
Um estudo recente de dentes achados em Hualongdong, no sul da China, está reescrevendo como entendemos a evolução humana na Ásia. As peças, datadas de cerca de 300 mil anos, pertencem a um grupo enigmático de hominíneos e exibem uma mistura incomum de traços primitivos e modernos. O quadro indica que o cenário evolutivo do Pleistoceno Médio (período de 781 mil a 126 mil anos atrás) foi mais intricado do que a narrativa clássica sugeria.
Antes dos detalhes, vale a pergunta que guia o leitor: que história dentes tão antigos conseguem contar? Dente é osso vivo, armazena pistas de dieta, crescimento e linhagem (conjunto de indivíduos com ancestralidade comum). Quando traços não combinam com rótulos conhecidos, a hipótese segura é que a diversidade real foi subestimada.
A equipe, liderada por Wu Xiujie, examinou 21 elementos dentários, 14 deles ainda cravados em um crânio preservado. Terceiros molares pequenos e faces vestibulares lisas aparecem lado a lado com raízes robustas em molares e pré-molares, combinação típica de um mosaico morfológico (mistura de características antigas e recentes no mesmo organismo). O mesmo conjunto já havia exibido faces próximas a Homo sapiens, mas mandíbulas e proporções de membros mais próximas de H. erectus.
Se parte do rosto parece moderna e parte da arcada lembra formas arcaicas, o que isso diz sobre processos evolutivos? Uma explicação provável é o fluxo gênico (troca de genes entre populações por acasalamento) entre grupos semelhantes a humanos modernos e linhagens mais antigas, como Homo erectus. Outra hipótese propõe uma linhagem própria, aparentada de perto aos humanos recentes, porém distinta de espécies já descritas.
Os dentes não mostram traços neandertais típicos. Esse detalhe separa os indivíduos de Hualongdong tanto de neandertais quanto de denisovanos, e dá peso à ideia de múltiplas experiências evolutivas em território asiático. Quando a gaveta taxonômica não comporta a peça, revisamos a gaveta ou o armário inteiro?
A cronologia importa. Várias descobertas no continente, como Homo luzonensis nas Filipinas, Homo longi no norte da China e Homo juluensis, povoam o mesmo intervalo temporal, entre 300 mil e 150 mil anos. A árvore genealógica ganha galhos curtos, encruzilhadas e ramos que começam e terminam perto. Diversidade maior implica trajetórias distintas, nem lineares nem uniformes.
O desenho oclusal humanoide e padrões de sulcos avançados em pré-molares sugerem surgimento precoce de traços hoje comuns. Oclusão é o encaixe entre dentes superiores e inferiores; sulcos são as “valas” na superfície mastigatória que orientam o desgaste. Se tais padrões aparecem cedo, quanta parte do que consideramos moderno já circulava antes da expansão global de Homo sapiens?
Há também o papel dos sítios pouco documentados, como Panxian Dadong e Jinniushan. Esses locais, a exemplo de Hualongdong, combinam características difíceis de classificar sem forçar categorias. Quando os dados incomodam, a tentação é encaixar à força. Ciência exige o contrário: expandir o modelo, testar previsões, aceitar zonas cinzentas.
Uma ideia central: a Ásia parece ter funcionado como laboratório evolutivo no Pleistoceno Médio. Retomar esse ponto ajuda a entender por que dentes, mandíbulas e faces contam versões diferentes do mesmo passado. Ritmos distintos de mudança podem atuar em regiões corporais diferentes, como se o relógio evolutivo marcasse tempos desiguais para cada tecido.
Do ponto de vista, vale observar como hipóteses competem. Fluxo gênico explica misturas; evolução convergente (traços semelhantes surgindo independentemente) também pode gerar parecidos enganosos. A diferença está nas assinaturas: raízes, cúspides e microdesgastes deixam marcas que estatísticas comparativas conseguem distinguir.
Que implicações práticas emergem? Reclassificar fósseis, recalibrar árvores, rever datas de dispersão. Hominíneos asiáticos deixam de ocupar nota de rodapé e ganham papel de protagonistas. Por ora, a identidade precisa dos indivíduos de Hualongdong permanece em aberto, porém o achado avança nossa compreensão sobre um passado comum mais diverso, reticulado e surpreendente do que imaginávamos. Também vale nomear termos: pré-molares antecedem os molares na arcada; cúspides são pontas elevadas que trituram; superfície bucal é a face do dente voltada para a bochecha. Sem essas chaves, a leitura vira labirinto. Ciência precisa de mapas.
Referência:
The hominin teeth from the late Middle Pleistocene Hualongdong site, China - Entre 2014 e 2015, abundantes fósseis humanos datados de cerca de 300 mil anos foram encontrados no sítio de Hualongdong (HLD), província de Anhui, sul da China. A amostra humana de HLD consiste em um crânio quase completo com 14 dentes in situ, uma maxila parcial com um pré-molar in situ, seis dentes isolados, três secções diafisárias femorais e algumas peças cranianas. Estudos anteriores descobriram que os hominíneos de HLD apresentam um mosaico de características primitivas e derivadas em relação ao clado Homo . Enquanto o crânio, os membros e a mandíbula exibem características predominantemente primitivas compartilhadas com espécimes de Homo primitivos, os ossos faciais apresentam afinidades mais próximas aos humanos modernos. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248425000806?via%3Dihub
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