiner, Gerd E. Schröder-Turk. Este estudo revelou a presença de estruturas nanoscópicas chamadas giroides nas escamas das asas da borboleta Thecla opisena. Essas estruturas tridimensionais altamente organizadas são responsáveis por cores estruturais específicas e oferecem uma visão congelada do desenvolvimento de membranas intracelulares. https://www.science.org/doi/full/10.1126/sciadv.1603119

2 - Diverse nanostructures underlie thin ultra-black scales in butterflies, Autores: Alexander L. Davis, H. Frederik Nijhout, Sönke Johnsen. Este estudo examinou uma variedade de espécies de borboletas para entender como elas produzem colorações ultra-negras. Utilizando microscopia eletrônica de varredura e modelagem óptica, os pesquisadores descobriram que diferentes nanostruturas, como trabéculas expandidas e cristas, reduzem significativamente a refletância da luz, resultando em uma aparência extremamente negra. https://www.nature.com/articles/s41467-020-15033-1




Como evoluiu a cognição humana

Exercício físico e cérebro
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Quando mergulho no passado distanciado de milhões de anos e reflito sobre o que de fato nos faz humanos, percebo que não foi apenas a evolução do corpo, mas uma espécie de processo contínuo de desenvolvimento do corpo e cérebro relacionado a cognição. Em cada lasca de pedra lascada por mãos ancestrais, em cada artesanato rudimentar, vejo não somente ferramentas, mas pistas de como nosso jeito de pensar foi se desdobrando, ganhando camadas, abrindo caminhos que nos levariam a imaginar coisas que jamais existiram.

Logo no início dessa jornada, nosso cérebro era moldada pelos desafios de simplesmente manipular objetos. Antes de sermos quais somos hoje, primatas já usavam as mãos para abrir nozes, sustentar gravetos e brincar com pedrinhas. Foi a partir desse manuseio rotineiro que surgiram os primeiros lampejos de “técnica”: não bastava apenas golpear, era preciso escolher onde golpear, calcular ângulos e até prever qual lasca poderia surgir. Com o tempo, essas decisões simples se tornaram sistemáticas, dando origem a lâminas, pontas e raspadores. Cada nova lasca foi um pequeno ensaio do que viria a se tornar planejamento e organização hierárquica de tarefas.

Percebo que não houve um grande salto de inteligência num piscar de olhos, mas sim um acúmulo gradual de competências técnicas que se apoiavam umas nas outras. Aquela rede primitiva de neurônios voltada ao manuseio de objetos ganhou força e se especializou, adaptando-se para fazer as pontas mais afiadas, as bordas mais uniformes. Ao longo de um milhão e meio de anos, as tantas gerações de hominídeos, cada uma carregando em seu DNA e em seu corpo a herança de práticas de seus antecessores, impulsionaram o refinamento dessas habilidades. Não foi um “clique”, foi um processo passo a passo, camada sobre camada de tentativas, erros e acertos.

Essa evolução técnica, por sua vez, se entrelaçou de modo profundo com a nossa capacidade de perceber o espaço de forma cada vez mais complexa. No começo, bastava diferenciar dentro e fora, cima e baixo, proximidade e afastamento, sistemas que muitos animais também dominam. Mas nós fomos além e começamos a visualizar o mundo como um grande tabuleiro em três dimensões, capaz de ser reinterpretado sob ângulos diversos. Foi nesse ponto que nasceu o que hoje chamamos de percepção alocêntrica, aquela que nos permite criar mapas mentais de territórios, planejar rotas alternativas e até imaginar lugares que nunca vimos.

Lembro-me de pensar em como nossa vida cotidiana depende desse tipo de raciocínio, quando pego uma bússola ou uso o GPS, não estou fazendo nada mais do que aproveitar habilidades que nasceram quando alguém, há centenas de milhares de anos, percebeu que podia lascar uma pedra para se defender e, em seguida, olhar ao redor e dizer “por ali deve haver água”. Aos poucos, essas competências espaciais ampliaram nosso alcance, permitindo migrações pelo planeta, descobertas de novos habitats e, por fim, trilhas invisíveis que se tornaram estradas e ferrovias.

Mas cognitivamente ainda havia um campo enorme a explorar: aquele que envolve como entendemos o outro. Ao observar nossos iguais, chimpanzés e bonobos já mostram um entendimento rudimentar de intenções alheias, mas o que desenvolvemos foi algo mais profundo. Começamos a antecipar desejos, entender crenças, até falsas crenças e nos comunicar não apenas por gestos, mas por símbolos.

Quando reflito sobre isso, sinto um arrepio ao imaginar que, muito antes de haver escrita, já existia em nossas cabeças uma hierarquia de intenções, eu sei o que tu sabes, eu sei que tu sabes que eu sei, e por aí vai. Essa “teoria da mente” foi crescendo em camadas, primeiro, sabíamos que os outros tinham objetivos, logo em seguida, aprendemos a ensinar; mais adiante, fomos capazes de usar sinais que representavam ideias distantes no tempo e no espaço.

A engrenagem social, a necessidade de manipular alianças, trocar favores e transmitir saberes, pressionou nossa seleção natural para ampliar essas competências. Quando nossos antepassados se reuniam em bandos, não bastava acertar um machado de pedra, era preciso coordenar a caçada, repartir o alimento e ensinar o passo a passo da fabricação da ferramenta para o aprendiz. Esse ciclo de ensinar-aprender-tecer relações impulsionou uma ampliação constante de como entendíamos a mente do outro.

