Vajramushti - A arte marcial indiana

Vajramushti
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Vou te levar para uma viagem pouco comentada, mas absolutamente fascinante, pela história das artes marciais indianas — mais especificamente, o antigo e brutal Vajramushti, uma modalidade que poderia muito bem ser chamada de “vale tudo” da Índia. Pouca gente já ouviu falar sobre esse universo, onde tradição, devoção, técnicas de combate e uma pitada de ousadia se misturam de um jeito tão único que nem sempre é fácil separar o que é lenda do que é prática real. E, olha, você vai notar que o passado, por vezes, parece até mais criativo e ousado do que os campeonatos que passam na TV hoje.

Quando comecei a ler sobre o Vajramushti, confesso que fui pego desprevenido. Pensava que conhecia bastante sobre artes marciais tradicionais, mas não estava pronto para encontrar uma arte de combate que combina luta agarrada, trocação franca e ainda por cima envolve o uso de uma espécie de soco inglês, só que mais sofisticado e perigoso. Você pode imaginar o impacto de um golpe desses, ainda mais considerando que não era só para “dar show”, mas sim para incapacitar de verdade o adversário, em duelos que beiravam o limite entre esporte e sobrevivência.

A história começa a ganhar corpo quando se mergulha nos textos antigos da Índia, especialmente nos Puranas, esses livros que abordam de tudo: medicina, arquitetura, guerra, até mesmo o amor. No meio desse oceano de manuscritos, um em particular chama atenção: o Mallapurana. Esse texto, conservado em um instituto de pesquisa na Índia, data de 1731, mas provavelmente é ainda mais antigo, servindo como uma verdadeira enciclopédia das práticas e tradições dos lutadores de Vajramushti. Nele, a vida dos Jyesthimalla — uma espécie de clã de elite da luta indiana — é detalhada com minúcia. A palavra “Jyesthi” significa “o melhor”, e não é à toa: eles eram a referência máxima quando o assunto era combate corpo a corpo, servindo de guarda-costas, atletas e até figuras respeitadas em casamentos.

O Mallapurana não só descreve as regras e rituais, mas mergulha fundo no treinamento físico. O corpo do lutador era preparado desde cedo, em uma rotina que envolvia exercícios complexos, força, resistência e, claro, disciplina mental. Uma coisa interessante é como cada etapa do treino tinha um nome próprio: Rangasrama, Sthambhasrama, Gonitaka, Pramada, Kundakavartana e Uhapohasrama. Não se tratava só de se tornar forte — era preciso pensar como um estrategista, entender os movimentos, antecipar o oponente, e, acima de tudo, respeitar o próprio corpo como uma ferramenta de sobrevivência e expressão.

Rangasrama – refere-se à prática efetiva da luta e às técnicas de wrestling. Isso inclui todo tipo de técnicas de agarramento, como quedas, luta no chão (posição inferior), luta por cima, além de técnicas de golpes.

Sthambhasrama – um conjunto de exercícios realizados em um poste vertical chamado Sthamba. Existem vários tipos de Sthamba, mas o mais comum é um poste ereto, com cerca de vinte a vinte e cinco centímetros de diâmetro, fixado firmemente no chão. O lutador executa diversos exercícios complexos de calistenia nesse poste, para desenvolver força e resistência nos braços, pernas e parte superior do corpo.

Gonitaka – trata-se do treinamento com um grande anel de pedra. Esse peso é levantado e balançado de várias formas, chegando até a ser usado ao redor do pescoço, com o objetivo de fortalecer o pescoço, as costas e as pernas.

Pramada – é o conjunto de exercícios realizados com o uso das maças indianas, chamadas Gada. Essas ferramentas ainda são utilizadas hoje em muitas escolas tradicionais de luta da Índia, conhecidas como Akhadas.

Kundakavartana – refere-se a calistenias feitas sem equipamento, como cambalhotas, diferentes tipos de flexões, agachamentos, entre outros, usados para desenvolver a força geral e a resistência física.

Uhapohasrama
– consiste na discussão de táticas e estratégias de luta e é considerado uma parte importante do regime de treinamento dos lutadores.

Mas se você está achando que era coisa para adultos, pode ir mudando a imagem. O treinamento começava por volta dos 10 ou 12 anos, focando em exercícios que desenvolviam força, resistência e flexibilidade. Só depois de uma boa base física é que o jovem era introduzido ao Mallasthamba, o poste dos lutadores. A partir daí, o corpo e a mente eram lapidados, dia após dia, numa preparação quase ritualística. O local do treino, chamado de Akhada, era um espaço sagrado — um círculo ou quadrado de solo fofo, tratado com água, óleo, buttermilk e até ocra para manter a textura ideal. E se por acaso você pensou em algo parecido com tatames modernos, saiba que a tradição já fazia questão de preservar a integridade física dos lutadores, mostrando que o cuidado com a segurança sempre foi prioridade, mesmo em épocas remotas.

Agora, deixa eu compartilhar uma curiosidade que não sai da cabeça: os instrumentos de luta. O Vajramushti tinha um tipo de “soco inglês”, só que mais complexo e letal. Feito para encaixar perfeitamente na mão, era fixado com fios para não se soltar no calor do combate. Existem relatos até de versões com pontas afiadas para uso em guerras, mas nos duelos esportivos valia apenas a versão mais leve, sem pontas. Interessante como, mesmo sem toda a tecnologia atual, o povo indiano já pensava em adaptar armas para uso tanto em competições quanto em situações de vida ou morte. Vale lembrar que o uso do Vajramushti era restrito a golpes acima do peito — um cuidado para não transformar o duelo em tragédia. Mesmo assim, o perigo era real.

E olha, os lutadores precisavam ser versáteis. Não bastava golpear — era necessário saber travar o braço do adversário, aplicar chaves (como a Omoplata do Jiu-Jitsu moderno), usar as pernas e braços para imobilizar e até mesmo derrubar. Detalhe importante: a vitória vinha tanto pelo nocaute quanto pela submissão, especialmente imobilizando o braço armado do oponente. O curioso é perceber como certas técnicas, celebradas hoje nas academias de Jiu-Jitsu e MMA, já existiam há séculos e faziam parte do repertório desses guerreiros.

A preparação para o combate também era cheia de simbolismo. No dia da luta, a cabeça do competidor era raspada, restando só um pequeno tufo de cabelo no topo, onde se amarravam folhas de Neem — consideradas talismãs de boa sorte. O corpo era untado com ocra vermelha, supostamente para manter o frescor. Antes de sair para a arena, o lutador e sua família faziam preces a deuses protetores. No centro do Akhada, construía-se um altar improvisado, com um ramo de Neem plantado, e, ao lado, repousavam as armas. Era quase um ritual de passagem — um momento que marcava não só o início de uma luta, mas de uma afirmação identitária, de honra e pertencimento.

