Aquecendo ouro além do limite

Ouro
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Ouro sólido a temperaturas mais de 14 vezes superiores ao próprio ponto de fusão parece coisa de ficção, só que um experimento recente mostrou isso, atravessando um limite teórico popularizado como “catástrofe de entropia”. O resultado nasce de medições de temperatura feitas com espalhamento inelástico de raios X de alta resolução (IXS) e sugere algo desconcertante: a pergunta “até que temperatura um sólido pode ir antes de derreter?” não tem uma resposta simples.

Por que se acreditava no teto de três vezes a fusão? Porque modelos termodinâmicos indicavam que vibrações atômicas cresceriam a ponto de desordenar qualquer rede cristalina. A pista nova vem do tempo de aquecimento. Se a energia entra tão rápido que a rede não consegue se expandir, forma-se um estado extremamente quente que preserva a estrutura sólida por instantes. Parece contraintuitivo? É exatamente a graça da física fora do equilíbrio, quando o sistema evolui mais depressa do que suas variáveis internas conseguem responder.

No laboratório, uma fina película de ouro, com cerca de 50 nanômetros, recebeu pulsos laser intensos de apenas 50 femtosegundos (1 fs = 10⁻¹⁵ s). A taxa de aquecimento passou de 10¹⁵ kelvins por segundo, permitindo levar o metal a 14 vezes os 1064 °C do seu ponto de fusão. Isso fica muito acima da tal catástrofe, que alguns cálculos colocavam perto de 3000 °C. Como medir a temperatura em estados que duram só picossegundos? Entra em cena um “termômetro” de raios X.

Um feixe de raios X interage com os átomos, que absorvem fótons em uma frequência e reemitem em outra. A diferença de frequências carrega um desvio Doppler (mudança aparente de frequência por movimento), sensível a se a emissão caminha na direção do detector ou se afasta. Como os átomos vibram termicamente de modo aleatório, a distribuição de velocidades guarda a própria temperatura. Quanto mais quente, maior a energia cinética média e mais larga a distribuição; portanto, maior a largura do espectro espalhado, que funciona como termômetro sem depender de modelos computacionais.

Vale notar o desafio instrumental. É preciso um espectrômetro de altíssima resolução, capaz de resolver diferenças de energia na faixa de milieletrovolts (meV), e um feixe de raios X brilhante o bastante para extrair sinal significativo de amostras minúsculas e efêmeras. Pressão e densidade, em regimes extremos, já se medem com certa rotina; temperatura, por outro lado, costuma ser inferida com incertezas grandes, justamente por não haver “termômetros” que sobrevivam a acontecimentos tão rápidos.

O ganho científico é amplo, em física de plasmas e de materiais, medir diretamente a temperatura iônica em matéria densa e fortemente excitada abre portas: diagnosticar condições internas de planetas gigantes, por exemplo, ou guiar projetos de fusão, onde conhecer com precisão a temperatura em diferentes regimes é decisivo. Estudos fundamentais também agradecem, porque agora os limites últimos de estabilidade de sólidos podem ser verificados experimentalmente, em vez de existir só em previsões.

Um ponto pede atenção: o truque não é “magia do ouro”, é controle temporal. Ao injetar energia mais depressa do que a rede cristalina consegue relaxar, evita-se a expansão volumétrica imediata e, com ela, o caminho comum até a fusão. O sólido, então, existe em um patamar extremo por um piscar de olhos. Isso reconfigura a maneira de formular a velha questão do derretimento: quando o tempo entra na dança, não basta falar em temperatura; é preciso falar em trajetória temporal de aquecimento.

O método já começa a migrar do ouro para outros alvos. Materiais comprimidos por choque estão na mira, inclusive ferro em condições que lembram interiores planetários. Nesses cenários, mede-se simultaneamente velocidade de partículas e temperatura, acessando estados sólidos e fundidos sob compressão dinâmica. Aonde isso leva em termos práticos? A novas janelas para entender como se fortalecem ligas metálicas sob impacto térmico e mecânico e a ferramentas de diagnóstico em tempo real para ambientes extremos.

Um detalhe técnico costuma passar despercebido: a abordagem é independente de modelo. Em vez de ajustar curvas com muitas hipóteses, ela observa uma grandeza primária, a largura espectral, que resulta da estatística de velocidades atômicas. Para quem estuda matéria fora do equilíbrio, esse tipo de observável direto vale ouro — sem trocadilho.

Que implicações conceituais ficam na mesa? Primeiro, estados superquentes de sólidos não violam a termodinâmica, apenas exploram regimes onde a expansão e a reorganização estrutural ficam “atrasadas” em relação ao depósito de energia. Segundo, respostas sobre “o quanto um sólido aguenta” passam a depender do relógio, não só do termômetro. Terceiro, instrumentos que enxergam meV em janelas de picossegundos transformam especulações em medidas.

Você confiaria que um cristal permaneça inteiro quando tudo nele treme? A experiência mostra que, por um instante mensurável, sim. E esse instante é o suficiente para renovar perguntas antigas e abrir espaço para experimentos que, até ontem, pareciam impraticáveis.

 


Referência:

Em seu estudo histórico Fecht e Johnson revelaram um fenômeno que chamaram de "catástrofe da entropia", um ponto crítico em que a entropia de cristais superaquecidos se iguala à de seus equivalentes líquidos. Este ponto marca o limite superior de estabilidade para sólidos em temperaturas tipicamente em torno de três vezes o seu ponto de fusão. Apesar da previsão teórica deste limite máximo de estabilidade, sua exploração prática tem sido impedida por numerosos eventos intermediários desestabilizadores, coloquialmente conhecidos como hierarquia de catástrofes, que ocorrem em temperaturas muito mais baixas. Aqui, testamos experimentalmente esse limite sob condições de aquecimento ultrarrápido, rastreando diretamente a temperatura da rede usando espalhamento inelástico de raios X de alta resolução. https://www.nature.com/articles/s41586-025-09253-y



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