Aquele momento em que alguém, já dominando a fabricação de pontas de flecha, percebeu que era melhor deixar várias armadilhas armadas em série, vigiá-las de longe, voltar periodicamente para checar e, ao mesmo tempo, organizar a partilha da caça. Isso exigia segurar na mente todo esse processo, ignorar distrações do ambiente, manter registro do que já havia sido feito e antecipar o que seguiria. E não se tratava de um talento de poucas pessoas: evidentemente, cânceres como a construção de grandes armadilhas, a confecção de redes ou mesmo a adoção dos primeiros sinais gravados em ossos, mostraram que estávamos criando extensões culturais para nossa memória.

Esses registros externos eram uma revolução na vida dos primeiros seres. Ao riscar três sulcos num bastão de osso, alguém libertava a própria memória de ter que contar cada item internamente. Uma sequência que seria difícil de reter em pensamento passou a existir ali, gravada. Foi o embrião de sistemas de numeração, calendários e, por fim, da matemática.

Ao juntar tudo isso, técnica apurada, percepção espacial refinada, teoria da mente complexa e funções executivas robustas, amplificadas por suportes culturais, construímos o que chamamos de “cognição humana”. E então, sem grandes saltos repentinos, sem pontos de ruptura espantosos, cruzamos fronteiras que jamais teriam sido possíveis apenas com instintos. Esse processo todo foi muito mais do que o crescimento de voluma cerebral. Foi, sobretudo, uma coevolução: nossos cérebros se moldaram pelas ferramentas que fabricamos, pelos grupos que formamos, pelos símbolos que inventamos. Ferramentas e cultura não foram meros instrumentos, mas verdadeiros parceiros nessa história. É um lembrete de que pensar não é apenas um ato interno, mas uma experiência que ganha forma fora de nós, nas pedras, nas marcas, nos traços, numa linha que, há 3,3 milhões de anos, começou com a primeira lasca não intencional e que hoje se desdobra em infinitas possibilidades.


Referências:

 

Primate cognition – Este livro apresenta uma análise aprofundada das capacidades cognitivas de primatas não humanos, explorando seus processos de percepção, memória e resolução de problemas por meio de experimentos controlados que revelam semelhanças e diferenças com a cognição humana. https://global.oup.com/academic/product/primate-cognition-9780195106244?cc=br&lang=en&

Tool use in animals: cognition and ecology – Coletânea de estudos que investiga o uso de ferramentas em diversas espécies animais, examinando como fatores ambientais e ecológicos influenciam a capacidade de manipular objetos e solucionar desafios por meio de inovações comportamentais. https://www.cambridge.org/core/books/tool-use-in-animals/92A8F1B3D5631E6D59985126BDA96EED

“An ape’s view of the Oldowan” revisited – Artigo que reexamina a fabricação de ferramentas líticas pelos primeiros hominídeos, comparando sua técnica com a de grandes símios modernos para compreender o grau de intencionalidade, habilidades motoras e planejamento envolvidos. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/evan.20323

A comparative study of the stone tool-making skills of Pan, Australopithecus, and Homo sapiens – Capítulo que compara a destreza na produção de lascas de pedra entre chimpanzés, australopitecos e humanos modernos, demonstrando como o refinamento das estratégias de lascamento evoluiu ao longo de milhões de anos. https://www.researchgate.net/publication/324043374_A_comparative_study_of_the_Stone_Tool-Making_Skills_of_Pan_Australopithecus_and_Homo_sapiens

Reduction sequences in the manufacture of Mousterian implements in France – Estudo etnográfico sobre as etapas de redução de blocos de silex na indústria musteriense, detalhando o fluxo de trabalho, os padrões repetitivos de percussão e as decisões técnicas tomadas para obter lâminas e raspadores eficientes. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4613-1817-0_3

Geometric morphometrics and paleoneurology: brain shape evolution in the genus Homo – Pesquisa que utiliza técnicas de morfometria geométrica para analisar alterações no formato craniano de diferentes espécies do gênero Homo, relacionando essas mudanças anatômicas com o desenvolvimento de regiões cerebrais ligadas ao raciocínio espacial. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248404001149

The hunter-gatherer theory of sex differences in spatial abilities: data from 40 countries – Trabalho que compila dados de quarenta nações para testar a hipótese de que diferenças de gênero em habilidades espaciais refletem adaptações de caçadores e coletoras, avaliando desempenho em tarefas de rotação mental. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17351740/

Humans have evolved specialized skills of social cognition: the cultural intelligence hypothesis – Artigo que propõe que os seres humanos desenvolveram competências sociais únicas, derivadas da pressão seletiva por cooperação e transmissão cultural, permitindo compreensão avançada de intenções, ensino e aprendizagem coletiva. https://www.science.org/doi/10.1126/science.1146282

How to learn about teaching: an evolutionary framework for the study of teaching behavior in humans and other animals – Este texto define um modelo evolutivo para investigar o comportamento de ensino em humanos e animais, discutindo critérios que distinguem ensino intencional de simples facilitação e seu impacto na transmissão de conhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24856634/

Working memory – Capítulo seminal que apresenta o conceito de memória de trabalho como sistema de armazenamento temporário e de controle atencional, explicando suas componentes centrais, mecanismos de manutenção de informações e implicações para tarefas complexas de raciocínio. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0079742108604521

What does the retrosplenial cortex do? – Revisão que sintetiza evidências sobre o papel do córtex retrosplenial na memória espacial e na navegação, descrevendo como essa região integra informações sensoriais e contextuais para apoiar o mapeamento de ambientes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19812579/

Cognitive aspects of Upper Paleolithic engraving – Estudo que analisa as marcas gravadas em ossos e pedras do Paleolítico Superior, interpretando essas notações como extensões externas da memória e sistemas iniciais de registro numérico e calendárico. https://www.jstor.org/stable/2740829