Da arena familiar para o público, a entrada era sempre marcada por saltos e movimentos zig-zagueantes — talvez para mostrar agilidade, talvez para impressionar o público. O objetivo era claro: forçar o adversário à submissão, usando todos os recursos possíveis, exceto golpes baixos. Cada lutador recebia uma premiação ao final, sendo que o vencedor ganhava o dobro do valor do derrotado. Caso terminasse empatado, o prêmio era dividido. Essa lógica simples e direta me faz pensar em como a competitividade e o respeito pelo adversário eram peças centrais desse universo.

E se você está imaginando que tudo isso acabou faz tempo, vale ressaltar: o clã Jyesthimalla continuou praticando e ensinando o Vajramushti por séculos, atravessando períodos de patrocínio de reis e príncipes, trabalhando como guarda-costas, protegendo caravanas e festas de casamento. Eles eram Brahmins — membros da casta sacerdotal — mas ao mesmo tempo viviam “pelas armas”. Existe até uma expressão popular em Gujarat: “os Jyesthimallas estão lutando”, usada para descrever qualquer duelo sério, tamanha era a fama desses guerreiros. É curioso como, numa sociedade marcada por castas, havia espaço para figuras híbridas, que transitavam entre religião e combate, entre devoção e força física.

O declínio desse estilo, infelizmente, acompanha uma tendência vista em várias tradições de combate. Com a chegada dos tempos modernos, do esporte regulamentado, da urbanização e da influência estrangeira, o Vajramushti ficou restrito a poucos praticantes, principalmente em Gujarat e alguns outros estados. Já nos anos 1980, havia pouquíssimos mestres sobreviventes. Esse é um padrão que se repete em diversas culturas: o que leva séculos para ser lapidado pode se perder em uma geração, se não houver renovação, registro e transmissão.

É interessante pensar como hoje vivemos cercados de academias, revistas, sites, canais de vídeo sobre lutas, e, mesmo assim, a essência de muitas artes tradicionais se esvai silenciosamente. O que temos de MMA, Jiu-Jitsu, Muay Thai, tudo isso parece recente diante de uma linhagem de guerreiros que, há séculos, já misturavam técnicas de solo, trocação, chaves e estratégias dignas de um UFC. Às vezes me pergunto se a gente realmente inventou algo novo, ou se estamos apenas reciclado — com outros nomes e estilos — o que já era conhecido e praticado em outros tempos.

É fácil romantizar o passado, mas também é fundamental reconhecer o que foi perdido. No caso do Vajramushti, não é só uma arte marcial — é um retrato de uma cultura, de uma forma de vida que integrava disciplina física, ritual, comunidade, religião e, acima de tudo, respeito por uma tradição que ultrapassava o indivíduo. Cada detalhe, do solo do Akhada ao altar no centro da arena, carregava significado. Cada luta era mais do que um espetáculo — era uma afirmação de identidade, uma maneira de perpetuar valores, costumes e até crenças espirituais.

Voltando ao ponto, é curioso refletir sobre o que faz uma arte resistir ao tempo. Talvez seja o interesse contínuo, talvez a transmissão oral de mestre para discípulo, ou até um misto de paixão e necessidade. O que se pode dizer é que, mesmo com o avanço da tecnologia e do conhecimento, existe um fio invisível que liga os praticantes do passado aos entusiastas do presente — basta ter curiosidade e disposição para ir além das modas passageiras.

Outro aspecto que chama atenção é como as práticas corporais eram integradas à vida em comunidade. O Akhada não era só um espaço de treino — era um núcleo social, onde amizades, rivalidades e tradições eram formadas. Era ali que o jovem aprendia não apenas a lutar, mas a respeitar hierarquias, a reconhecer o valor da disciplina, a entender que perder faz parte do processo e que a verdadeira vitória não é apenas derrotar o outro, mas evoluir como pessoa.

Agora, se você chegou até aqui, talvez tenha percebido como o Vajramushti vai muito além do simples embate físico. É uma espécie de metáfora da vida: preparo, disciplina, respeito ao passado, coragem diante dos desafios e uma dose de imprevisibilidade, porque nem sempre o mais forte vence. Às vezes, é quem se adapta melhor, quem compreende as nuances do momento, quem se prepara para o imprevisto.

Finalizando, você pode se perguntar: vale mesmo preservar essas histórias, essas artes quase esquecidas? Na minha opinião, sim. Porque cada tradição carrega uma sabedoria própria, uma forma de ver o mundo que complementa nossa experiência moderna. E, se olharmos com atenção, talvez encontremos respostas para questões atuais no que foi vivido e experimentado séculos atrás, debaixo do sol escaldante de Gujarat, entre rituais, suor e coragem de quem apostava tudo numa luta de Vajramushti.
 

Os mistérios das moléculas e como ela moldou a vida na Terra

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No universo da química, existe um conceito chamado ‘quiralidade’. Basicamente, isso significa que certas moléculas podem existir em duas versões diferentes, uma sendo a imagem espelhada da outra, como as mãos direita e esquerda. A princípio, pode parecer só uma curiosidade de laboratório, algo que só interessa para quem mexe com tubos de ensaio ou algo do tipo. Só que esse detalhe ganha um peso enorme quando se percebe que, apesar das reações químicas produzirem normalmente metade de cada versão: os aminoácidos e açúcares que aparecem na natureza em uma forma só. Os aminoácidos naturais são todos do tipo ‘canhoto’, enquanto os açúcares, que formam o DNA e o RNA, só existem na forma ‘destra’. Esse padrão, conhecido como homoquiralidade, é tão essencial que sem ele a vida, do jeito que conhecemos, nem existiria.

Esse fenômeno já deixou muitos pensativos desde os primeiros passos da biologia molecular. Por que a natureza escolheu apenas um dos lados dessa moeda? A ciência, até hoje, não chegou a um consenso absoluto sobre o motivo. O curioso é que, se alguém tentar criar essas moléculas do zero no laboratório, elas sempre surgem em proporções iguais, misturando as duas versões, como se não houvesse preferência.

Uma das apostas dos cientistas é de que, em algum momento da chamada ‘sopa primordial’, surgiu um desequilíbrio. Talvez uma pequena vantagem aleatória, um empurrãozinho dado por algum fator externo, radiação polarizada do Sol, minerais com superfícies assimétricas, ou até mesmo moléculas trazidas por meteoritos, ou talvez, sei lá. O fato é que, de alguma forma, um dos lados começou a dominar.

Experimentos históricos já deram pistas sobre isso. Em 1953, Stanley Miller e Harold Urey(1) simularam as condições da Terra primitiva em laboratório e conseguiram formar aminoácidos, só que sempre em proporções iguais entre destros e canhotos. Depois, muitos pesquisadores tentaram descobrir o que poderia quebrar esse empate.

Mais recentemente, o trabalho dos pesquisadores S. Furkan Ozturk e Dimitar Sasselov, de Harvard – no qual você pode ver no vídeo – chamou atenção justamente por tentar resolver essa charada. Eles testaram reações químicas sob condições semelhantes às dos mares primordiais, explorando como fatores ambientais poderiam favorecer um lado na formação das moléculas da vida. Suas descobertas, detalhadas em artigo na Science Advances em 2023(2), sugerem que ciclos de temperatura, variações de pH e até a presença de certos minerais poderiam agir em conjunto para estimular o surgimento da homoquiralidade. O impacto desse tipo de estudo é tão grande que mexe não só com a química, mas também com a forma como se imagina a origem e a evolução da vida em outros planetas.

 


Referências:


1 - A Production of Amino Acids Under Possible Primitive Earth Conditions - Em 1953, Stanley Miller mostrou que era possível formar aminoácidos a partir de gases simples e descargas elétricas simulando a atmosfera da Terra primitiva. O experimento demonstrou que compostos essenciais para a vida podem surgir em condições naturais, reforçando a teoria da “sopa primordial” como caminho para o surgimento da vida, mas sempre gerando uma mistura igual de moléculas destros e canhotos. https://www.science.org/doi/10.1126/science.117.3046.528


2 - Origin of biological homochirality by crystallization of an RNA precursor on a magnetic surface - Publicado em 2023, esse estudo revela que superfícies magnéticas podem favorecer a formação de cristais homoquirais de precursores de RNA. Ao simular condições semelhantes às da Terra primitiva, os autores mostram que é possível obter um excesso de moléculas de um único tipo quiral, sugerindo um caminho natural para a origem da homoquiralidade essencial à vida. https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adg8274



A beleza das borboletas

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Trabalhando com o laboratório Patel do Marine Biological Laboratory da Universidade de Chicago, a artista e cineasta norte-americana Kristina Dutton criou uma série de filmes que destacam a extraordinária beleza e diversidade das asas de borboletas e mariposas, conhecidas cientificamente como Lepidoptera. Utilizando uma coleção impressionante de cerca de 50 mil espécimes, Dutton explora artisticamente os detalhes surpreendentes dessas asas, revelando aspectos visuais que normalmente escapam aos olhos humanos. Vale a pena ver ele.

Esse trabalho não é apenas uma expressão artística, mas também reflete uma importante conexão com estudos científicos recentes. Pesquisas têm demonstrado como as estruturas microscópicas das asas das borboletas desempenham funções muito além da estética. Por exemplo, as nanostruturas presentes nas asas são capazes de manipular a luz de maneiras específicas, produzindo cores vibrantes por interferência de luz, um fenômeno conhecido como coloração estrutural. Um artigo publicado na revista Science Advances por Wilts e colaboradores em 2017(1), detalha como essas nanostruturas podem gerar fenômenos ópticos como a iridescência nas asas das borboletas.

Outro estudo notável, divulgado na revista Nature Communications em 2020 por pesquisadores da Universidade Duke (Davis e colaboradores)(2), revela como algumas estruturas nanométricas ultra-negras são usadas pelas borboletas para absorver quase completamente a luz incidente, contribuindo para camuflagem e proteção contra predadores.

Essas descobertas científicas destacam a complexidade funcional dessas pequenas estruturas que, apesar do tamanho reduzido, desempenham papéis vitais na sobrevivência e evolução desses insetos.

Ao trazer esses detalhes científicos através de uma perspectiva artística, Dutton proporciona uma visão integrada sobre o universo das Lepidoptera. Ela combina beleza visual com ciência criando uma narrativa envolvente que expande o entendimento e a apreciação das maravilhas da natureza que frequentemente permanecem ocultas aos nossos olhos.



Referências:

1 - Butterfly gyroid nanostructures as a time-frozen glimpse of intracellular membrane development. Autores: Bodo D. Wilts, Benjamin Apeleo Zubiri, Michael A. Klatt, Benjamin Butz, Michael G. Fischer, Stephen T. Kelly, Erdmann Spiecker, Ullrich Steiner, Gerd E. Schröder-Turk. Este estudo revelou a presença de estruturas nanoscópicas chamadas giroides nas escamas das asas da borboleta Thecla opisena. Essas estruturas tridimensionais altamente organizadas são responsáveis por cores estruturais específicas e oferecem uma visão congelada do desenvolvimento de membranas intracelulares. https://www.science.org/doi/full/10.1126/sciadv.1603119

2 - Diverse nanostructures underlie thin ultra-black scales in butterflies, Autores: Alexander L. Davis, H. Frederik Nijhout, Sönke Johnsen. Este estudo examinou uma variedade de espécies de borboletas para entender como elas produzem colorações ultra-negras. Utilizando microscopia eletrônica de varredura e modelagem óptica, os pesquisadores descobriram que diferentes nanostruturas, como trabéculas expandidas e cristas, reduzem significativamente a refletância da luz, resultando em uma aparência extremamente negra. https://www.nature.com/articles/s41467-020-15033-1




Como evoluiu a cognição humana

Exercício físico e cérebro
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Quando mergulho no passado distanciado de milhões de anos e reflito sobre o que de fato nos faz humanos, percebo que não foi apenas a evolução do corpo, mas uma espécie de processo contínuo de desenvolvimento do corpo e cérebro relacionado a cognição. Em cada lasca de pedra lascada por mãos ancestrais, em cada artesanato rudimentar, vejo não somente ferramentas, mas pistas de como nosso jeito de pensar foi se desdobrando, ganhando camadas, abrindo caminhos que nos levariam a imaginar coisas que jamais existiram.

Logo no início dessa jornada, nosso cérebro era moldada pelos desafios de simplesmente manipular objetos. Antes de sermos quais somos hoje, primatas já usavam as mãos para abrir nozes, sustentar gravetos e brincar com pedrinhas. Foi a partir desse manuseio rotineiro que surgiram os primeiros lampejos de “técnica”: não bastava apenas golpear, era preciso escolher onde golpear, calcular ângulos e até prever qual lasca poderia surgir. Com o tempo, essas decisões simples se tornaram sistemáticas, dando origem a lâminas, pontas e raspadores. Cada nova lasca foi um pequeno ensaio do que viria a se tornar planejamento e organização hierárquica de tarefas.

Percebo que não houve um grande salto de inteligência num piscar de olhos, mas sim um acúmulo gradual de competências técnicas que se apoiavam umas nas outras. Aquela rede primitiva de neurônios voltada ao manuseio de objetos ganhou força e se especializou, adaptando-se para fazer as pontas mais afiadas, as bordas mais uniformes. Ao longo de um milhão e meio de anos, as tantas gerações de hominídeos, cada uma carregando em seu DNA e em seu corpo a herança de práticas de seus antecessores, impulsionaram o refinamento dessas habilidades. Não foi um “clique”, foi um processo passo a passo, camada sobre camada de tentativas, erros e acertos.

Essa evolução técnica, por sua vez, se entrelaçou de modo profundo com a nossa capacidade de perceber o espaço de forma cada vez mais complexa. No começo, bastava diferenciar dentro e fora, cima e baixo, proximidade e afastamento, sistemas que muitos animais também dominam. Mas nós fomos além e começamos a visualizar o mundo como um grande tabuleiro em três dimensões, capaz de ser reinterpretado sob ângulos diversos. Foi nesse ponto que nasceu o que hoje chamamos de percepção alocêntrica, aquela que nos permite criar mapas mentais de territórios, planejar rotas alternativas e até imaginar lugares que nunca vimos.

Lembro-me de pensar em como nossa vida cotidiana depende desse tipo de raciocínio, quando pego uma bússola ou uso o GPS, não estou fazendo nada mais do que aproveitar habilidades que nasceram quando alguém, há centenas de milhares de anos, percebeu que podia lascar uma pedra para se defender e, em seguida, olhar ao redor e dizer “por ali deve haver água”. Aos poucos, essas competências espaciais ampliaram nosso alcance, permitindo migrações pelo planeta, descobertas de novos habitats e, por fim, trilhas invisíveis que se tornaram estradas e ferrovias.

Mas cognitivamente ainda havia um campo enorme a explorar: aquele que envolve como entendemos o outro. Ao observar nossos iguais, chimpanzés e bonobos já mostram um entendimento rudimentar de intenções alheias, mas o que desenvolvemos foi algo mais profundo. Começamos a antecipar desejos, entender crenças, até falsas crenças e nos comunicar não apenas por gestos, mas por símbolos.

Quando reflito sobre isso, sinto um arrepio ao imaginar que, muito antes de haver escrita, já existia em nossas cabeças uma hierarquia de intenções, eu sei o que tu sabes, eu sei que tu sabes que eu sei, e por aí vai. Essa “teoria da mente” foi crescendo em camadas, primeiro, sabíamos que os outros tinham objetivos, logo em seguida, aprendemos a ensinar; mais adiante, fomos capazes de usar sinais que representavam ideias distantes no tempo e no espaço.

A engrenagem social, a necessidade de manipular alianças, trocar favores e transmitir saberes, pressionou nossa seleção natural para ampliar essas competências. Quando nossos antepassados se reuniam em bandos, não bastava acertar um machado de pedra, era preciso coordenar a caçada, repartir o alimento e ensinar o passo a passo da fabricação da ferramenta para o aprendiz. Esse ciclo de ensinar-aprender-tecer relações impulsionou uma ampliação constante de como entendíamos a mente do outro.

Aquele momento em que alguém, já dominando a fabricação de pontas de flecha, percebeu que era melhor deixar várias armadilhas armadas em série, vigiá-las de longe, voltar periodicamente para checar e, ao mesmo tempo, organizar a partilha da caça. Isso exigia segurar na mente todo esse processo, ignorar distrações do ambiente, manter registro do que já havia sido feito e antecipar o que seguiria. E não se tratava de um talento de poucas pessoas: evidentemente, cânceres como a construção de grandes armadilhas, a confecção de redes ou mesmo a adoção dos primeiros sinais gravados em ossos, mostraram que estávamos criando extensões culturais para nossa memória.

Esses registros externos eram uma revolução na vida dos primeiros seres. Ao riscar três sulcos num bastão de osso, alguém libertava a própria memória de ter que contar cada item internamente. Uma sequência que seria difícil de reter em pensamento passou a existir ali, gravada. Foi o embrião de sistemas de numeração, calendários e, por fim, da matemática.

Ao juntar tudo isso, técnica apurada, percepção espacial refinada, teoria da mente complexa e funções executivas robustas, amplificadas por suportes culturais, construímos o que chamamos de “cognição humana”. E então, sem grandes saltos repentinos, sem pontos de ruptura espantosos, cruzamos fronteiras que jamais teriam sido possíveis apenas com instintos. Esse processo todo foi muito mais do que o crescimento de voluma cerebral. Foi, sobretudo, uma coevolução: nossos cérebros se moldaram pelas ferramentas que fabricamos, pelos grupos que formamos, pelos símbolos que inventamos. Ferramentas e cultura não foram meros instrumentos, mas verdadeiros parceiros nessa história. É um lembrete de que pensar não é apenas um ato interno, mas uma experiência que ganha forma fora de nós, nas pedras, nas marcas, nos traços, numa linha que, há 3,3 milhões de anos, começou com a primeira lasca não intencional e que hoje se desdobra em infinitas possibilidades.


Referências:

 

Primate cognition – Este livro apresenta uma análise aprofundada das capacidades cognitivas de primatas não humanos, explorando seus processos de percepção, memória e resolução de problemas por meio de experimentos controlados que revelam semelhanças e diferenças com a cognição humana. https://global.oup.com/academic/product/primate-cognition-9780195106244?cc=br&lang=en&

Tool use in animals: cognition and ecology – Coletânea de estudos que investiga o uso de ferramentas em diversas espécies animais, examinando como fatores ambientais e ecológicos influenciam a capacidade de manipular objetos e solucionar desafios por meio de inovações comportamentais. https://www.cambridge.org/core/books/tool-use-in-animals/92A8F1B3D5631E6D59985126BDA96EED

“An ape’s view of the Oldowan” revisited – Artigo que reexamina a fabricação de ferramentas líticas pelos primeiros hominídeos, comparando sua técnica com a de grandes símios modernos para compreender o grau de intencionalidade, habilidades motoras e planejamento envolvidos. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/evan.20323

A comparative study of the stone tool-making skills of Pan, Australopithecus, and Homo sapiens – Capítulo que compara a destreza na produção de lascas de pedra entre chimpanzés, australopitecos e humanos modernos, demonstrando como o refinamento das estratégias de lascamento evoluiu ao longo de milhões de anos. https://www.researchgate.net/publication/324043374_A_comparative_study_of_the_Stone_Tool-Making_Skills_of_Pan_Australopithecus_and_Homo_sapiens

Reduction sequences in the manufacture of Mousterian implements in France – Estudo etnográfico sobre as etapas de redução de blocos de silex na indústria musteriense, detalhando o fluxo de trabalho, os padrões repetitivos de percussão e as decisões técnicas tomadas para obter lâminas e raspadores eficientes. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4613-1817-0_3

Geometric morphometrics and paleoneurology: brain shape evolution in the genus Homo – Pesquisa que utiliza técnicas de morfometria geométrica para analisar alterações no formato craniano de diferentes espécies do gênero Homo, relacionando essas mudanças anatômicas com o desenvolvimento de regiões cerebrais ligadas ao raciocínio espacial. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248404001149

The hunter-gatherer theory of sex differences in spatial abilities: data from 40 countries – Trabalho que compila dados de quarenta nações para testar a hipótese de que diferenças de gênero em habilidades espaciais refletem adaptações de caçadores e coletoras, avaliando desempenho em tarefas de rotação mental. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17351740/

Humans have evolved specialized skills of social cognition: the cultural intelligence hypothesis – Artigo que propõe que os seres humanos desenvolveram competências sociais únicas, derivadas da pressão seletiva por cooperação e transmissão cultural, permitindo compreensão avançada de intenções, ensino e aprendizagem coletiva. https://www.science.org/doi/10.1126/science.1146282

How to learn about teaching: an evolutionary framework for the study of teaching behavior in humans and other animals – Este texto define um modelo evolutivo para investigar o comportamento de ensino em humanos e animais, discutindo critérios que distinguem ensino intencional de simples facilitação e seu impacto na transmissão de conhecimento. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24856634/

Working memory – Capítulo seminal que apresenta o conceito de memória de trabalho como sistema de armazenamento temporário e de controle atencional, explicando suas componentes centrais, mecanismos de manutenção de informações e implicações para tarefas complexas de raciocínio. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0079742108604521

What does the retrosplenial cortex do? – Revisão que sintetiza evidências sobre o papel do córtex retrosplenial na memória espacial e na navegação, descrevendo como essa região integra informações sensoriais e contextuais para apoiar o mapeamento de ambientes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19812579/

Cognitive aspects of Upper Paleolithic engraving – Estudo que analisa as marcas gravadas em ossos e pedras do Paleolítico Superior, interpretando essas notações como extensões externas da memória e sistemas iniciais de registro numérico e calendárico. https://www.jstor.org/stable/2740829


Exercícios físicos e aspectos cerebrais, uma jornada para entender

Exercício físico e cérebro
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Eu me recordo da primeira vez em que percebi como o corpo e a mente dialogam de forma surpreendente. Ao incluir caminhadas regulares pela manhã, notei um vigor inesperado ao enfrentar tarefas complexas durante o dia. As leituras, o trabalho que eu tenho, tudo isso melhorou quando eu comecei a fazer uma caminhada. A respiração ritmada enquanto meus pés tocavam o chão parecia abrir espaço para ideias mais claras, como se cada passo também ativasse caminhos internos do meu cérebro. Essa sensação me convidou a investigar o que estava acontecendo com o meu corpo. Um simples ato de movimentar otimizar processos cerebrais ligados a memória e ao aprendizado.

Logo ficou evidente que o exercício não se resume a queimar calorias. Existe uma confluência de fenômenos biológicos que remodelam estruturas cerebrais também, principalmente em regiões essenciais para orientações espaciais. Quando corro, sinto que meu cérebro, ou regiões do tipo hipocampo, um laboratório íntimo onde nascem e se consolidam recordações de rotas e mapas mentais, recebe estímulos capazes de tornar essas lembranças mais precisas. É curioso como, depois de um período de prática regular, encontro menor dificuldade em memorizar trajetos novos. Mas será que isso é real? Ou pode ser algo relacionado a placebo? Um estudo bem interessante(1) que encontrei sobre como correr melhora a neurogênese, o aprendizado de longo prazo em ratos e isso me fez questionar como isso se reflete em nós humanos.

Observando pessoas de diferentes idades, vi adultos mais velhos relatarem facilidade ao lembrar da localização de objetos em casa. Muitos confessaram que, mesmo sem muita disciplina em academias, ao caminhar diariamente começaram a perceber melhorias nesse tipo de memória. E isso realmente faz sentindo, existe bastante estudo que relaciona a melhora cognitiva em idosos, tanto exercícios aeróbicos(2), como exercícios de resistência(3). Percebi ainda que, quando incluí rotinas de resistência muscular, como exercícios com pesos leves, surgiu outra dimensão de benefícios. A combinação entre atividades aeróbicas e de força parece trabalhar vias distintas, mas complementares, do cérebro, dando mais consistência às minhas impressões de espaço e orientação.

Durante uma sessão de treino com pesos, senti meus músculos responderem imediatamente, mas notei também um efeito mais sutil que se manifestou dias depois. Quando retornei ao estudo de matemática que gosto de passar meu tempo, meu cérebro criou uma facilidade impressionante de fazer cálculos. Foi como se aquela sessão de força tivesse ativado a produção de substâncias que promovem o crescimento de neurônios. E continuo tentando refletir, será que é impressão minha? Eu observei em um estudo bem interessante sobre o fator de crescimento semelhante à insulina 1 ou também chamado de IGF-1, ele aumenta o número de novos neurônios no hipocampo, por exercício(4)

Pesquisando mais um pouco, descobri que certas moléculas durante o esforço físico funcionam como mensageiras. Elas estimulam a formação de novas conexões sinápticas e até o nascimento de células nervosas em áreas específicas.(5) Quando entendo o funcionamento desses mensageiros, queda por queda de suor ganha um novo sentido. Cada gota se converte em um impulso para fortalecer a rede neuronal responsável por aprender e memorizar. E isso é maravilhoso. Cada novo treino você está se protegendo de mal de Alzheimer.

Em treinos de corrida, algo me chamou a atenção, ao reduzir a velocidade nas últimas voltas, meu ritmo cardíaco mantinha-se elevado, mas meu cérebro parecia mais alerta. Passei a usar esse momento para revisar mentalmente conceitos que havia aprendido no dia anterior. A sensação era de que aquele estado pós-treino criava uma janela ideal para consolidar informações. Percebi que não era apenas um sentimento subjetivo, talvez minha dopamina, noradrenalina, e serotonina estivesse aumentando, em alguns estudos(6) existem novos insights para como ele pode estimular processos cerebrais.

Conversei com outras pessoas que faziam corridas ou praticavam alguns exercícios que tinham horários variados. Muitos preferiam correr de manhã cedo, antes de qualquer atividade mental intensa. Outros reservavam finais de tarde para combinar estudo e exercício. Alguns deles comentaram comigo terem notado ganhos em memorização, de números ou no melhor aprendizado de idiomas. Mas eles não deram muita importância a isso. Poderia ter sido um conjunto de outros fatores, não é? Mas isso é muito interessante de refletir também, e pensar sobre. Pode ser que exista uma conexão entre corpo, movimento e consolidação de dados no cérebro.

A disciplina de manter rotina de treinos revelou-se tão vantajosa para minhas recordações de cada coisa que passou em minha vida quanto para tarefas diárias. Lembro-me de viagens que fiz antigamente, como de tarefas de semanas atrás. É algo bastante interessante de pode analisar, as ruas e as casas ficaram um pouco mais nítida para mim. Foi estranho descobrir que, mesmo diante de cantos complexos, meu cérebro elaborava mapas internos que me guiavam com segurança.

Dentro de mim cresceu a convicção de que cada modalidade de exercício traz um efeito singular. Mas é claro, tem alguns estudos interessante que pode até sugerir algumas coisas. A corrida oferece estímulos aeróbicos que favorecem a irrigação sanguínea cerebral, fortalecendo vasos e ampliando o aporte de oxigênio.(6) A musculação, por sua vez, ativa circuitos de liberação de fatores de crescimento capazes de promover adaptações neurais.(7) Ao mesclar ambos, senti-me beneficiado em vários níveis, como se meu cérebro se alimentasse de sangue renovado e de sinais bioquímicos potentes.

Ao compartilhar essas impressões com amigos, vi alguns se surpreenderem ao perceber que não existia contraste entre praticar atividade física e desenvolver habilidades cognitivas. Eles pensavam que o exercício tornaria o corpo saudável, mas não imaginavam as repercussões no cérebro. Talvez até imaginavam, mas não focavam nisso, porque o corpo saudável, o cérebro também fica saudável.

Em um projeto pessoal, decidi documentar minhas rotinas de treino e, ao final de cada semana, fazia um breve relato das melhores recordações daquele período. Descobri que, nas semanas em que mantinha consistência de treinos, as lembranças de detalhes do cotidiano apareciam com mais nitidez. Era curioso notar que até pequenos fatos, como paisagens observadas em percursos urbanos, ficavam presos na minha mente com traços mais nítidos.

Enquanto desenvolvia esses hábitos, percebi que o bem-estar emocional também evoluía. Mas isso é um pouco nítido, todos nós sabemos que exercícios físicos podem nos proporcionar uma sensação de bem-estar. Com uma sensação meio que de preocupação, a melhor coisa era fazer um trajeto pelas ruas que já sentia uma ativação de circuitos interiores que filtrava as tensões. E é claro que no retorno, eu sentia calma e tinha clareza sobre problemas antes nebulosos. A relação entre movimento e bem-estar cognitivo se expressava não apenas em memórias espaciais, mas em estados equilibrados.

Com o passar dos meses, entendi que a prática deveria ser constante para manter ganhos. Quando eu ficava semanas sem me exercitar, notava perda de precisão em lembranças espaciais. O cérebro parecia exigir estímulos regulares para sustentar as estruturas neurais criadas. Voltar aos treinos devolvia o vigor mental e reacendia o prazer de percorrer novas rotas cognitivas. E isso era o mais interessante.

Descobri que, mesmo em dias de menor disposição, um breve período de bicicleta ergométrica por quinze minutos ou menos pode reativar circuitos que promovem memória e clareza. Esse conhecimento transformou minha rotina, pois passei a usar sessões rápidas de exercício como forma de retomar o ritmo mental. A noção de que pequenos gestos trazem retornos significativos reforçou meu compromisso com o cuidado corporal.

Hoje sei que o exercício físico funciona como um tipo de catalisador de neuroplasticidade, sem depender de recurso externo além do próprio corpo em movimento. Cada gota de suor contribui para a remodelagem de circuitos que sustentam o aprendizado, a memória e o equilíbrio emocional. E isso se torna fascinante. É claro que muitos vão focar mais em bem-estar todo dos exercícios, mas nesta postagem eu queria relacionar mais as minhas experiências com os aspectos cerebrais. Se você procurar mais artigos vai encontrar ainda mais pesquisas relacionadas. E mesmo que se você só focar em bem-estar dos exercícios, vai ganhar de bônus um melhor benefício cognitivo.


Referências:

1 - Exercise enhances learning and hippocampal neurogenesis in aged mice  - Estudo demonstra que exercícios aumenta a neurogênese do hipocampo contribuindo para a melhora do aprendizado. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16177036/

2 - Spatial memory is improved by aerobic and resistance exercise through divergent molecular mechanisms - Este estudo demonstra que exercícios aeróbicos e de resistência melhoram a memória espacial por meio de diferentes mecanismos moleculares. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22155655/

3 - The impact of resistance exercise on the cognitive function of the elderly - Esta pesquisa avalia como o treinamento de resistência afeta a função cognitiva em idosos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17762374/

4 - Circulating insulin-like growth factor I mediates exercise-induced increases in the number of new neurons in the adult hippocampus - Este estudo investiga como o IGF-I circulante medeia o aumento de novos neurônios no hipocampo adulto induzido pelo exercício. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11222653/

5 - Hippocampal BDNF mediates the efficacy of exercise on synaptic plasticity and cognition - Este artigo explora como o BDNF no hipocampo influencia a eficácia do exercício na plasticidade sináptica e cognição. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/15548201/

6 - Prolonged exercise induces angiogenesis and increases cerebral blood volume in primary motor cortex of the rat - Este estudo mostra que exercícios prolongados induzem angiogênese e aumentam o volume sanguíneo cerebral no córtex motor primário de ratos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12654355/

7 - Effects of resistance training on insulin-like growth factor-I and IGF binding proteins - Esta pesquisa analisa os efeitos do treinamento de resistência nos níveis de IGF-I e suas proteínas ligantes. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11283443/


Como o ritmo circadiano foi desenvolvido a bilhões de anos atrás

Rítmo Circadiano
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Já houve dias em que eu acordava sem motivo algum ás 5 da manhã, mesmo tendo ido dormir tardiamente. Não era ansiedade, tampouco insônia. Era como se algo muito antigo em mim dissesse que aquele era o momento certo de abrir os olhos. E durante anos, eu ignorei essa possibilidade de que talvez não fosse apenas o costume ou a rotina que me puxava do sono. Foi após ler sobre relógios biológicos que algo começou a fazer sentido para mim. Mas o que me deixou realmente intrigado foi descobrir que talvez esse "relógio" não seja apenas um ajuste moderno de seres complexos, mas um mecanismo muito mais antigo. Tão antigo quanto a própria vida que respira oxigênio.

É fascinante imaginar que, mesmo antes dos animais com cérebros, antes dos organismos multicelulares, já existiam ritmos que orientavam a vida. O artigo que li(1) recentemente trouxe um panorama que fez tudo isso parecer ainda mais profundo. Ele aponta que o relógio circadiano pode ter começado a bater há cerca de 2,5 bilhões de anos, no exato momento em que a Terra passou por uma de suas maiores transformações: a chamada Grande Oxidação.

Essa expressão, “Grande Oxidação”(2), soa quase como um evento épico da história natural. E de fato foi. Foi quando os primeiros organismos fotossintetizantes começaram a produzir oxigênio em quantidades tão grandes que modificaram completamente a composição da atmosfera terrestre. Isso não só mudou o planeta, aniquilando uma imensidão de formas de vida que não toleravam oxigênio, como também criou uma pressão evolutiva que exigia adaptação aos novos desafios bioquímicos. Afinal, o oxigênio, apesar de vital, também gera resíduos perigosos, como as espécies reativas de oxigênio, aquelas moléculas que podem literalmente enferrujar o que encontram dentro das células.

E foi nesse contexto que algo extraordinário pode ter surgido: uma forma de ritmo interno, baseado na capacidade de lidar com esses resíduos tóxicos. Não era um relógio feito de genes que se ligavam e desligavam em sequência, como nos modelos tradicionais, era algo ainda mais primitivo: uma oscilação no estado de oxidação de proteínas chamadas peroxirredoxinas(3), que neutralizam substâncias como o peróxido de hidrogênio.

Essas oscilações acontecem até mesmo em células que não possuem núcleo. Células que não têm DNA ativo, como as hemácias humanas. Mesmo sem um centro de comando genético, elas conseguem manter esse ritmo. Isso desmonta a ideia de que o relógio biológico só existe em organismos mais complexos, ou que depende exclusivamente da maquinaria genética. Há um pulso bioquímico mais profundo, que sobrevive em praticamente todos os seres vivos, do mais simples ao mais complexo.

Sempre se imaginou que os relógios circadianos fossem construções genéticas elaboradas, como as que existem nos animais, nas plantas e em certos fungos. Mas o fato de que organismos tão distintos quanto arqueias, cianobactérias, plantas e humanos compartilham esse tipo de oscilação em suas peroxirredoxinas sugere que talvez o relógio mais antigo não tenha sido genético, mas sim químico. Um marcador de tempo construído não com letras de DNA, mas com elétrons e estados de oxidação.

Quando li que essas oscilações persistem mesmo em mutantes genéticos em que o relógio convencional está desligado, fiquei ainda mais curioso. Existe algo muito mais profundo do que imaginávamos. Mesmo quando o relógio genético silencia, o ciclo da peroxirredoxina continua a rodar. Eles parecem ser sistemas paralelos, e ainda que possam influenciar mutualmente, nenhum depende totalmente do outro para existir. Há uma espécie de redundância, um plano B evolutivo para garantir que o organismo mantenha algum senso de tempo interno.

O mais interessante disso tudo é pensar que talvez nós, como organismos, não sejamos apenas seres vivos que se adaptaram ao ambiente, mas que carregamos dentro de nós traços bioquímicos de eventos que moldaram o próprio planeta. Que ao respirar, ao metabolizar, ao existir, cada célula em nós ainda dançamos ao ritmo de um ciclo ancestral, esculpido pelo movimento do sol e pelas reações químicas que vieram com o oxigênio.

O relógio baseado em peroxirredoxinas funciona como um lembrete de que o tempo biológico não nasceu com os mamíferos, nem com os humanos. Ele pode ser tão antigo quanto a própria vida aeróbica. E quando se olha para os detalhes bioquímicos dessa proteína, nota-se que seu papel é exatamente o de “limpeza”, o de manter as células protegidas contra os danos provocados por oxigênio reativo. Sua função não é medir o tempo por si só, mas garantir que a célula esteja preparada para os ciclos de estresse oxidativo que, curiosamente, seguem o ritmo do dia e da noite.(4)

Quando o oxigênio começou a se acumular na atmosfera, a luz do sol passou a interferir ainda mais nos processos celulares. A fotossíntese, não apenas produzia energia, mas também criava resíduos perigosos. Ter um sistema que pudesse prever esses momentos e preparar o organismo para lidar com eles se tornou uma vantagem evolutiva enorme. Não é coincidência que muitos dos genes ligados ao metabolismo e à resposta imune nos animais estejam sob controle do relógio circadiano.

Fico pensando nos ciclos que ocorrem em silêncio dentro das minhas células, enquanto estou concentrado num texto, ou descansando depois do almoço. Existe um ritmo de oxidação, uma troca sutil de estados químicos, que se repete em cada célula do meu corpo, coordenado por um relógio que não depende de palavras, de consciência ou de genética tradicional. Esse ciclo ajuda o corpo a saber quando é hora de dormir, de acordar, de comer, de produzir hormônios, de regular a temperatura ou até de reagir a infecções. Ele é um maestro invisível que organiza a rotina de cada célula.

Muitas vezes, o debate sobre saúde ignora esse nível profundo de organização. Dormir mal, comer fora de hora, viver contra os ciclos naturais do dia e da noite não são apenas hábitos ruins. São rupturas com sistemas que vêm funcionando há bilhões de anos. Talvez seja por isso que doenças metabólicas, inflamatórias e até certas disfunções cognitivas estejam tão ligadas à disrupção dos ritmos circadianos.

E mesmo sabendo disso tudo, ainda é difícil adaptar a vida moderna a esse conhecimento. As telas à noite, os turnos de trabalho, os ritmos impostos pela produtividade nos afastam dos sinais naturais. E cada afastamento custa. Custa energia, custa saúde, custa coerência interna. O corpo sabe quando estamos fora de sintonia. Ele tenta corrigir, mas nem sempre consegue.


Referências:

 

1 - Circadian Biology: A 2.5 Billion Year Old Clock - Circadian Biology: A 2.5 Billion Year Old Clock - Um estudo recente sugere que os relógios circadianos podem ter evoluído na época do Grande Evento de Oxidação, há 2,5 bilhões de anos, para estimular a desintoxicação de espécies reativas de oxigênio. https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(12)00668-9

2 - O Grande Evento de Oxigenação (GEO), também chamado de Catástrofe do Oxigênio, Crise de Oxigênio ou Grande Oxidação, foi um período em que a atmosfera da Terra e o então raso oceano experimentaram um aumento do teor de oxigênio, aproximadamente entre 2,4 bilhões de anos e 2,1-2,0 bilhões de anos, durante o período Paleoproterozoico. https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Evento_de_Oxigena%C3%A7%C3%A3o

3 -  Peroxiredoxins are conserved markers of circadian rhythms - A vida celular surgiu há cerca de 3,7 bilhões de anos. Com raras exceções, os organismos terrestres evoluíram sob ciclos diários previsíveis devido à rotação da Terra. A vantagem conferida aos organismos que antecipam tais ciclos ambientais impulsionou a evolução de ritmos circadianos endógenos que ajustam a fisiologia interna às condições externas. A filogenia molecular dos mecanismos que impulsionam esses ritmos tem sido difícil de dissecar porque os genes e proteínas do relógio identificados não são conservados em todos os domínios da vida: bactérias, arqueas e eucariotos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22622569/

4 - Circadian clocks in human red blood cells - Relógios circadianos (aproximadamente 24 horas) são fundamentalmente importantes para a fisiologia coordenada em organismos tão diversos quanto cianobactérias e humanos. Todos os modelos atuais do mecanismo circadiano molecular em células eucarióticas são baseados em ciclos de retroalimentação transcrição-tradução. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21270888/

Comportamento do cérebro e mudança

Cérebro, evolução, comportamento

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O ser humano é, em muitos aspectos, imprevisível. Sua jornada pela vida pode ser alterada por detalhes que escapam à percepção. Tudo é um conjunto de fatores que pode influenciar ele. Desde o nascimento, não emerge como uma tábua em branco, mas sim com sinais iniciais de comportamento que refletem padrões inscritos em seu código genético. Isso é algo que desperta curiosidade e fascínio ao mesmo tempo. Basta observar organismos simples, como bactérias ou vírus, que seguem comportamentos fixos, orientados pela lógica da sobrevivência e da reprodução. No ser humano, entretanto, há um salto de complexidade. Ele pensa, elabora raciocínios, cria estruturas simbólicas, transforma o instinto em linguagem e cultura. Seu cérebro não apenas responde ao ambiente, ele antecipa, projeta e reconstrói. Essa capacidade de abstração e adaptação é uma das razões pelas quais conseguiu dominar o planeta.

Os estudos da psicologia comportamental ajudaram a clarear o entendimento sobre como esse comportamento é moldado com o tempo. B. F. Skinner, destacou o papel do ambiente e do reforço nas escolhas e reações de um indivíduo. O comportamento, segundo esse olhar, é consequência direta das consequências que ele produz. Um ato recompensado tende a se repetir. Um ato punido ou ignorado tende a desaparecer. Mas isso não quer dizer que o ser humano seja um robô condicionado. Ao contrário, o ser humano é moldado por camadas que se entrelaçam: genética, ambiente, memória, cultura, afetos e história pessoal. É justamente esse cruzamento de forças que o torna tão fascinante.

O cérebro humano, diferente de qualquer outro órgão, não apenas responde ao mundo externo, ele o antecipa, simula, questiona e até o nega. Essa habilidade de criar realidades internas, de imaginar possibilidades, de desenvolver moral, arte e ciência, fez com que o Homo sapiens se destacasse entre todas as espécies. A plasticidade cerebral, essa capacidade de se adaptar, é um dos grandes segredos dessa dominância. A cada experiência, o cérebro literalmente se transforma, conectando novos neurônios, fortalecendo circuitos, apagando caminhos pouco utilizados. Essa maleabilidade, documentada por centenas de pesquisas em neurociência comportamental, é o que possibilita mudanças profundas em nossas atitudes, mesmo diante de padrões antigos e arraigados.

Há algo de profundamente inquietante em perceber como detalhes do ambiente podem alterar estados emocionais, decisões e percepções. Uma simples mudança na temperatura da sala, um tom diferente de voz, uma memória evocada de forma inesperada já pode mudar todo o percurso do pensamento de alguém. Isso não é misticismo, é o que os estudos mais recentes sobre processamento inconsciente têm demonstrado com precisão. O ser humano está sempre sendo atravessada por informações que escapam ao controle consciente. É como se estivéssemos numa estrada, mas com várias mãos invisíveis ajustando a direção do volante sem que se perceba.

O comportamento de reprodução e sobrevivência observado em vírus, bactérias e outros organismos simples, de certa forma, também habita o ser humano. Mas nele, esse impulso primitivo é temperado por uma camada densa de significados. O desejo de sobrevivência pode se transformar em arte, em ciência, em religião. O impulso reprodutivo pode dar origem a famílias, narrativas, mitologias inteiras. Esse é um ponto fundamental que diferencia os seres humanos: sua capacidade de simbolizar, de transformar pulsões biológicas em construções culturais complexas. Como mostra o estudo publicado na PLOS(1), o cérebro humano é equipado com redes altamente desenvolvidas para processar símbolos, linguagem e abstrações, algo praticamente inexistente em outras espécies.

Outra pesquisa interessante, publicada na Frontiers in Human Neuroscience(2), mostra como o comportamento humano não é apenas influenciado por fatores genéticos ou sociais isoladamente, mas por uma dança contínua entre predisposição e aprendizado. Essa interação dinâmica ajuda a entender porque pessoas com histórias semelhantes escolhem caminhos tão distintos. A mesma experiência pode gerar resultados opostos dependendo do estado mental, do contexto e da estrutura emocional de quem a vive.

Talvez seja por isso que muitas vezes se observa seres humanos agindo contra seus próprios interesses conscientes. O cérebro está em guerra interna, a parte mais racional e lógica tenta tomar o controle, enquanto camadas mais profundas, conectadas ao medo, ao desejo e à memória afetiva, puxam para outros lados. A psicologia comportamental explica parte disso mostrando como comportamentos podem ser reforçados por recompensas que nem sempre são boas a longo prazo. Comer algo por impulso, explodir em raiva, sabotar um projeto importante, tudo isso pode ser resultado de padrões aprendidos e reforçados ao longo dos anos, mesmo que gerem sofrimento depois.

Mas o que talvez mais impressione é perceber que o cérebro é capaz de reprogramar seus próprios circuitos ao longo da vida. A neuroplasticidade, hoje amplamente reconhecida e respaldada por estudos como o publicado pela Nature(3), demonstra que, por meio da prática contínua, do esforço deliberado e da intenção clara, é possível provocar alterações estruturais em regiões cerebrais associadas à persistência e à autorregulação. Essas mudanças não são apenas funcionais, mas envolvem uma reorganização profunda que pode tocar inclusive aspectos do comportamento e da personalidade.

A imprevisibilidade do ser humano talvez não esteja no caos, mas na complexidade. Ele não é imprevisível por ser irracional, mas por ser influenciado por tantas camadas que se torna quase impossível prever qual delas irá se manifestar em cada situação. O ambiente influencia profundamente a expressão de emoções. Pensar sobre tudo isso deixa uma sensação estranha. Há uma ilusão de controle que frequentemente é desmontada quando se observa com mais calma como se forma o comportamento. Cada decisão tomada, cada gesto e cada reação carrega consigo histórias anteriores, traços herdados e impulsos que nem sempre passam pela luz da razão. Mas isso não significa que se está condenado ao determinismo. Significa apenas que a consciência é um processo mais profundo do que parece.

Os velhos debates entre natureza e cultura, instinto e aprendizado, ainda são válidos, mas já não se apresentam como opostos excludentes. Eles se entrelaçam, se complementam, se corrigem mutuamente. Ninguém nasce um ser pronto. Mas também ninguém nasce vazio. Há direções, há inclinações, há sementes que esperam o solo certo para brotar. E é nesse encontro entre o biológico e o simbólico que o ser humano se torna o que é. Capaz de construir pontes e destruir cidades, de criar beleza e praticar crueldades, de repetir padrões antigos e, com esforço, quebrá-los.


Referências:

 

1 - The Human Connectome: A Structural Description of the Human Brain - Este estudo discute como as redes de conexões do cérebro humano (o chamado connectome) são organizadas de maneira complexa, oferecendo uma base estrutural para funções cognitivas superiores, como linguagem, simbolização e abstração. Ele apresenta dados e teorias que reforçam exatamente a ideia de que o cérebro humano possui uma arquitetura diferenciada em relação a outras espécies, sendo especializado em transformar informação em representações simbólicas — como ocorre com linguagem, arte, lógica e cultura. https://journals.plos.org/ploscompbiol/article?id=10.1371/journal.pcbi.0010042

2 - Superior Pattern Processing is the Essence of the Evolved Human Brain - Este artigo argumenta que o que diferencia o cérebro humano é sua capacidade superior de processar padrões complexos. Essa habilidade permite a construção de estruturas cognitivas como linguagem, música, matemática e crenças abstratas. O artigo enfatiza a coevolução entre predisposição genética e aprendizado como chave para entender o comportamento humano https://www.frontiersin.org/journals/neuroscience/articles/10.3389/fnins.2014.00265/full

3 - Plastic frontal pole cortex structure related to individual persistence in goal-directed behavior - Este estudo investigou como a persistência em comportamentos orientados por objetivos está relacionada a mudanças estruturais no córtex do polo frontal (FPC). Os pesquisadores descobriram que indivíduos que demonstraram maior persistência em tarefas cognitivas, de linguagem e motoras apresentaram alterações neuroplásticas significativas no FPC após o treinamento. https://www.nature.com/articles/s42003-020-0930-4